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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Filosofando sobre "Mídia e saúde: quando o SUS vira notícia"


Por que detonar a política que mais confere cidadania ao povo?
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_


De 30.11 a 4.12, a 14ª Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, discutirá "a política nacional de saúde, segundo os princípios da integralidade, da universalidade e da equidade", sob o tema "Todos usam o SUS! SUS na seguridade social - política pública, patrimônio do povo brasileiro", cujo eixo é "Acesso e acolhimento com qualidade: um desafio para o SUS".





Como parte da Conferência, dia 1º, ocorrerá a oficina "Diálogos saúde e mídia", da qual serei expositora, com Reinaldo José Lopes, editor do caderno saúde, da "Folha de S.Paulo", do tema "Mídia e saúde: quando o SUS vira notícia". Confirmaram presença mais de cem jornalistas e assessores de imprensa.
Será um momento ímpar, no qual quem produz notícias poderá dizer "qual é a sua" na cobertura de saúde, que, via de regra, passa ao largo da defesa da luta pelo SUS, contrariando o que deveria ser o guia das diferentes mídias - a eticidade informativa -, numa demonstração do absolutismo inconteste da ditadura da mídia.





Gerar e publicar informações é um tipo de poder e um grande poder. Considerando a função social do jornalismo, as velhas e as novas mídias podem escolher: fortalecer ou detonar o SUS usando as mesmas pautas, em geral denuncistas e catastrofistas.







Sem esquecer que a grande imprensa, falada e televisada, tem lado e que o estado da arte do SUS é um processo de construção, não é um produto pronto e acabado, a pergunta é: por que detonar a política pública que mais confere cidadania ao povo brasileiro, extinguindo a figura do indigente na saúde, o seu maior mérito?





Em "O ‘conferencismo’ sequestra a democracia e insulta a inteligência", registrei meu desencanto "diante do ‘conferencismo’ ordinário e vulgar aqui instalado para abordar temas sociais mais afetos aos direitos humanos (...). Não sou contra conferências, mas o uso do formato conferência para ‘conferencismos’ que não nos tiram do amassar ‘ad aeternum’ o mesmo barro".E disse mais: "Dá comichão ler um relatório final de tais conferências. A mesmice - velhas demandas diante do mesmo ‘muro de lamentações’! - impera a um ponto que parece xerox do anterior, como se da conferência resultasse um eterno monólogo inútil. E é! O que revela que o ‘conferencismo’ insulta a inteligência e sequestra a democracia participativa por ser um jogo de faz de conta..." (O TEMPO, 18.10.2011).





Foi com surpresa que recebi o convite para a oficina "Diálogos saúde e mídia". Tive um ataque hamletiano completo, antes do sim: "Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas/ Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,/ Ou insurgir-nos contra um mar de provações/ E em luta pôr-lhes fim?" ("A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca", de William Shakespeare. Ato III, Cena I. Escrita entre 1599 e 1601).





Hamlet é uma perseguição. Escrevi "Paralelos entre o SUS e a tragédia de William Shakespeare" (O TEMPO, 23.8.2011), sobre os voos filosóficos de um leitor de uma cidade mineira onde só há Santa Casa que, "irado, indagou por que eu tinha ‘tara’ por coisas que não prestam, a exemplo do SUS, para ele um engodo quando depende de contratados". Encerrou citando Hamlet: "‘Há algo de podre no reino da Dinamarca’, pois as Santas Casas não são mais de caridade; recebem por procedimentos feitos - aquilo que você já ficou rouca de dizer: o grande mérito do SUS foi acabar com o indigente da saúde. E é verdade: não há mais indigentes, há perambulantes". Vou por aí...


Publicado no Jornal OTEMPO em 29.11.2011dilma__foto_-_agencia_brasil
Dilma promete reduzir superlotação em hospitais

sábado, 26 de novembro de 2011

“Bolsolidades” azedando a goiabada da Matinha de Dona Lô


Fátima Oliveira

Relembro que A Goiabada de Novembro, nada mais é do que um ajuntamento de mulheres do povoado para a última colheita de goiaba do ano, ocasião em que fazem doces de goiaba para as festas da capela, do Dia do Nascimento (Dia de Natal) e do Dia de Ano (Ano-Novo). Mais uma das tradições que Dona Lô herdou de sua mãe Donana”. Era sexta-feira, véspera da “feitura” dos doces de goiaba, e Dona Lô atende a um telefonema...
– Ô Estela, vamos jantar hoje “Terrina de legumes com flor de sal”. Faz tempo que não faço. Deu vontade, saudade... A que horas chegarão? Está fresquinho aqui. Ventando muito e quase frio demais. Dá pra beber um vinhozinho esperto...
– ...



– Então está bem, minha rosa. Até mais ver!  Passe um corretivo em Pedro. Que ele não chegue aqui pra me fazer raiva porque amanhã teremos um dia cheio... Não quero falar de ministro entrante, sainte, balançante, na corda bamba, na corda esticada, nada de nada! Que ele só me fale em Dilma pra dizer que ela é uma flor de sal... Ah, que vai falar, vai! Por causa da receita de hoje, que leva o condimento...

