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terça-feira, 29 de abril de 2014

Deises e Leilanes: abandonadas sem vale-táxi e SAMU-cegonha

12   DUKE
Ministério da Saúde deveria chamar prefeitos à responsabilidade
Fátima Oliveira
Médica -
fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_
 


É cruel a assistência ao parto em muitos recantos do país. Não me calo para não ser cúmplice. Registrei em “O parto roubado é um conceito político de resistência: assistir ao parto exige competência técnica, humanística e ética. Vale para obstetras, obstetrizes e parteiras tradicionais, igualmente” – sobre a cesárea por ordem judicial de Adelir Carmen Lemos de Góes, de Torres (RS), marco inaugural da judicialização da atenção obstétrica e neonatal, sobre a qual o Ministério da Saúde (MS) tem feito solene silêncio. “E La Nave Va...”, um filme de Fellini.
 
 
Jovem dá à luz na porta de maternidade em Santo Amaro, na Bahia (Foto: Imagens/TV Bahia)   (Jovem dá à luz na porta de maternidade, Santo Amaro da Purificação, Bahia)
 
Se a judicialização da atenção obstétrica e neonatal é coisa nova, as velhas estão firmes em tempo de Rede Cegonha – lembram? Escrevi em 12.4.2011: “Em 28 de março passado, a presidente Dilma Rousseff lançou, em BH, o Rede Cegonha, uma customização, sem os devidos créditos, de ações bem-sucedidas e em curso, como o Pacto Nacional de Redução da Morte Materna e Neonatal (2005), área de relevância da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM, 2003). De novidade, a agregação de ações sociais para grávidas, parturientes, puérperas e filhos de até 2 anos, como vale-táxi e Samu-cegonha; e a guinada ao conceito superado de saúde materno-infantil. Mulher é mulher, e criança é criança; exigem abordagem autônoma e integral na atenção à saúde. (...) Sem arrodeios, o Rede Cegonha retalha a diretriz do Ministério da Saúde para a saúde da mulher (PNAISM), com viés conservador, a saúde materno-infantil” (O TEMPO).
 
 
 
Enquanto o Ministério
da Saúde não descobrir
que há uma diferença brutal
entre o preconizar e a vida
concreta, as mulheres
continuarão desamparadas
na hora do parto.

 
 
  (Ministro da Saúde Arthur Chioro)


São situações em que o ministro da Saúde e a ministra da Mulher, pelo menos, deveriam ter ocupado rede nacional de rádio e TV chamando os prefeitos à responsabilidade! É assim que se educa um povo e se cria uma nova mentalidade! Até agora, a voz do governo é uma nota, frágil e panfletária: “O Ministério da Saúde repudia, veementemente, os episódios de duas mulheres – uma no município do Rio de Janeiro e a outra na cidade de Santo Amaro da Purificação, na Bahia –, que deram à luz sem as condições mínimas para a realização de procedimentos relacionados ao parto, conforme retratou a imprensa”.
O Ministério da Saúde acionou, na segunda-feira (21), equipes locais do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) para apurar as ocorrências, em conjunto com os gestores locais de saúde, a fim de identificar e responsabilizar possíveis casos de negligência no atendimento ou omissão de socorro por serviços e profissionais de saúde. O Ministério da Saúde informa que, somente em 2013, financiou a realização de 1,9 milhão de partos na rede pública. Para os partos no SUS, o ministério preconiza condições adequadas de infraestrutura, atendimento humanizado e respeito à saúde e dignidade das mulheres e dos bebês” (Viomundo, 22.4.2014).


Divulgação (Ministra da Mulher, Eleonora Menicucci)
 

   Enquanto o MS não descobrir que há uma diferença brutal entre o preconizar e a vida concreta, as mulheres continuarão desamparadas na hora do parto.


O Rede Cegonha e a atenção integral à saúde da mulher

 
O Rede Cegonha e a atenção integral à saúde da mulher (Duke)
PUBLICADO EM 29.04.14 

terça-feira, 22 de abril de 2014

O cheiro e o sabor das berinjelas ao amor de Fermina Daza

12 (DUKE)
Conta García Márquez, em "O Amos nos Tempos  do Cólera"
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_  


Em “O Amor nos Tempos do Cólera”, Gabriel García Márquez (1927-2014), ex-aluno montessoriano, conta que Fermina Daza foi amada por Juvenal Urbino, médico, de família tradicional e rica, com quem casou e teve dois filhos, Ofélia e Marco Aurélio; e por Florentino Ariza, celibatário que a esperou por 51 anos, 9 meses e 4 dias, pois a conheceu quando tinha 19 e ela 13 anos.


