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terça-feira, 31 de maio de 2016

Êh, meu boi: “Mamãe eu vi Boi da Lua dançar no planeta do Brasil”

,  (DUKE)
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Busco arrego em Guimarães Rosa: “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Papete (José de Ribamar Viana) virou encantado em 26.6.2016. “Mamãe eu tô com uma vontade louca/ De ver o dia sair pela boca/ De ver Maria cair da janela/ De ver maresia /Ai maresia... Bandeira de aço/ Bandeira de aço...” (César Teixeira).
Papete foi meu conforto mental naquilo que a filosofia rosiana diz que “viver é um rasgar-se e remendar-se”. Papete foi um ombro amigo de travessia. E travessia é travessia, pois “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (Guimarães Rosa).



 Fora do Maranhão por quase 30 anos, tive a companhia fiel de Papete e ninei filharada e netaiada com seu disco “Bandeira de Aço” (1978), bem cultural imaterial do Maranhão – que, para Flávio Paiva, “é um trabalho essencialmente inoxidável, em seu caráter anímico, zoomórfico e arquetípico, de sotaque de orquestra, matraca, zabumba e viola... Parte da trilha sonora do Brasil profundo” (“Bandeira de Aço”, 2013).


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 Aqui, em casa, as músicas de “Bandeira de Aço” são acalantos! Sabemos acompanhar “Boi da Lua”: “Meu são João.../ são João, meu são João/ Eu vim pagar a promessa/ De trazer esse boizinho/ Para alegrar sua festa/ Olhos de papel de seda/ Com uma estrela na testa... Chora, chora/ Chora boi da lua vem pedir uma esmola/ Pra aquela boneca de anil/ Mamãe eu vi boi da lua/ Dançar no planeta do Brasil” (César Teixeira).



   (Boi da Lua)

  Engenho de Flores” alumbra: “Ê alumiô, toda terra e mar/ Ê alumiô, toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora qu’eu quero ver/ se couro de gente é pra queimar (bis)/ Vou pedir pra são João/ Cosme e Damião/ Pra nos ajudar...” (Josias Sobrinho).


 (Papete, por DUKE, O TEMPO, 24.6.2014)


  Clarinha, que teve a honra de ver e ouvir Papete no palco, diz toda faceira: “É boooi! De boi eu gosto, num é, vovó?” É boiera! Luana e Lucas, cariocas: “Vó, bota aí as músicas do Maranhão”. E Inacim, o neto gaúcho, grita: “É lua”! Repito: “Papete, a expressão do sagrado do são João maranhense” (O TEMPO, 24.6.2014).



 (Papete e sua  mulher Gisele Paiva)
 Papete não é um ilhéu da gema. Nasceu na beira do rio Mearim, em Bacabal (MA), em 8.11.1947. A cosmovisão ilhéu ludovicense impregnou seu jeito de ser e fazer profissional de cantor, compositor e multi-instrumentista: um dos cinco melhores percussionistas do mundo e a maestria inimitável com o berimbau.


Músico na noite de São João Papete declarou: “O são João, para mim, é uma parceriacom a minha parte espiritual. Isso, para mim, é um compromisso religioso com aminha infância, de resgate do meu passado, e um encontro com tudo aquilo que acredito.Eu amo a cultura maranhense” (2011).


  Com seus dons musicais e suas esmeradas técnicas, Papete tinha estofo para brilhante carreira apartado da produção musical maranhense, porém o senso tolstoiano, já aflorado em “Bandeira de Aço”, bradou: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia” (Leon Tolstói, 1828-1910).


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Tolstoiano, desde 1990, Papete, com sua banda, se dedicou a interpretar músicas do Maranhão, a pesquisar e a divulgar compositores maranhenses, a exemplo do livro “Os Senhores Cantadores: Amos e Poetas do Bumba Meu Boi do Maranhão” (Editora Ipsis, 2015), cuja inspiração foi a solidariedade: “Ao perceber que Coxinho, um dos maiores ícones do bumba meu boi maranhense, morreu pobre e sem receber as honrarias devidas, pensei que devia fazer algo para preservar a memória daqueles que muito fizeram pelo nosso bumba meu boi, e daí veio a ideia para esse projeto”.


   Papete é o Maranhão por inteiro, benzido e encruzado: olhos de papel de seda com uma estrela na testa.

