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terça-feira, 27 de outubro de 2015

“Cuidados” como balizadores da atenção em saúde

   ("Professor Alcino")
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_



Compartilho trechos do capítulo “Política médica”, que escrevi no livro “Médico – Profissional Diferente” (Folium Editorial, 2012), organizado pelo professor emérito da UFMG Alcino Lázaro da Silva, cirurgião, um ser humano de muitos dons, sobretudo o de gostar de cuidar de gente!


(Foto extraída de: Reconstruindo a parede abdominal: o advento de uma técnica, de Renato Miranda de Melo) 



“No mundo contemporâneo há um entendimento generalizado de que as profissões não podem se furtar aos contratos sociais e éticos do tempo em que são exercidas. Aqui temos um ponto crucial da revalorização do profissional médico, pois, a meu ver, a medicina jamais perdeu prestígio, ao contrário, acumula cada dia mais e mais prestígio perante a sociedade, já que as pessoas confiam e têm esperança na ciência médica. No entanto, avalio que o médico teve perda de prestígio social e de poder também, ressaltando que poder e prestígio não são palavras sinônimas, logo, são de natureza incomparáveis.
“Destaco que circula em meio à categoria médica uma saudade de um tempo idílico em que o médico gozava de um prestígio social quase divino. Evidentemente, é impossível um retorno a tal estado de ser, por vários motivos.


   (Escola Anatômico-Cirúrgica e Médica, em Salvador, Bahia - 1808) 


Em primeiro lugar, porque isso ocorreu no Brasil até há mais de três décadas, em um tempo em que os médicos eram em número reduzido; considerando-se o tamanho continental do Brasil, então, constituíam uma raridade. Registro que só em 5 de novembro de 1808, por decreto de d. João VI, foi criada a Escola Anatômico-Cirúrgica e Médica, em Salvador, na Bahia; e em 1832, foi instalada a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.


  (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1832)


“Em segundo, porque os procedimentos diagnósticos, digo: exames complementares, além de poucos, eram quase rudimentares, logo o desempenho médico era baseado muito mais no tino clínico e na experiência cotidiana, sem que houvesse meios que fizessem face a tal estado de coisas. Outro elemento importante quando se analisa esse tempo idílico é o poder descomunal de médicos como ‘deuses da medicina’, pois estavam envoltos numa aura de senhores da vida e da morte diante de pessoas e famílias fragilizadas em meio às doenças.
“Hoje o contexto é outro, não apenas pelos avanços exponenciais da medicina, como também pelo perfil da clientela – massivamente de serviços públicos de saúde, mais esclarecida, em particular, mais consciente dos seus direitos; e a crescente judicialização das demandas por tratamentos da medicina de alta tecnologia, ou mesmo acesso a UTIs, fatos que, forçosamente, alteram o espectro do contrato social e ético que deve ser firmado entre as partes, ou seja, médicos versus clientela e, por tabela, com a sociedade de modo geral e o governo.
“Uma política de atenção integral à saúde pressupõe que ‘cuidados’, enquanto cuidar bem das pessoas, balizam toda a ação. Evidentemente, falo do ideal, daquilo a que as pessoas têm direito. Sabemos que na vida real não é bem assim.
“E nos preocupamos que não seja assim, sobretudo porque, para que cuidados sejam balizadores das ações em saúde, precisamos, minimamente, que duas categorias profissionais da área de saúde repensem seus parâmetros culturais, cujos valores se perderam, paulatinamente, no tempo. Eu sou partidária da hipótese de que vivemos em uma época que sedimenta uma cultura em que formamos profissionais da medicina que não gostam de gente e de profissionais da enfermagem que não gostam de cuidar.
“Se isso é verdade, o estabelecimento de uma política nacional de cuidados em saúde necessita atacar tais males em suas raízes. Urge um processo de revolucionarização do aparelho formador da área de saúde”.