 (Cartagena das Índias. Fotos de Salete)
 
O cenário é Cartagena das Índias. Florentino, reles funcionário dos Correios. Ela, estudante do Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, “onde, há quase dois séculos, as meninas da sociedade aprendiam a arte e o ofício de esposas atentas e submissas”. Trocaram cartas apaixonadas por três anos. Noivaram por carta: “Está bem, caso-me consigo se me prometer que não me obrigará a comer berinjelas”, até que foi expulsa do colégio por ser vista escrevendo cartas de amor.
 
 
  O pai levou-a para “uma viagem de esquecimento”, por quase dois anos. Florentino adoeceu: “Uma reviravolta das tripas, como um eixo de espiral”, que um homeopata diagnosticou: “Os sintomas do amor são idênticos aos da cólera”, que o perseguiram a vida inteira! Fermina Daza dava-lhe caganeira! Comia gardênias: tinham o sabor de Fermina Daza; e bebeu água de colônia para descobrir outros sabores da amada que, ao retornar, disse-lhe: “Hoje, quando o vi, apercebi-me que o que se passou conosco não foi mais do que uma ilusão”.
Na casa da mãe do dr. Urbino, um prato habitual era berinjela e ele adorava! Ela sentia náuseas. Um dia gostou de purê de berinjela! Um dia decretou: “O problema da vida pública é aprender a dominar o terror; o da vida conjugal é aprender a dominar o tédio”. Florentino virou dono da Companhia Fluvial das Caraíbas. Ficou rico para a amada. No dia do enterro do marido confessou: “Fermina, esperei esta ocasião durante mais de meio século, para repetir-lhe uma vez mais o juramento da minha fidelidade eterna e do meu amor para sempre”. Ela: “Desaparece-me da frente! E que eu não te torne a ver nos anos que te restam de vida... Que espero sejam muito poucos”.
 
 
 
 
"O amor era
 amor em qualquer
tempo e em
qualquer lugar,
mas tanto mais
denso quanto mais
próximo da morte”.
 
 
Ele voltou a escrever-lhe cartas. Na primeira visita não pôde ficar: teve reviravolta nas tripas... Viraram colegas de velhice. A filha Ofélia sacou e bradou: “O amor é ridículo na nossa idade, mas na idade deles é uma obscenidade”. Foi expulsa de casa pela mãe, que confidenciou à nora: “Há cem anos, cagaram-me a vida com esse pobre homem porque éramos demasiado jovens e agora querem-no repetir porque somos demasiado velhos”. Acendeu um cigarro com a beata do outro e deitou para fora o resto do veneno que lhe roía as entranhas: “Que vão todos à merda – disse. Se nós, as viúvas, temos alguma vantagem, é a de não ter ninguém que mande em nós”.
 
 


Sem casar, viajou num navio de Florentino, que preparou o gol durante uma semana e não finalizava, até que ela: “Se temos de fazer disparates –disse –, façamo-los, mas como gente crescida”. Na cama, “ela estendeu a mão na escuridão, acariciou-lhe o ventre, os flancos, o púbis quase imberbe... Deu o passo final: procurou-o onde não estava, voltou-o a procurar sem ilusões e encontrou-o inerme. Está morto – disse ele”. Em sua primeira noite com Fermina Daza, ele brochou! Nos dias seguintes, se achou!
 
berinjela recheada  blog da mimis_-2  (Foto da Mimis)
 
 
Na noite da véspera do desembarque, Fermina Daza preparou um prato que Florentino Ariza batizou de “Berinjelas ao amor”. “Pois tinham vivido juntos o suficiente para se darem conta de que o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer lugar, mas tanto mais denso quanto mais próximo da morte”.
 
 
 PUBLICADO EM 22.04.14
Viver Para Contá-la "Em teoria é difícil entender esses prazeres subjetivos. Mas aqueles que os tenham vivido compreenderão de imediato. [...] Não creio que haja método melhor que o montessoriano para sensibilizar as crianças às belezas do mundo e para lhes despertar a curiosidade para os segredos da vida" (Gabriel García Márquez, em sua autobiografia: Viver para Contá-la)
Frases de Gabriel García Márquez
FONTE: OTEMPO

terça-feira, 15 de abril de 2014

Santana do Riachão, o cenário imaginário de “Vidas trocadas”

01 (DUKE)
A médica, sua consciência, o amor ao povo e o governo nem aí!
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_

 
Escrevi três romances: “A Hora do Angelus” (2005), “Reencontros na Travessia: A Tradição das Carpideiras” (2008) e “Então, Deixa Chover” (2013), publicados pela Mazza Edições. Não é incomum receber e-mails que indagam como escrevo meus romances. 


