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terça-feira, 22 de abril de 2014

O cheiro e o sabor das berinjelas ao amor de Fermina Daza

12 (DUKE)
Conta García Márquez, em "O Amos nos Tempos  do Cólera"
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_  


Em “O Amor nos Tempos do Cólera”, Gabriel García Márquez (1927-2014), ex-aluno montessoriano, conta que Fermina Daza foi amada por Juvenal Urbino, médico, de família tradicional e rica, com quem casou e teve dois filhos, Ofélia e Marco Aurélio; e por Florentino Ariza, celibatário que a esperou por 51 anos, 9 meses e 4 dias, pois a conheceu quando tinha 19 e ela 13 anos.


 (Cartagena das Índias. Fotos de Salete)
 
O cenário é Cartagena das Índias. Florentino, reles funcionário dos Correios. Ela, estudante do Colégio da Apresentação da Santíssima Virgem, “onde, há quase dois séculos, as meninas da sociedade aprendiam a arte e o ofício de esposas atentas e submissas”. Trocaram cartas apaixonadas por três anos. Noivaram por carta: “Está bem, caso-me consigo se me prometer que não me obrigará a comer berinjelas”, até que foi expulsa do colégio por ser vista escrevendo cartas de amor.
 
 
  O pai levou-a para “uma viagem de esquecimento”, por quase dois anos. Florentino adoeceu: “Uma reviravolta das tripas, como um eixo de espiral”, que um homeopata diagnosticou: “Os sintomas do amor são idênticos aos da cólera”, que o perseguiram a vida inteira! Fermina Daza dava-lhe caganeira! Comia gardênias: tinham o sabor de Fermina Daza; e bebeu água de colônia para descobrir outros sabores da amada que, ao retornar, disse-lhe: “Hoje, quando o vi, apercebi-me que o que se passou conosco não foi mais do que uma ilusão”.
Na casa da mãe do dr. Urbino, um prato habitual era berinjela e ele adorava! Ela sentia náuseas. Um dia gostou de purê de berinjela! Um dia decretou: “O problema da vida pública é aprender a dominar o terror; o da vida conjugal é aprender a dominar o tédio”. Florentino virou dono da Companhia Fluvial das Caraíbas. Ficou rico para a amada. No dia do enterro do marido confessou: “Fermina, esperei esta ocasião durante mais de meio século, para repetir-lhe uma vez mais o juramento da minha fidelidade eterna e do meu amor para sempre”. Ela: “Desaparece-me da frente! E que eu não te torne a ver nos anos que te restam de vida... Que espero sejam muito poucos”.
 
 
 
 
"O amor era
 amor em qualquer
tempo e em
qualquer lugar,
mas tanto mais
denso quanto mais
próximo da morte”.
 
 
Ele voltou a escrever-lhe cartas. Na primeira visita não pôde ficar: teve reviravolta nas tripas... Viraram colegas de velhice. A filha Ofélia sacou e bradou: “O amor é ridículo na nossa idade, mas na idade deles é uma obscenidade”. Foi expulsa de casa pela mãe, que confidenciou à nora: “Há cem anos, cagaram-me a vida com esse pobre homem porque éramos demasiado jovens e agora querem-no repetir porque somos demasiado velhos”. Acendeu um cigarro com a beata do outro e deitou para fora o resto do veneno que lhe roía as entranhas: “Que vão todos à merda – disse. Se nós, as viúvas, temos alguma vantagem, é a de não ter ninguém que mande em nós”.
 
 


Sem casar, viajou num navio de Florentino, que preparou o gol durante uma semana e não finalizava, até que ela: “Se temos de fazer disparates –disse –, façamo-los, mas como gente crescida”. Na cama, “ela estendeu a mão na escuridão, acariciou-lhe o ventre, os flancos, o púbis quase imberbe... Deu o passo final: procurou-o onde não estava, voltou-o a procurar sem ilusões e encontrou-o inerme. Está morto – disse ele”. Em sua primeira noite com Fermina Daza, ele brochou! Nos dias seguintes, se achou!
 
berinjela recheada  blog da mimis_-2  (Foto da Mimis)
 
 
Na noite da véspera do desembarque, Fermina Daza preparou um prato que Florentino Ariza batizou de “Berinjelas ao amor”. “Pois tinham vivido juntos o suficiente para se darem conta de que o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer lugar, mas tanto mais denso quanto mais próximo da morte”.
 