– ... 



– Os preparativos de amanhã pra Festa da Goiabada estão nos trinques, desde as turmas. Gracinha está tomando conta de tudo, das turmas todas, que são quatro: a da coleta das goiabas; a que lava, descasca, corta a goiaba e retira o miolo com as sementes e que também pesa as goiabas; a que passa o miolo na peneira e prepara a massa; e as 3 duplas de “tacheiras”: a de goiabada cascão, a de goiabada em calda e a da geleia de goiaba.  Estão bem divididinhas. Sem susto!  Você não terá muito trabalho, além de “ficar de olho”. O fogão de lenha está só a espera dos tachos de cobre...



.. tacho de cobre com capacidade para 200 litros de leite!! Bichinho ..

– ... 

– Antes que você pergunte, digo-lhe: o cardápio da Festa da Goiabada será o de sempre, o nosso tradicional Arroz de Maria Isabel de Carne Seca, como nos tempos de Donana...
Na boquinha da noite chegou Estela com sua catrevagem e também a curriola, que é Cesinha e a tal da namorada (esconjuro!). Pedro, como de costume, não adianta Estela “passar a língua”,  tem de falar nas coisas da política, mal chega.




– Mas Dona Lô, eu vinha seco pra degustar seu vinhozinho, vamos a ele! Nada de política, foi o que me pediu Estela. De acordo, mas essa do deputado Bolsonaro, não podemos deixar de falar. O sujeito é sem limites, um boquirroto. Todo mundo sabe. Já virou chacota nacional sem crédito. Mas desrespeitar a presidenta como ele fez ontem, é inadmissível, não acha senhora?
– Ah, Pedro, infelizmente temos de azedar a nossa noite com o assunto. Por mais que saibamos que ele é azuretado, e que ninguém dá um tostão furado pelo o que sujeito fala, fiquei chocada! Estou pelas tabelas com tanta desfaçatez.
–...
– Daqui da Chapada do Arapari ele não sairia palitando os dentes, isso garanto, pois aqui “Mexeu com Dilma, mexeu comigo!” Aqui ele não teria coragem pra dizer nem que Dilma é bonita! “Formiga sabe o pau que roi”, ora se sabe! Ele canta de galo lá em Brasília. Não mais! Como foi que ele disse mesmo?
Sem perder tempo, Pedro puxou um papel do bolso...
–  Até copiei a matéria. Escute só a baixaria: 
“Bolsonaro pede a Dilma para assumir 'se gosta de homossexual' – ‘Se o teu negócio é amor com homossexual, assuma’, disse na tribuna (vídeo)
Parlamentares apontaram falta de decoro. Ao G1, Bolsonaro negou ofensa.
[Do G1, em Brasília]

O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) pediu à presidente Dilma Rousseff, em discurso na tribuna da Câmara na manhã desta quinta (24), para parar ‘de mentir’ e assumir ‘se gosta de homossexual’.
Bolsonaro criticava o que chama de ‘kit gay’ do Ministério da Educação, uma cartilha contra a homofobia que seria usada em escolas públicas, mas cuja distribuição foi suspensa por determinação da presidente.
‘O kit gay não foi sepultado ainda. Dilma Rousseff, pare de mentir. Se gosta de homossexual, assuma. Se o teu negócio é amor com homossexual, assuma. Mas não deixe que essa covardia entre nas escolas do primeiro grau’, afirmou o deputado no discurso, disponível no site do Câmara (...)”
– Pois é Pedro, para além da falta de decoro este senhor precisa de um corretivo e quem tem de fazer isso são os pares dele lá da Câmara, que não podem se furtar de analisar e decidir. Que a Câmara não fuja da raia... Ele extrapolou. Além de ser declaradamente homofóbico e racista, é um ser humano abjeto que sofre do mal da verborragia e não aprendeu o que é ter limites.
– ...
–  Ainda tem mais. Vejamos: “Reações:


 Após a fala de Bolsonaro na tribuna da Câmara, o deputado Alfredo Sirkis (PV-RJ) subiu à tribuna e rebateu as declarações do parlamentar do PP. ‘O que nós ouvimos aqui hoje foi novamente um discurso de ódio, um discurso de preconceito, um discurso inclusive que, se eu entendi direito, faltou com o decoro parlamentar ao fazer insinuações a respeito da própria Presidente da República. A opção sexual de qualquer ser humano, deputado, é uma questão de foro íntimo desse mesmo ser. E todos nós temos o mesmo direito perante a Constituição’, declarou Sirkis.