 
PUBLICADO EM 27.10.15
12  FONTE: OTEMPO

Sem o SUS, o Brasil retrocederá ao tempo dos indigentes

12  (DUKE)
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Não é catastrofismo, mas, na toada em que vamos, ou o povo se levanta em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS), ou o Brasil retrocederá ao tempo dos indigentes. O processo está em curso. As ameaças são reais.


demolição-sus  Para Marcelo Pellegrini, o “maior sistema público de saúde do planeta, o SUS, é uma obra em demolição”. E relembra que a Agenda Brasil, proposta do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), previa “a possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda” (“Projetos em tramitação no Congresso ameaçam a sobrevivência do sistemaúnico”, 15.8.2015). Dilma não caiu na vigarice, mas parou por aí.
O jornalista João Paulo Cunha avalia: “Na recente reforma ministerial, a Saúde entrou como moeda de troca. Saiu um ministro identificado com o SUS e com os valores da reforma sanitária, e entrou um político profissional do mais fisiológico dos partidos, o PMDB. Pode-se argumentar que, como política de Estado, o SUS esteja preservado em sua esfera de atuação. Sabemos que não será assim” (“O SUS é maior que o governo”, 13.10.2015). No Congresso Nacional, tramitam várias propostas que visam minar o SUS, sem esquecer que a presidente sancionou a MP 656, de dezembro de 2014, que permite o capital estrangeiro na saúde!


praquelado


Dá para imaginar viver num Brasil sem SUS? Sabe o que é morrer à míngua, como um cão sem dono? É um cenário de terror, “como dizia o meu avô, nos moldes do vale o que possui: ‘Quem tem um barraco, um cavalo, um jegue ou um cabrito, quando adoece, vale um barraco, um cavalo, um jegue ou um cabrito!’”. Antes do SUS, eram nossos bichos quem nos salvava na doença, então eu não troco um dia de SUS de hoje, por pior que ele seja, por um da era pré-SUS.
“Na era pré-SUS no Brasil, quem não possuía barraco ou bicho pra vender pra ‘se tratar’ era tipificado como indigente, foco da caridade das antigas Santas Casas, ou morria à míngua. O SUS acabou com a figura do indigente da saúde, mudando radicalmente 500 anos de história do Brasil, quando o doente valia o que possuía” (“O maior mérito do SUS é aextinção do indigente da saúde”, O TEMPO, 24.11.2009).
O SUS, além de ser o maior sistema público de saúde do mundo, é a maior conquista democrática do povo brasileiro! Repito: “O SUS é uma conquista que precisa ser concretizada cotidianamente. Temos problemas de gerenciamento, de incompreensão política dos governos e até de usuários que usam o pronto-socorro até para espirro.
“Outro problema: às 17h, todo lugar que faz consulta na rede pública neste país está fechado! Sou defensora intransigente do terceiro turno no setor de saúde, tanto em postos como em ambulatórios. Se eles funcionassem à noite, as pessoas não precisariam faltar ao trabalho para fazer uma consulta. Ampliaria o número de consultas e geraria mais empregos”.
E mais, a mídia sataniza o SUS. “O falar mal do SUS é muito patente. A mídia está sempre do lado do contra quando tem uma votação que prevê mais dinheiro para o SUS. Ela não quer que o SUS tenha mais dinheiro. Foi assim com a CPMF, ou com qualquer projeto, e teve também um papel decisivo na ampliação dos planos de saúde no Brasil, dourando a pílula. Os planos de saúde venderam uma coisa que não tinham. Venderam tanto que agora deu ‘crap’” (entrevista à “Gazeta do Povo”, 18.12.2011).


   Como disse uma mulher numa UPA em São Luís abarrotada de gente, com apenas duas cadeiras reclináveis na sala de medicação: “Se eu visse Dilma, diria: mulher, torne o SUS aquilo que a gente precisa na hora da doença e da morte, que eu quero ver quem vai mexer contigo!”.