 PUBLICADO EM 31.05.16
 FONTE: OTEMPO


Resultado de imagem para César Teixeira, Josias Sobrinho, Sérgio Habibe e Mota Discografia de Papete: Berimbau e percussão (1975), Bandeira de Aço (1978), Água de Coco (1979), Planador (1982), Papete (1987), Rompendo fogo (1989), Bela Mocidade (1991), Voz dos arvoredos (1992), Laço de Fita (1994), Música Popular Maranhense (1995), Papete (1996), O melhor de Papete (1997), Tambô (1999), Era uma vez… (2004), Jambo (2006), Aprendiz de cantador (2008), Estrada da Vitória (2010) e Senhor José (2013).

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terça-feira, 24 de maio de 2016

As fontes ornamentais, o feng shui, a política e a democracia

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Desconfiai de gente muito áspera e dura que nunca tem tempo a perder, que acha que só ela faz política e que o resto do mundo faz corpo mole e ainda olha de cara feia para quem se encanta com uma poesia, uma música, uma plantinha, um livro, o doce barulho e o frescor de uma fonte ornamental. Tais pessoas nem fazem política como deveriam, a busca do bem-estar comum, nem são boas companhias. Fujo delas!


 Outro dia, uma implicou com uma fonte ornamental que tenho em minha sala e que embala o meu escrevinhar. Não adiantou eu enumerar os benefícios para o bem-estar e a sanidade mental advindos de uma fonte, tais como: em dias de muito calor, umidifica o ar, refrescando o ambiente, e o barulhinho da água acalma, relaxa... E quem no campo democrático não precisa de uma válvula de escape em tempos tão bicudos? Sem falar que uma fonte diminui exponencialmente a necessidade do ar-condicionado. Em suma, diminui a conta de luz!
“O Brasil pegando fogo, a democracia em risco, sendo destruída, eu precisando conversar sobre política porque estou muito angustiada, pergunto o que está fazendo, e a resposta é que está limpando sua fonte! Morri! Além da simplicidade voluntária de cuidar de seu mundo de cactos, só falta agora ser seguidora do feng shui!”.
Repeti o que estou lembrando porque as recriminações preconceituosas foram longas e chatas. Respirei. Indaguei se havia terminado. Minha cabeça estava a mil. Como se não bastasse a onda fascista em curso no país, aparece uma amiga babaca com dor de consciência. Que fase!


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   Sim, dor de consciência, pois se eu, com meus sessenta e tantos anos, comecei a lutar contra a ditadura militar de 1964 ainda nos anos 60, e desde então tenho militância política sempre na esquerda, ela só descobriu a política após os 40 anos. No PT. E sempre foi da articulação, aquela corrente política mais branda, para quem a luta de classes não existia mais. Agora, ela é radicalíssima. Depois de 13 anos na fetichista Brasília, pouca gente quer imaginar morar em outro lugar! O poder tem seus mistérios e encantos. Eu acredito.


   “Amada, ‘me erra’! Cuide de sua vida que da minha cuido eu. Aliás, sempre cuidei. Só não entendo por que está implicando com meus cactos, minha fonte e minha opção pela filosofia da simplicidade voluntária”.
E enveredei, colocando na vitrine que ela fazia um discurso antigo e carcomido, típico de uma visão política que não vai além do uso da política para fins eleitoreiros; que estava sendo antidemocrática ao extremo e discursando que está preocupada com o ataque à democracia que estamos vivenciando!
E lacrei: “O que você fez durante tantos anos para que não chegássemos aonde estamos, fora arrotar que a luta de classes havia acabado, só porque o objetivo final de vocês era gerenciar a crise do capitalismo no Brasil?”.


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Estou onde sempre estive desde que comecei a fazer política: ao lado do povo, defendendo suas demandas mais prementes por cidadania – por justiça racial/étnica, por justiça de gênero, enfim contra todas as opressões, incluindo a de classe!


 “Acha que uma fonte poderia melhorar meu estado de espírito?” Ai, que susto eu tive! “Não estou nem dormindo direito, mesmo tomando calmante”.
“Ah, vai ter de apelar para o feng shui” – cultura milenar chinesa de harmonização de ambientes – e toda a sua teorização sobre a conservação das energias positivas e o redirecionamento das energias negativas, que afirma que as fontes de água corrente têm o poder de neutralizar energias negativas e atrair energias positivas. Se bem não fizer, mal não fará.