  A senadora Marta Suplicy (PT-SP), vice-presidente do Senado, também reagiu ao discurso de Bolsonaro. ‘Como mulher, como cidadã, como mãe, como senadora, como vice-presidente desta Casa, pedimos ao presidente da Câmara, deputado Maia, que tome enérgicas providências e limites, porque está sem um freio de arrumação. Sinto muito a falta de decoro parlamentar desse deputado. Tem ofendido cidadãos comuns e agora até mesmo a Presidente da República’, afirmou (...)
– Pois que pague pela sua falta de limites, que seja punido! Cadê os homens e as mulheres de coragem e vergonha na cara, em defesa de nossa Constituição, do direito à privacidade, à honra e à imagem que há na Câmara dos Deputados? Ou estou enganada? O presidente da Câmara vai calar, é? Não vai fazer nadinha? Estou aqui só bispando... E eu que pensei que a presidenta tivesse um partido... Parece que não! Como o PT ainda não se mexeu pra defender a mulher? Que ‘disgrota”! Das grandes. Tem de tomar medidas legais, que mané de soltar nota resolve coisa alguma!
–...
– É boçalidade demais num monte de bosta podre surtado! Sinto asco! AS-CO!!!!
–...
– Não é da conta daquele senhor de ares de alucinado a vida sexual da presidenta. Quanto mais fantasiar, inventar coisas que ele não tem como provar. Não cabe a ninguém fazer juízo de valor sobre a sexualidade de qualquer pessoa.
–...
– E qual é o problema de alguém ser gay ou lésbica? Nenhum! E, por hoje, ponto final no assunto Pedro, pois tanta “bolsolidade” pode até azedar minhas goiabadas amanhã. Capaz de fazer a gente perder o ponto dos doces...

 (Goiabas em calda)

– Estou de acordo com a senhora. Vinho ao ponto, viu Dona Lô! E a que horas vamos  comer nosso patê com flor de sal? Ah, se tem uma coisa que eu gosto  muito também é aquele... “Gateau de abobrinha com brie e flor de sal”. Faz tempo que a senhora não faz, né não Dona Lô? Ali é também comida especial demais da conta...


(Maria do Carmo/Folha Imagem)
(Veja como preparar um delicioso "gateau" de abobrinha com brie, do chef Felipe Ferragut)


 – Vamos terminar nossa garrafa de vinho, não é Pedro? Também esperar um pouco Estela arrumar suas coisas. Ah, não é patê que vamos jantar... É terrine... Terrina...
– Diferenças?
Estela, que acabara de chegar, mas até então caladinha, não se conteve: “Terrina ou terrine é o nome em francês dado a uma vasilha funda, com tampa, refratária e geralmente de cerâmica. Os pratos preparados nessa vasilha levam o mesmo nome”; ou seja, tudo o que é assado numa terrine, recebe o nome de terrine disso, daquilo e daquilo outro... “Terrine é a forma em que o patê é assado, pode-se preparar terrine de quaisquer ingredientes não resultando necessariamente em um patê. Pode-se, por exemplo, preparar uma terrine de legumes e não será um patê”.





– Dindinha, Pedro é daqueles que nunca vai aprender essas filigranas... Come patê e come terrine, com muita frequência, desde que namorávamos, quando começou a frequentar a Matinha de Dona Lô, e nunca sabe o que é um e o que é o outro! Também não consegue distinguir o que é “gateau” de sal, só comer. Desisto! Estou careca de dizer-lhe que tudo bem, não é só ele quem confunde. Muita gente também.
– ...
– Mas é uma confusão à-toa: “Confunde-se Terrine com patê pelo fato de que um dos clássicos preparados com o foie gras (fígado de ganso) é preparado na terrine, são os fígados temperados com sal, pimenta-do-reino, enriquecida com fatias de trufas negras, regados com vinho Sauternes ou vinho do porto. Os fígados são apertados na terrine e cozidos em banho-maria. Depois de frio pode-se retirar da terrine e fatiar, e a consistência fica parecida com a de um patê”. 


 (Terrine de foie gras)

Dona Lô ria incontrolavelmente porque aquela não era a primeira vez que ouvia Estela dizer a Pedro as diferenças entre terrine, patê e gateau... Por fim, não se agüentou, e espocando de rir, foi em socorro de Pedro: “Esquente não, Pedro! Pra que vai aprender se tem Estela, uma enciclopédia ambulante, mulher fina e da hora, criada nos cânones de Donana Tropeira, para relembrar as diferenças, né não? Ademais Estela, o marido que você escolheu é assim. Vai ficar com ele ou vai jogar no lixo?"
Rsrsrsrsrs...