PUBLICADO EM 20.10.15
FONTE:OTEMPO


Gustavo Andrade/O Tempo /   ENTREVISTA: “Se você tinha um cavalo, você valia um cavalo quando adoecia (Publicada em 19.12.2011)

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A profanação de rituais fúnebres é imoral e criminosa

1  (DUKE)
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


A deferência aos mortos é tradição em todas as culturas conhecidas e estudadas até hoje, e o respeito aos mortos é extensivo à família enlutada. As carpideiras existem em todo o mundo. É exemplar o quarup – ritual religioso intertribal dos povos indígenas do Alto Xingu que celebra mortos ilustres.

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Há sempre alguém para chorar quem morreu, mesmo que em vida não tenha feito por onde merecer ser pranteado. Por mais desprezível que seja o ser humano, depois de morto recebe lágrimas, ainda que seja um lamento pelo que poderia ter sido e não foi, o que é uma explicação filosófica.
A morte e o morrer são temas instigantes da bioética, a ética da vida, que despertaram a minha atenção para os rituais fúnebres de diferentes povos. O respeito aos mortos é pancultural. Há tréguas em guerras para que os mortos sejam enterrados.


 Foi com perplexidade que li sobre a profanação do velório de José Eduardo Dutra, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e da Petrobras – cujo nome não aparece em nenhuma denúncia da empresa! O que torna mais espantosa a chamada do panfleto, jogado na porta do velório: “Petista bom é petista morto!”.
Dois delitos graves: profanação praticada contra um morto e usurpação do direito que tem a família de velar em paz o seu morto! Em que mundo vivemos que não podemos sequer velar nossos mortos? Até animais velam seus mortos!


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         Em “Morrer é o destino igualitário e inexorável do ser humano”, declarei que “a minha relação com meus mortos é de muita deferência... Compreendo que somos programados para morrer!” (O TEMPO, 4.11.2014).
Na cultura nordestina, a gente se despede de pessoas conhecidas que morrem indo à sentinela (velório) e/ou ao enterro, como uma obrigação moral natural, tanto é que velórios e enterros são “pontos de encontro”, sobretudo no sertão. Aprendi a respeitar a morte e os mortos desde tenra idade.
Meu primeiro marido dizia que eu tinha muito medo de não ter gente em meu velório porque eu ia a muitos, sobretudo acompanhando o meu avô Braulino, que vestia sempre a sua melhor roupa de linho bem engomada para velar uma pessoa amiga. E ele marcava presença nos velórios comigo a tiracolo. Meu marido não entendia porque ele não ia de táxi ou eu não contratava um chofer para ele. Eu respondia que não seria tão “sertão”, com dois significados: o de certo e o do nosso lugar cultural!
Tenho a morte como realidade bem próxima. Quando criança, eu me pelava de medo de gente que morria. Até de anjinhos. Quando passei no vestibular de medicina, uma irmã do meu avô disse: “Como que a Fátima vai ser médica se morre de medo de defunto?”. Apenas uma pálida ideia de quão medrosa eu era. Hoje, entendo as razões do meu medo: um contato muito cedo com a morte numa época em que fazer medo com morto – que puxava o pé de criança desobediente – era habitual.
Fui uma estudante de medicina que tinha pavor de defunto, caso não visse a cara de quem estava “num pacote” (nome horrível!). Depois de médica, o medo virou necessidade de saber “quem morreu”, caso contrário eu ficava em busca de um rosto. Não era propriamente mais um medo.
Fiquei órfã de pai aos 10 anos. Perdi uma irmã, Cássia Maria, com uns 2 anos de idade, intoxicada com querosene, pouco tempo após a morte de papai (1963), e em seguida o meu avô paterno também faleceu. O meu marido faleceu de modo trágico num acidente de cavalo quatro dias antes de eu completar 32 anos (1985). Rememorei meus mortos para ter uma vaga ideia do que sentiria ao ver seus rituais fúnebres profanados. Exigiria justiça!