 
Não deixo sem resposta e-mails de quem me lê, seja em crônica, artigo ou livros, estes num total de seis, além dos romances; e sou coautora de, pelo menos, oito livros coletivos dos quais escrevi um capítulo, em geral reflexões filosóficas e políticas sobre bioética, na interface com engenharia genética e/ou direitos reprodutivos. Recebo algumas cartas sobre os livros, daquelas antigas, escritas à mão, que acho pura ternura.


 (Açude de Graça Aranha-MA)

Na semana passada, uma leitora comentou, por e-mail, a crônica “A imanência e a transcendência das coisas e da vida no sertão” (O TEMPO, 6.4.2010): “Como em Nova York e à beira do lago Michigan, em Chicago, pode ficar pensando no torrão natal no meio do nada daquele Maranhão? 
 
Ficheiro:Lake Michigan 2.jpg  (Lago Michigan, Chicago, EUA)

Uma pausa para o descanso às margens do Lago Michigan, em Chicago
Foto: Mari Campos
 

"Ao ler sua poética crônica, fiquei buscando descobrir o que disse ao escrever: ‘Costumo dizer que o sertão que conforta e acaricia o meu viver é, como dizem os rosiólogos, uma paisagem mental perene, que nutre a minha vida e a minha produção literária. Há algo de imanente ao sertão que não nos larga nunca e nos acompanha o tempo todo’.
"Só a entendi quando terminei de ler, ontem, ‘Reencontros na Travessia: A Tradição das Carpideiras’, que abriu meus olhos para as belezas que o sertão encerra, que eu, embora sertaneja, não enxergava. Filha de retirantes nordestinos, não compreendo como, com a vida ‘classe A’ que têm hoje em São Paulo, falam com saudades daquela pobreza crua, imensa e profunda que deixaram lá! Mamãe, tal qual você, diz que a alma sertaneja é só para quem tem uma e é para sempre. Eu perdi a minha e a reencontrei em seu romance!
“Finalizo perguntando: como escreveu um romance daquele, que é puro sertão, se saiu de lá menina? Quero apenas imaginar como nasce a sua inspiração, porque a beleza do seu livro encanta e desperta a gente!”.
 
(Anita Roddick, 1942-2007) 
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"Filha de retirantes
nordestinos, não
compreendo como
falam com saudades
daquela pobreza crua,
imensa e profunda
que deixaram lá!"
 
bodyshop-2Sabonete Babaçu Livre 

 
Como escrevo? Por não encontrar as palavras mais adequadas para dizer como é o meu escrevinhar, faço minhas as palavras do escritor português José Saramago (1922-2010), citadas por Dad Squarisi: "Escrever é trabalho guiado pela inspiração. Há escritores que fazem um plano do que será o livro, com os personagens, as situações e tudo. Eu prefiro deixar que cada palavra que escrevo dê origem à palavra seguinte. E a palavra nova vai criando situações também novas dentro da minha cabeça. E aí me cabe decidir se continuo pelo caminho pelo qual ia ou se aceito a minha provocação involuntária de tomar novo rumo. E essa é a coisa mais interessante que há nesse ofício de escrever”.
Sou leitora compulsiva e adoro escrever. Fui menina nota dez em redação, descrição, interpretação de textos e de imagens. Escrevo para tocar as pessoas. Ao garatujar um romance, o meu único compromisso é contar uma história de vida e, nela, partes de muitas outras. É como desenrolar um novelo de linha com muitas pontas.
 
 
(Jardim de Dálias, de Raquel Taraborelli) 
 
(Meu Jardim, de Raquel Taraborelli)

(Chapéu e Gerânios na mesa, de Raquel Taraborelli)    Enquanto escrevo, moro no mesmo lugar em que vivem as personagens! É uma imersão no mundo delas, até o meu cardápio muda: degusto o que as pessoas dali apreciam comer... Há quase um mês, moro em Santana do Riachão, cidade imaginária onde desenvolvo a trama do romance que estou escrevendo, “Vidas Trocadas”, que são memórias de uma médica do interior, lá nas brenhas, desde quando nem Conselho Federal de Medicina havia! Eram ela, sua consciência, o amor ao povo e o governo nem aí!
 