Matinha de Dona Lô, 25 de novembro de 2011
Terrine de Legumes  com flor de sal
Ingredientes

2 pimentões vermelhos
2 pimentões amarelos
1 berinjela grande em tiras
1 abobrinha média em tiras
6 colheres de sopa de azeite
1 cebola roxa, em fatias finas
1/2 xícara de chá de uvas-passa
1 colher de sopa de pasta de tomate
1 colher de sopa de vinagre de vinho tinto
1 2/3 xícara de chá de suco de tomate
2 colheres de sopa de gelatina em pó
Folhas de manjericão
Flor de sal

Modo de Fazer
1. Lave os pimentões sob água corrente e unte com óleo ou azeite de oliva. Coloque numa assadeira e leve ao forno médio (180 graus) por 30 minutos ou até que a casca comece a queimar.
2. Lave as abobrinhas e a berinjela sob água corrente e corte em fatias finas, no sentido do comprimento. Unte uma assadeira com azeite e coloque as fatias de berinjela e abobrinha. Regue com mais azeite e leve ao forno por 20 minutos ou até que as fatias comecem a murchar.
3. Retire os pimentões do forno e embrulhe em filme plástico para que a pele se desprenda mais facilmente. Corte os pimentões ao meio e retire as sementes. Corte cada metade ao meio novamente. Com a ajuda de uma faca, retire a pele dos pimentões. Reserve. Leve uma frigideira ao fogo baixo para esquentar.
4. Acrescente o azeite, a cebola, a uva-passa, a pasta de tomate e o vinagre. Refogue por 10 minutos, mexendo sempre ou até que a mistura comece a caramelizar. Retire do fogo e deixe esfriar.
5. Coloque o suco de tomate num recipiente e polvilhe a gelatina. Espere hidratar e leve ao banho-maria para dissolver. Mexa com uma colher e retire do fogo.
6. Unte uma forma para terrine com óleo ou azeite de oliva. Cubra toda a forma com filme-plástico, deixando uma margem, de 3 cm para fora da forma, de plástico.
7. Coloque uma camada de pimentões vermelhos no fundo da terrine. Jogue um pouco de suco com gelatina sobre os pimentões. Coloque uma camada de berinjela, outra de abobrinha, outra de pimentão amarelo e outra da mistura de cebola. Jogue um pouco mais de suco. Faça mais uma camada com os legumes restantes e finalize com os pimentões vermelhos. Cubra com o suco de tomate restante. Bata a forma, levemente, contra uma superfície dura para retirar as bolhas de ar. Cubra com filme plástico, leve à geladeira por no mínimo 6 horas ou até que a gelatina fique firme.
8. Desenforme a terrine, puxando pelo plástico. Corte em fatias e enfeite com as folhas de manjericão
9. Salpicar com flor de sal ao servir o prato.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A polêmica da internação compulsória na drogadização

DUKE
Fátima OliveiraMédica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_
Crack causa danos que extrapolam as esferas pessoal e familiar


O governo federal anunciou a vontade política de elaborar e implantar, em âmbito nacional, uma proposta específica, multi e transdisciplinar para a abordagem da drogadização por crack.
Enquanto ela não chega, doentes e familiares continuam desamparados. Quando uma família em risco de vida dupla face (doente e família) solicita ordem judicial para internação compulsória portando indicação médica, o juiz, em geral, nega, sem se dar ao trabalho de ouvir a família e/ou quem indicou! Não é apenas descaso, mas abuso!
Não há serviços públicos de saúde especializados, na quantidade necessária, para absorver a demanda voluntária e involuntária, seja ambulatorial ou hospitalar. Uma indicação de internação pode não se concretizar por falta de vagas.






Via de regra, as "comunidades terapêuticas" que adotam o regime de internação não admitem usuário de drogas portador de "doença mental" e, de praxe, exigem um laudo psiquiátrico (sim, psiquiátrico!) de sanidade mental, alegando que "não trabalham" com quem precisa de psiquiatra! Deu para entender? Não dá!
Disse, apropriadamente, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que a principal motivação do governo é a convicção de que o vício em crack no Brasil é uma epidemia que causa danos que extrapolam as esferas pessoal e familiar. Compreendi que o governo está convencido, o que é louvável, de que o adoecer por consumo de crack impõe mazelas para além da saúde mental, logo, a abordagem terapêutica é indispensável, embora ela sozinha não abarque todas as nuances do "adoecer" por crack.



O enunciado geral da política, "vamos enfrentar o crack", não é polêmico. O que tem dado panos para as mangas é a inclusão da internação compulsória da pessoa viciada, com indicação médica de internação (indicar internação é prerrogativa médica) na fase aguda para desintoxicação e para tratamento prolongado.


Por que na
drogadização a pessoa
enferma não tem direito à internação
quando indicada?
Não é assim para
as outras doenças?



 A internação compulsória de pessoas com a sanidade mental comprometida por doenças de causas endógenas e exógenas (em especial, uso de drogas) se justifica para interromper e reduzir danos, com vistas a recuperar a saúde, mas também, siamesamente, para proteger vidas, ao garantir a segurança dupla face (doente e família). É a violência o sintoma principal que leva a família a assumir a impotência de lidar sozinha, no campo do privado, com a drogadização.