  PUBLICADO EM 13.10.15 
  (Taj Mahal, Agra, Índia - mausoléu que é um monumento ao amor)

 FONTE: OTEMPO

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Honestidade intelectual faz falta para olhar a realidade

01  (DUKE)
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_



Muito já foi escrito de 2 de outubro para cá sobre a reforma ministerial efetivada pela presidente Dilma Rousseff. E antes também, sobre quem ficaria e quem sairia, referente a ministérios e a quem ocuparia as pastas remanescentes.
Muito choro e ranger de dentes, desesperança e desânimo entre pessoas que apoiam o governo. Li bastante sobre o assunto, declarações favoráveis e desfavoráveis, para embasar a minha opinião na presente tentativa de análise de perdas e ganhos, ainda inicial e sem pretensões de esgotar o tema, que é vasto, complexo e eivado de paixões.
Tentei manter algum distanciamento das áreas nas quais tenho uma história militante: opressão da mulher, opressão racial/étnica e saúde, sobretudo a defesa do SUS – as mais ceifadas, inegavelmente, pela reforma ministerial. Parecia um pesadelo, mas era realidade, e ela se impôs.




A entrega do Ministério da Saúde (de porteirafechada?) a quem nunca deu um prego numa barra de sabão em defesa do SUS, ao contrário, é surreal! Considero fora de propósito e um equívoco ideológico e político a junção da Secretaria da Mulher com a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Direitos Humanos, configurando o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, que vejo como um ministério mala e, como tal, de pouca serventia, mas ter Nilma Lino como ministra é um alento.


 Desanquei o patriarcado, que está vivíssimo e mostrou bem suas garras; o racismo é uma fé bandida e se mostrou de dentes arreganhados; e repeti à exaustão que saúde não é moeda de troca, mas foi, e para mãos não confiáveis! Quer mais? Não vou enumerar tudo para não sangrar mais minhas feridas. Me poupe: “Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor” (“A Flor e o Espinho”, de Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Alcides Caminha).

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 Governo sai das cordas e oposição fica nos braços de Cunha


Estou desde sexta-feira passada dando chiliques e pedindo “meus sais”! Maldisse Altamiro Borges, que teve o topete de escrever “Reforma ministerial desanima os golpistas”; maldisse Ricardo Kotscho e seu lúcido “Dilma sai das cordas; oposição apoia Cunha”; e maldisse o editorial do Portal Vermelho, que, com serenidade irritante, diz, sob o título “Reformaministerial e a nova maioria pelo desenvolvimento”: “A reforma ministerial foi uma importante vitória do governo liderado pela presidente Dilma... Uma reforma da administração e uma recomposição do ministério, dentre outras medidas importantes”.




Um esforço que faço quando estou numa encruzilhada política é ter como guia uma visão panorâmica, no caso a conjuntura brasileira. Para tanto, recorro à metáfora de uma árvore que plantei – ela é minha – numa floresta pegando fogo!


 A conjuntura nacional é uma floresta ameaçada pelo fogo, e as minhas áreas de militância são as minhas árvores que estão na floresta ameaçada de virar cinza. Lembrem-se de que, naquela floresta, eu tenho três árvores, a saber: as lutas pelos direitos da mulher, pela igualdade racial e pelo SUS! O que fazer?
É evidente que, se eu desejar preservar tão somente as “minhas árvores”, sem a preocupação de defender toda a floresta, corro o risco de perder as “minhas árvores” e toda a floresta!... De modo que urge que eu tenha honestidade intelectual de ver as “minhas árvores” como parte da floresta que está em chamas.
Maldisse todos que li e que me forçaram a ver a floresta que estava pegando fogo e um incêndio sendo contido. Resta-me o consolo dos versos de Brecht (1898-1956): “Fôssemos infinitos/ Tudo mudaria/ Como somos finitos/ Muito permanece”.


 PUBLICADO EM 06.10.15

 FONTE: OTEMPO