   (Sant'Ana)
PUBLICADO EM 15.04.14
  FONTE:  OTEMPO

terça-feira, 8 de abril de 2014

O parto roubado é um conceito político de resistência

Adelir de Goes, 29, em fotografia publicada em rede social (Adelir Carmen Lemos de Góes)

Cesariana salva vidas, mas seu abuso viola direitos humanos
Fátima Oliveira
Médica -
fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_

O parto é um evento e uma construção social. Parir é ato fisiológico que pertence à mulher. Não é um ato médico ou de obstetriz. O parto é cercado de ritos, rituais e crendices, conforme a cultura. “Assistir ao parto” é respeitar a sua natureza biológica, social, cultural e espiritual. As parteiras tradicionais, sabiamente, não dizem que “fazem parto”, mas que “assistem a parto”! Notaram a diferença?


  A assistência ao parto tem recebido influências culturais diversas e incorporado procedimentos tecnológicos invasivos ou não, aspectos patentes de medicalização, e uma gama de intervenções/controles externos. Não esquecendo que a medicalização é um poder político, há: 1) parto sem tecnologias invasivas; e 2) parto medicalizado: com ou sem hospitalização e com ou sem uso de tecnologias invasivas (drogas e outros procedimentos).
Parto normal não é sinônimo de parto desmedicalizado. Parto domiciliar nem sempre é sinônimo de parto normal. É senso comum que, em trabalho de parto, temos uma “mulher em sofrimento” e as pressões sociais, psicológicas e culturais da dor e do sofrimento favorecem a medicalização.
 
 
Parto1


A exigência ética
geral relativa ao parto
consiste em acolher
a sua natureza fisiológica e combater
a violência institucional
e profissional






Assistir ao parto exige competência técnica, humanística e ética. Vale para obstetras, obstetrizes e parteiras tradicionais, igualmente. Independentemente da cultura, e em respeito a cada cultura, a exigência ética geral relativa ao parto consiste em acolher a sua natureza fisiológica e combater a violência institucional e profissional. Cesariana salva vida, mas a indicação abusiva viola direitos humanos, violenta e mata!
O Brasil exibe 55% de cesáreas, quando a OMS recomenda até 15%; na rede privada são 84%. Logo, a maioria delas integra o altar dos partos roubados – aqueles em que o poder médico, a arrogância e a preguiça médicas não permitiram que acontecessem por via vaginal, naturalmente. Se há uma profissão que não combina com preguiça é a medicina! Cesáreas desnecessárias revelam uma única coisa: preguiça de assistir a partos!
 
 
Litoral tem novos leitos para tratamento de AVC (Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, Torres, RS)
Adelir e a filha tiveram alta na quinta-feira (03/04). Foto de Jonas Campos/RBS TV.
 
 
O preâmbulo é uma tentativa de entender o acontecido em Torres (RS), na madrugada do último dia 1º, com o casal Adelir Carmen Lemos de Góes e Emerson Lovari, com um filho de 7 anos e uma filha de 2 anos, nascidos via cesarianas, que desejava que o terceiro parto fosse natural, mas foram intimados (com ordem judicial, aparato policial e o escambau!) a retornar ao Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. Ordem judicial não se discute: cumpre-se, mesmo com indícios de violação aos direitos reprodutivos, que integram os direitos humanos, como aparenta ser o caso de Torres!
 Havia uma indicação médica de cesariana, quando Adelir, com 42 semanas de gravidez, esteve no hospital, dia 31 passado, com lombalgia e dores no baixo ventre, e recusou a cesariana, assinando desistência. A maternidade apresentou denúncia ao Ministério Público.
 
 
Adelir Carmen Lemos de Goes com sua filha e o marido após a cesárea determinada pela Justiça, contra sua vontade (Foto: Arquivo Pessoal) 


Acionado, o promotor Octavio Noronha, de posse exclusivamente de dados fornecidos pela maternidade (feto em posição podálica – em pé no útero; gestação avançada, na 42ª semana; gestante com duas cesarianas prévias) e imbuído da compreensão leiga de que medicina é matemática, em que 2+2 dá sempre 4 – há outras opiniões médicas que desconsideram os dados como indicação de cesárea –, acionou a Justiça por medidas protetivas da gestante e do feto e antecipação de tutela. Adelir foi escoltada por nove policiais para a maternidade. Nasceu Yuja, de cesariana!
A judicialização da atenção obstétrica e neonatal está na praça. O que fazer? Prontuário médico fala, deve ser periciado com rigor!
 
 
140402-Gravida2 PUBLICADO EM 08.04.14
12 (DUKE) FONTE: OTEMPO