Se a medicina tipificou a drogadização, em seus diferentes tipos e formas, como doença - e é uma doença, exaustivamente comprovada -, como toda doença, segundo o estágio da evolução no momento da consulta médica, a terapêutica indicada pode ser ministrada na urgência, no ambulatório e em regime de internação, com abordagem multiprofissional.
Não é assim para as outras doenças? Por que na drogadização a pessoa enferma não tem direito à internação quando indicada? E por qual motivo ela não pode ser compulsória se a pessoa enferma está com a autonomia diminuída e sem condições de sanidade mental de decidir sobre o que é melhor para a sua saúde?
Só quem nunca se viu obrigado a conviver e/ou acompanhou o cotidiano de uma família na lida com pessoas em estado crônico e permanente de drogadização pode ter a insensatez e a falta de piedade (é o termo mais apropriado) de dizer que não há situações que justifiquem a internação compulsória.
Como disse uma mãe que entrou na marra no gabinete do juiz interpelando-o por ter negado ordem para internar a filha: "Doutor, estou entendendo que o senhor vai levá-la para sua casa, não é?". Conseguiu.



Publicado no Jornal OTEMPO em 22.11.2011
[Noite estrelada, Van Gogh (1889)]

"Quero expressar a esperança por meio de alguma estrela" (Van Gogh).
 (Pinturas da minha loucura, Mark Freedom)
Leia cometários também em:VIOMUNDO  LIMA COELHO

Leituras indicadas sobre internação compulsória:
Se de perto ninguém é normal, o que é loucura? Fátima Oliveira (02.06.2009)
 
A internação psiquiátrica necessária não é crime - Fátima Oliveira (09.06.2009)
Sobre internação compulsória Ferreira Gullar escreveu 3 artigos:
Uma lei errada (FSP, 12.04)
A sociedade sem traumas (FSP, 26.04)
Os inumeráveis estados do ser (FSP, 17.05) 
Colônia do Bonfim no passado, hoje hospital Aquiles Lisboa: 69 anos de história a ser recuperada e preservada -  Ana Maria dos Santos Martins Pinho (12.04.2010)

Veja mais sobre o assunto:
Lei 10.216 – que “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” 
Política Nacional de Saúde Mental
Integralidade nas políticas de Saúde Mental - Domingos Sávio Alves
DIRETRIZES PARA UM MODELO DE ASSISTÊNCIA INTEGRAL EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL. [(ver também aqui> (Anexo)]
. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA - ABP
. ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA – AMB
. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA – CFM
. FEDERAÇÃO NACIONAL DOS MÉDICOS - FENAM (2006)

Conselho Federal de Medicina: RESOLUÇÃO No- 1.952, DE 11 DE JUNHO DE 2010Adota as diretrizes para um modelo de assistência integral em saúde mental no Brasil e modifica a Resolução CFM no- 1.598, de 9 de agosto de 2000.

sábado, 19 de novembro de 2011

As cachaças de Minas + Afinidades e prazeres


As cachaças de Minas
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_


Assim como Minas, as cachaças de Minas são muitas e maravilhosas! Dar uma cachaça é dar prazer. É, uma boa cachaça é fonte de prazer. Adoro abrir o armário e ler aqueles nomes, significativos, pitorescos... É agradável ir ao Mercado Central e passar o olho nas cachaças... É cada nome, cada gosto e cada uma é única! Providência, Meia Lua, Lua Nova, Lua Cheia, Boazinha, Brinco de Ouro, Sabor de Minas, Trem de Minas, Salineira, Cristalina do Picão, Princesa Januária, Insinuante... imagine se uma cachaça chamada Insinuante não é para ser degustada, a pequenos goles, prazerosamente!




  Sempre digo que vou fazer uma "Rota da Cachaça". Nem sei porque nunca concretizei. E sei. Sempre trabalhando, dando plantão, feito uma égua de carga. A Cristalina do Picão eu respeito pela suavidade e nem cheiro de álcool tem. Em minha rua há um senhor de 90 anos que guarda a sua garrafa na padaria/mercearia. Todo dia ele vai lá, escondido da mulher, e toma a sua talagada. Um raro prazer clandestino. Bonito, não?


SOU AUTOR DO LIVRO: 