 
 PUBLICADO EM 22.04.14
Viver Para Contá-la "Em teoria é difícil entender esses prazeres subjetivos. Mas aqueles que os tenham vivido compreenderão de imediato. [...] Não creio que haja método melhor que o montessoriano para sensibilizar as crianças às belezas do mundo e para lhes despertar a curiosidade para os segredos da vida" (Gabriel García Márquez, em sua autobiografia: Viver para Contá-la)
Frases de Gabriel García Márquez
FONTE: OTEMPO

7 comentários:

  1. Pura poesia e magia.... Lindo demais

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  2. Um texto lindo que desvenda coisas que não me dei conta nas duas vezes em que li o livro há muitos anos, como a centralidade das beringelas a demonstrar que Fermina Daza é uma mulher muito da porreta, que não parou no tempo

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  3. Fátima, você surpreendeu mais uma vez, captando sutilezas que maioria dos leitores do Amor em tempos de Cólera se deram conta. Bela homenagem a GABO.

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  4. A tua crônica aguçou a minha mente para reler O amor em tempos de cólera. Que olhar maravilhoso o seu sobre o livro do Gabo

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  5. Fiquei apaixonada pela personalidade da Fermina que, mesmo tendo lido o livro, só descobri em seu texto. Ela era arretada! Enfrentou a fera da sua filha Ofélia e a expulsou de casa, para sempre!

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  6. O trecho é forte e merece ser compartilhado:

    "O doutor Urbino Daza alegrou-se com o reatar das visitas que tanto alentavam a mãe. Ao contrário de Ofélia, a irmã, que voltou no primeiro barco de fruta para Nova Orleães assim que soube que a mãe mantinha uma amizade estranha com um homem cuja qualificação moral não era das melhores. O seu alarme chegou ao rubro logo na primeira semana quando se deu conta do grau de familiaridade e domínio com que Florentino Ariza entrava em casa, e dos cochichos e arrufos breves de namorados com que decorriam as visitas até já a noite ir adiantada. O que para o doutor Urbino Daza era uma saudável afinidade de dois velhos solitários, para ela era uma forma viciosa de concubinato secreto. Assim fora sempre Ofélia Urbino, mais parecida com Dona Blanca, sua avó paterna, do que se tivesse sido sua filha. Como ela era distinta. Como ela era altiva. E como ela vivia à mercê dos preconceitos. Não era capaz de conceber a inocência de uma amizade entre um homem e uma mulher nem aos cinco anos de idade nem, muito menos, aos oitenta. Numa discussão aguerrida que teve com o irmão disse que a única coisa que faltava para que Florentino Ariza acabasse de consolar a mãe era que se metesse com ela na sua cama de viúva. O doutor Urbino Daza não tinha coragem para lhe fazer frente, nunca tinha tido, mas a sua mulher intercedeu com uma justificação serena do amor em qualquer idade. Ofélia perdeu as estribeiras.

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    - O amor é ridículo na nossa idade - gritou-lhe -, mas na idade deles é uma obscenidade.

    Empenhou-se com tais ímpetos a afugentar Florentino Ariza lá de casa que chegou aos ouvidos de Fermina Daza. Chamou-a ao quarto, como sempre que queria falar sem as criadas ouvirem, e pediu-lhe que repetisse as suas recriminações. Ofélia não lhas adoçou: estava certa de que Florentino Ariza, cuja fama de pervertido era sabida por toda a gente, perseguia uma relação equívoca, mais prejudicial para o bom nome da família que as façanhices de Lorenzo Daza ou as aventuras ingénuas de Juvenal Urbino. Fermina Daza escutou-a sem dizer palavra, sem pestanejar sequer, mas quando acabou de a ouvir era outra: estava de volta à vida.

    - Só tenho pena é de não ter forças para te dar a sova que mereces, por seres tão atrevida e cheia de malícia - disse-lhe. - Mas agora mesmo vais sair desta casa e juro-te pelos restos da minha mãe, que não voltarás a pisá-la enquanto eu for viva.

    Não houve nada que a dissuadisse. Entretanto Ofélia foi viver para casa do irmão e de lá lhe mandou todo o tipo de súplicas com emissários à altura. Mas foi inútil. Nem a mediação do filho nem a intervenção das amigas conseguiu demovê-la. À nora, com quem manteve sempre uma certa cumplicidade popular, fez-lhe por fim uma confidência na linguagem florida dos seus melhores anos: «Há cem anos, cagaram-me a vida com esse pobre homem porque éramos demasiado jovens e agora querem-no repetir porque somos demasiado velhos.» Acendeu um cigarro com a beata do outro e deitou para fora o resto do veneno que que roía as entranhas.

    - Que vão todos à merda - disse. - Se nós, as viúvas, temos alguma vantagem é a de não ter ninguém que mande em nós.

    Não houve nada a fazer. Quando, por fim, se convenceu de que estavam esgotadas todas as instâncias, Ofélia voltou a Nova Orleães. A única coisa que conseguiu da mãe foi que se despedisse dela, e Fermina Daza aceitou, depois de muitos rogos, mas sem permitir-lhe que entrasse em casa: tinha-o jurado pelos ossos da mãe, que para ela, naqueles dias de trevas, eram os únicos que estavam limpos (...).

    Trecho extraído do livro O amor nos tempos do cólera, Gabriel García Márquez

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