 PUBLICADO EM 24.05.16
 FONTE:  OTEMPO

terça-feira, 17 de maio de 2016

É dever democrático: banir a perspectiva de um futuro roubado

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Ler é um dos maiores prazeres de minha vida. Devo parte substancial do que sou aos livros que li, tanto científicos quanto literários. Estou sempre com livros na mesinha de cabeceira (não durmo sem ler algo!), no carro, na bolsa...


Ler é bater pernas pelo mundo com as endorfinas nas alturas Relembrando o que já fiz para ler – “desde ‘botar’ marido pra dormir, esperar o danado cair nos braços de Morfeu, ligar o abajur e abrir o livro... ai que ‘trepeça’ boa!.. –, não imagino um mundo sem livros de papel. E os prazeres inenarráveis de abrir, folhear e ler um livro? De marcar onde parou, fechá-lo e a fissura de retomar a leitura?” (“Ler é bater pernaspelo mundo com as endorfinas nas alturas”, O TEMPO, 1º.11.2012).


Resultado de imagem para cozinha com fogão caipira   Em “Lembranças de uma cozinha e da primeira galinhacheia” (2.12.2008), revelei um pouco de minhas vivências de menina sertaneja que bateu asas e voou, ultrapassando as fronteiras do sertão, e que percorreu o mundo duas vezes, carregando-o no peito. A primeira, por meio da leitura. Ler é bater pernas pelo mundo... A segunda, presencialmente. É muito para quem não nasceu em berço de ouro e não é caixeira-viajante. Eu sei. Mas a medicina legou-me asas (“Ainda saudosa da cozinha no sertão, apesar da trabalheira”, O TEMPO, 9.12.2008).


 (Inácio)
 (Lucas e Luana, comandando Cavalgada, Haras Bella Vista, dezembro 2008)



Na semana passada, recomendei “O Futuro Roubado”, de Theo Colborn, Dianne Dumanoski e John Peterson Myers (L&PM Editores, 1997), numa crônica que escrevi pensando em minhas netas Luana e Maria Clara e nos netos Lucas e Inácio, pois já estou quase na prorrogação de minha expectativa de futuro, mas a “netaiada” tem futuro pela frente.

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E registrei: “O título ‘O Futuro Roubado’ hoje é mais que um livro. É também um conceito político de resistência aplicável a conjunturas políticas que retiram, usurpam, entravam direitos e roubam a cidadania, tornando perenes as assimetrias econômicas, as exclusões e as vulnerabilidades sociais e políticas” (“‘O Futuro Roubado’ é um livrocientífico que dói na cidadania”, O TEMPO, 10.5.2016).


  (Paulo Tedesco)


Parênteses para dizer que fiquei impactada com o artigo de Paulo Tedesco “O golpe no mundo do livro”, no qual diz que, “em tempo de golpe político, é bom repensar o mundo do livro e dos autores e sua trajetória em períodos repressivos” ; e reaviva nossa memória com alguns autores clássicos que passaram por situações complicadas diante de momentos políticos: Dostoiéwski, Antonio Gramsci, Graciliano Ramos, Federico Garcia Lorca... (Vermelho, 9.5.2016).


 Clarinha, minha neta, mal deitamos, pega um livro e os meus óculos de leitura dizendo: “Vamos ler, num é, vovó?”. Agora que ela está lendo, ainda titubeante, travamos uma peleja para ver quem vai ler. Outro dia ela “me pegou de jeito”.
Nas mãos, meu livro “Então, Deixa Chover”, cuja capa ela venera – uma mulher montada num cavalo com suas duas filhas e o filho –, indagou como eu o escrevi. Conversa vai, conversa vem, pediu-me que eu contasse a história sem ler o livro!

– Mas, Clarinha...
– Escreveu, não escreveu? Como não sabe contar sem olhar no livro?
Que jeito, né? Falei, falei... “Agora, vó, lê no livro!”. Já cansada, li um trechinho... Cochilava quando, como num sonho, ela retirou cuidadosamente meus óculos, o livro de minhas mãos, verificou meus lençóis, beijou meu rosto num sorrisinho matreiro, se achegou, e dormimos abraçadinhas...
Pela manhã, ainda na cama, disse-me: “Ih, vovó, estou preocupada. Fica lendo, lendo e dorme. Pode quebrar os óculos! Toma cuidado, vó! Depois, como vai escrever no computador as histórias tão bonitas que tua cabeça inventa?”. E rimos. Ô delícia...
Eis um futuro que não podemos permitir que seja roubado!


 (Clarinha com sua Família Pepa Pig) 
 PUBLICADO EM 17.05.16
 FONTE: OTEMPO