E tem a Havana. Custa uma pequena fortuna. Nunca tive coragem de comprar uma. Em fevereiro passado uma garrafa (600 ml) custava a bagatela (?) de R$ 420,00 (quatrocentos e vinte reais!). Mas eu já tive algumas... Bem, mas só tenho quando ganho de presente e dura anos, porque Havana, por esse preço, é para ser bebida a conta-gotas. E é assim que eu faço quando ganho uma. A última durou quase três anos. Conta-gotas de Havana para momentos especialíssimos... Ou uma grande comemoração ou um grande luto. Me lembro que um dia bebi um copo todo (calma, no máximo 10 ml). Uma desilusão amorosa. Eu merecia um copo de Havana para expurgar um idiota.
Quando cheguei a Belo Horizonte gostei do ambiente solene das cachaçarias, mas achava ridículo e sem graça beber cachaça. É que no Maranhão há um preconceito forte contra cachaça. Uma questão de classe. Lá cachaça é bebida de pobre lascado. De modo que... a gente já olha atravessado. Com o tempo, fui entendendo o simbolismo cultural da cachaça em Minas. Levei, pelo menos, uns dois anos para degustar o primeiro gole. Um dia de férias no Maranhão, de repente pedi ao meu irmão para ir lá na venda e trazer uma cachaça da terra. Nem são boas, mas festa sem cachaça, não é. 
Sob os olhares atônitos de mamãe e de vovó, degustei um gole. Vovó não se conteve: "Virge Maria, ela aprendeu até a beber cachaça! Cem filha que eu tivesse nunca ia mais sair de casa pro mundo. Só aprendem o que não presta! Mulher onde tu aprendeu a beber cachaça? Olha que tu não puxe à Custódia". Foi uma farra. A festa virou toda da tia Custódia, pois cada pessoa se lembrava de uma coisa aprontada por ela. E como ríamos! E mamãe contou uma inconfidência. Ela e tia Custódia guardavam um segredo. Mamãe dava cachaça para ela de vez em quando, às escondidas.






Uma garrafinha (segundo mamãe não era nem meio litro) em troca de tia Custódia "arear" as baterias de mamãe. Com certeza por aqui quase ninguém sabe que é que é bateria, que não seja de carro. Falo de "bateria de alumínio". Nada além de um conjunto de peças de alumínio: panelas, frigideiras, bules, bacias, etc. Uma bateria é um conjunto de peças de cozinha de alumínio. E "bateria" pode ser "de pé" ou "de parede". Mamãe é viciada em peças de alumínio. Deve ter umas duzentas. Nem usa e não deixa usar. Só para ficar lá brilhando, enfeitando a cozinha. Papai foi, durante muitos anos, atacadista de cachaça. Se dizia que era dono de "dorna" (depósito, tonel de madeira onde a cachaça é curtida e guardada). Em nossa casa havia o "quartinho da dorna".
Vovó ficou indignada: "Mulher, mas que desgraça. E tu ainda dava cachaça para a Custódia!" Tia Custódia era uma prima de vovó que morou uma temporada conosco na década de 1960. Era da idade de vovó, com filhos e até netos. Não tinha onde morar e rodava as casas dos parentes, de uma casa para outra até à próxima briga. Fazia uma comida maravilhosa, contava belas histórias, fazia renda de bilro e fiava algodão. Mas era uma encrenqueira de marca maior quando decidia beber cachaça. Aprontava. Passava meses e até anos sem beber um gole, mas quando bebia, adeus censura, ficava nua na rua.
Eu não sabia que ela bebia. Já estava em nossa casa há mais de um ano. Um domingo, voltando da feira, uma colega disse: "Fátima, aquela mulher que tá lá no meio da rua dançando não é a tua tia Custódia?".  Olhei... A molecada em torno dela. Os meninos diziam uma coisa e ela respondia, xingava... Era uma desbocada. Eles gritavam: "Hoje tem espetáculo?" E ela: "Tem sim senhor". Igual a palhaço de circo percorrendo as ruas de cidade do interior para avisar que o circo chegou e que haverá espetáculo.





Não lembro bem, mas parece que ela empurrou um menino e os outros disseram que iriam chamar o delegado. Ela levantou a saia e disse: "Olha aqui o delegado!" E estava sem calcinha! Cheguei em casa chorando convulsivamente. Um caos. O meu avô saiu com um cinto na mão e trouxe a tia Custódia, como dizíamos, "debaixo de peia". Ela resistia. Apanhava, levantava a saia e mostrava o delegado... Foi trancada num quarto. Desonrara a família. Nenhum homem de nossa família bebia, quanto mais mulher!
Ela dormia em meu quarto, mas foi desterrada para um quartinho nos fundos. Não a vi por vários dias, mas a voz dela não me saía da cabeça, pois quando acordou gritava: "Fátia (ela nunca aprendeu meu nome), me tira daqui fia".. Não deixaram mais ela dormir comigo. Era um mau exemplo. Na semana após o espetáculo, ela se escondia de mim. Mandou dizer pela Albertina, a cozinheira, que estava com vergonha. Fiquei mais danada ainda. Mandou dizer que não ia mais andar sem calcinha. Achava um horror, ela não usar calcinha! Vovó dizia: "Custódia nem sabe usar calcinha Fátima. Mulher pobre não tem costume de usar calcinha. Só quando vai para algum lugar, viajar".
Ela ficou mais alguns anos em nossa casa. Se embebedou, religiosamente, pelo menos a cada seis meses, sempre aos domingos, dia de feira. Era uma diversão. Nem contávamos mais para o paivelho. Ela morreu há mais de 30 anos. Uma corajosa. Nos anos 1960 uma mulher beber cachaça por puro prazer, hoje vejo que era demais. Não sei se ela se enquadraria na categoria de alcoólatra. Odiava qualquer outra bebida. Só bebia cachaça, esporadicamente, mas bebia até perder o senso. Passava de seis meses a um ano sem beber, mas quando bebia... dava espetáculo. Depois que aprendi a apreciar cachaça, lamento não ter dado a ela uma cachaça de Minas. Tenho certeza, ela ADORARIA! Às vezes, em tempo de frio, estou escrevendo, levanto, vou ao armário e digo: "Deixa eu botar um golezinho para a tia Custódia". E degusto uma cachaça em sua memória.



Fátima Oliveira escreve no Magazine às quartas-feiras.
 www.otempo.com.br
Beagá, MG, 17 de março de 2004
E-mail:
fatimaoliveira@ig.com.br

 (Museu da cachaça, Caeté, MG)


Afinidades e prazeres
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_


Foi prazeroso escrever "As cachaças de Minas". As carinhosas manifestações de afinidades cachaçais se traduziram em alegria indescritível. Também ganhei umas cachaças. Virar musa da cachaça, aos 50 anos, não estava no "escripte". Morro de rir pensando em vovó que se soubesse, com certeza, diria: "Mulher, tu me mata de desgosto"!... Espiem que maravilhas recebi: "Querida Fátima, finalmente uma mensagem de interesse geral da comunidade. Estou até afim de dar um pulim aí em Beagá pra tomá um traguim. Beijim" (Marcim)/"Viva a tia Custódia! Parabéns, seu texto está maravilhoso de gostoso de ler, como uma boa cachaça ou chimarrão. É bom ler coisas que não sejam só política ou movimento. Beijão" (Zeca)/"Amiga Fátima, somos da cachaça Pirapora, lemos sua matéria no jornal e adoramos. Gostaríamos de presenteá-la com uma cachaça. Um abraço da Pirapora". Não conhecia, mas agora digo: é DELICIOSA. O prazer de beber para festejar é apenas um prazer, não é uma doença.
As mulheres? Gostaram. "Como é bom chegar do trabalho (estava dando aula até há pouco!) e deparar com um texto tão suave para me deliciar pela madrugada. Beijos" (Juliane)/"Bonito teu artigo. Nem precisava confessar que aprendeu a beber cachaça em Minas Gerais. Tu és cachaceira de antes, da política. Nós duas, aliás. A cachaça da política é pior que a do alambique. Fiz uma paródia que diz: ´Você pensa que óvulo é esperma, óvulo não é esperma não, esperma sai bem facinho e óvulo tem que rasgar o ninho/Querem patentear tudo da vida: arroz, feijão e o João, querem patentear a água, tudo isso não é certo não/Querem patentear o amor ai, ai, ai, ai... Isso eu nem acho graça, vou mandar esses cientistas todos tomar um bocado de cachaça. Bjs" (Ana Reis).



[suely.jpg] "Adorei! Lembrei de tia Madalena, que também gostava de uma boa ‘talagada’. De como bebíamos juntas, embora eu nunca conseguisse seguir o seu ritmo. Com a sua crônica, muitas lembranças boas vieram à minha memória, assim como um filme que passa lentamente. Obrigada! Foi um jeito muito bom de começar essa quinta-feira. Tenha um bom dia. Um beijo" (Su)/"Recordei das minhas tias de Rio Verde. Quero lhe mandar um grande abraço, pois só uma mulher com você consegue escrever e fazer a gente se emocionar lembrando de nossas histórias" (Soninha)/"Sou fansoquinha de suas histórias e comunicações. Esta tem a sutileza e a ternura de quem conta de nós histórias de nós. Beijim" (Zula).


 “Faaaaaaaatimaaaaaaaa! Lindo, lindo e verdadeiro. Até chorei. Que sensibilidade!” (Thereza Ferraz). "Tens certeza que és maranhense, Fátima? Essa história e o gosto pela cachaça são mineiros! Valeram risos. Bjim". Veja Núbia, duvidona de minhas origens, o que disse "Seu Di", respeitável procurador do Maranhão [que hoje em dia nos recebe, feito rainhas e reis ,na Pousada dos Guarimãs, em Morros, MA]: "Fátima querida, a crônica sobre a cachaça, trazendo a figura da tua tia Custódia, me faz lembrar que tu, mesmo há tempos fora do Maranhão, não perde as referências. Não esqueceste o linguajar maranhense, que está sendo trocado pelo imposto pela TV. Bem que podias, se é que já não fizeste, um texto sobre o nosso modo de falar. Coisas do tipo: hem-hem (bem nosso), atraca, xamató (será com x?), pai-d’égua, bogue, esbandalhada, cantareira (do pote e da clavícula), etc. Seria interessante. Teu texto é livre, leve e solto. Gostoso de ler, mesmo. Pessoa inteligente é outra coisa... Cheiro" (Djalma Filho).




 Roland, meu amigo filósofo, disse: "Estava indo dormir porque tenho aula amanhã, mas chegou teu texto maravilhoso e te agradeço, embora tenha perdido o sono, que, para mim, é indício de algo que me comoveu e me faz pensar. A gente descansa depois. Obrigado, minha amiga. Um beijo". Contei que a crônica tocou muitas pessoas. E ele falou: "Isso mostra que seu texto comoveu outras pessoas sensíveis e que sabem ler as palavras atrás das palavras (´les mots sous les mots´), como dizia um dos vários mestres que tive o privilégio de ter como professor em Genebra, nos longínquos anos 70, Jean Starobinski".





Luiz, mineiro ausente, pediu que lembrasse a obra-prima que é cachaça com lingüiça de porco. Quirino, arrasou: "Prezada Fátia, permita-me a intimidade assim de pronto, mas com colegas de apreciamento não acontece muita cerimônia. Além do mais, amiga de amigo meu já é meio amiga sem nem conhecer. Meu caro amigo Volnei Garrafa, bioeticamente, pôs o teu texto em uma lista da qual participo. Coisas de amigo essa de presentear. Um grande número de participantes da lista, até não apreciadores da danada, prestaram efusivos agradecimentos pela oportunidade de lê-la. Fui além, brindei com umas duas ‘Paraíso-coração’ (coração é a melhor tirada, bem mais suave do que a cabeça, esta, a mais forte), aí de Minas também. Vale a pena bebê-la, mesmo que não seja, literalmente, na forma custodiana. Minha companheira e eu apreciamos bem. Chamou-me a atenção o fato de tia Custódia ser uma maravilhosa cozinheira. Lá em casa, um domingo ou outro a companheira Luzia resolve, por puro prazer, cozinhar (...) Ela não cozinha normalmente, mas nesses domingos, meia garrafa se transforma em imaginação e sabedoria culinária. A outra metade, bebo eu a auxiliá-la, ou às vezes só olhá-la. Deve haver alguma ligação entre a cachaça e a culinária. Continue apreciando, pois desconfio também que pode haver alguma ligação com a beleza do texto". 




E ainda mandou um abraço! O espanto é porque essa de mandar um abraço é uma coisa muito esquecida. Mas esse povo da cachaça, pelo visto, gosta de uns beijos. De abraços também. "Faz tempo que não nos falamos. Adorei essa crônica! Grande abraço" (André)/"Adorei, maravilhado, teu artigo. Tomei a liberdade de enviá-lo para minha ‘turmadofutebol’. Beijo grande" (Volnei). "Menina, fiquei maluco com sua crônica. Sou mineiro e gosto de saborear umas e outras. Normalmente tenho em casa em garrafões. Seu artigo deveria ser publicado na  mídia nacional. Tudo bem, a Internet leva longe... Basta dizer que a recebi de um primo que  mora em Brasília, que adora uma cachacinha também. É isso" (Iraq)/"Claro que acompanho suas mil atividades de militante e mulher, mas de vez em quando você surpreende. Que delícia sua crônica. Gostosa feito uma boa cachaça. Vou até ao canto onde um móvel antigo abriga minhas cachaças em embalagens de louça e vidro e vou tomar uma em homenagem. Um abraço" (Chico Vilela). Vamos beber umas quando Kerry ganhar.


Fátima Oliveira escreve no Magazine às quartas-feiras.
Beagá, MG, 14 de abril de 2004
E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br
www.otempo.com.br
(Museu da Cachaça, Betim, MG)




O costume de rezar a marvada antes de ingerí-la é antigo e vem, provavelmente, do sincretismo religioso de um país repleto de santos, deuses e orixás. O gesto de "dar um gole pro santo" nasceu aliado ao costume de se recitar uma pequena reza, geralmente carregada de humor - e de um humor quase obsceno em alguns casos. Reproduzo, abaixo, algumas das rezas que Villela resgatou em suas andanças pelos botequins de Brasilia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo:
Reza do Diabo
Tu és para mim e eu sou para ti / Tu vais me matar, mas eu vou te engulir! / Deus é pai, cachaça é mãe / Arreda, figo, que lá vai veneno! / Abre-te tripa, que lá vai o diabo de cabeça para baixo! / Arriba, abajo, al centro, adentro!
Reza do tira-gosto
Carro sem roda não anda / bêbado deitado não cai / chifre de corno não fura / cachaça sem tira-gosto: não vai !
Reza da beira do rio
Morena, eu quero um beijo / mas não quero no pescoço / quero no bico do peito / que é lugar que não tem osso / pinga: não me aborreça! / desça já pra barriga / não me ataque a cabeça!
Reza dos passarinhos
Papagaio do rabo verde / mosquito do zóio azul / ninguém me serve cachaça / vão tudo tomar no cu / piriquito do bico branco / sabiá do cu vermeio / se aqui se vende a mardita / eu tô no meio.

FONTE: Botequim do Bruno