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terça-feira, 26 de abril de 2016

Minhas memórias culturais familiares nos retratos pintados

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Eram costume das famílias remediadas do sertão os retratos emoldurados e pintados à mão em cima de um móvel ou na parede ao lado dos santos de devoção.


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Na casa da vovó e na da mamãe, todas as pessoas foram retratadas no que se denomina hoje “fotopintura”, arte que remonta ao início do século XX, antes das fotos coloridas, na qual, a partir de um retrato preto e branco, um colorista-pintor fazia sua arte sobre papel de sais de prata – hoje com recursos digitais: “Photoshop, scanners e outros programas e equipamentos de captação e tratamento de imagem disponíveis”, como relata Mestre Júlio, cearense fotopintor de retratos, eternizado em um livro:” “Júlio Santos, Mestre da Fotopintura (Editora Tempo d’Imagem).


  (Júlio Santos)
 Para ele, "o maior valor da fotopintura é ‘tatuar’ as pessoas nas paredes de uma casa“. Só não exibiam fotopinturas emolduradas famílias muito pobres. O sonho da tia Lô, irmã de meu avô Braulino, era ter retratos pintados de seus dois filhos de criação, Maria das Graças e Dé, além de seus nove filhos. Quando a Francisca, mulher de Dé, lhe fazia raiva, ela não perdia a chance de dizer que ela não merecia um retrato pintado na parede ao lado de seus santos de devoção!


(Capa do Livro - “Júlio Santos, Mestre da Fotopintura”)


Eram adornos tão caros que a tia Lô morreu aos cinquenta e poucos anos sem realizar sequer parte do acalentado sonho! Era uma prática cultural tão arraigada que estabelecia consensos no campo do caráter ao lado de outras verdades, tal como: “Marido bom, quando fica viúvo, se casa logo”.
Se o viúvo se casasse sem eternizar a morta em um retrato pintado, ficava falado e sem valor. Vovó era a primeira a dizer: “Eita que fulano deu ruim! Nem um retrato da falecida mandou fazer! Nisso é que dá mulher besta fazer economia pra quem não trabalhou gastar”.




Um dia, o retratista chegou. Tirou da mala um belíssimo retrato pintado da vovó. Mamãe, espantada, não se conteve: “Mãe, a senhora já tem um, pra que outro?!”. Vovó: “Mas é junto com Braulino. Não sei se vou morar com ele a vida toda”. A fotopintura virou fonte de ameaça até quando o pai velho falava com ela de “estucada” (sem educação). Ela dizia calmíssima: “Num grita comigo, não, que eu até já tenho meu retrato sozinha! Olha ali”. Meu avô se calava como que por milagre.


   (Fotopintura: Fátima Oliveira, aos 3 anos)


Nossas fotopinturas antigas são a memória de um doce tempo do qual sou herdeira. Tenho uma minha aos 3 anos com a minha boneca de pano preferida, envolta em lendas e lendas. Contam que só fiquei quieta para a foto depois que tive a boneca nas mãos – vovó disse para o fotógrafo que a abolisse no retrato pintado, e o pai velho mandou que ficasse porque eu era doida com ela. Caso contrário, o retratista não receberia o pagamento, pois quem pagava era ele; outra, aos 18 anos, com a minha irmã Júlia adolescente; e outra de meu pai aos 30 anos. Tenho paixão por elas porque, para além da arte, são repletas de nossas histórias.


 [Fotopintura: As irmãs Júlia Oliveira (azul) e Fátima Oliveira (verde), aos 18 anos)]


 (Fotopintura: Gildino Rodrigues de Oliveira, pai de Fátima Oliveira, aos 30 anos)


Photo
A parede verde é a base para a diretora de arte Michelle Jorge Seddig expor lembranças de viagens, coleções e retratos de família:   Quando passou a moda de pendurá-los na parede, meados de 1970, já em Imperatriz, mamãe, que era filha única, e vovó doaram os retratos pintados para a netaiada. Acho que só eu os conservei, pois, por mais que pergunte, ninguém dá notícia deles, que eram uns 12!
Quando morei em BH, vovó passou dois meses comigo em 1989 e, vendo as fotopinturas, disse-me, em lágrimas: “Tu guardas com tanto carinho! Tenho arrependimento de não ter te dado todas”. Em 1993, mamãe, chorando, disse: “Tu és muito cuidadosa. Pena que não te demos todas. As outras se acabaram”.
Há quem diga que os retratos pintados são sonhos-tatuagens de alma. Concordo, pois a memória cultural é composta por heranças simbólicas.


 PUBLICADO EM 26.04.16
 FONTE: OTEMPO
Fotopintura: o "photoshop" que reinventou o Sertão 
https://youtu.be/-w-oIPXDSwU 
"A fotopintura surgiu na França, em 1832, mas foi no nordeste brasileiro onde se popularizou. A técnica deu vida à fotografia em preto e branco, levando cores e mais realidade para o papel". 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Eu poderia não ter voltado – eram tempos de fascismo

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Ideologia e práticas fascistas causam-me repugnância. Misto de medo e ódio. Quem combateu os tempos macabros de fascismo no Brasil (ditadura militar de 1964) carrega, além da repugnância, o sentimento do dever cumprido e a obrigação eterna de reconhecer e denunciar as diferentes faces do fascismo.
Desde pós-eleições presidenciais de 2014, tive a percepção de que o fascismo – que ensaiava sair da toca antes das eleições, sobretudo durante a campanha – reaparecia com vigor espantoso quando quem perdeu as eleições não aceitava a derrota, e sob o argumento do país dividido, devido a uma vitória inegável, porém numericamente “apertada”, movia mundos e fundos, querendo sair vencedor de um pleito que perdera no voto a voto!
Tal atitude não republicana encontrou eco em setores que sufragaram o nome do derrotado, mas muito mais na escória da política que sempre se beneficiou do fato de que somos um país dividido, não apenas por classe, mas também por recorte racial-étnico. País dividido é o “normal” do Brasil, pois desde sempre somos um país “apartado”.


Resultado de imagem para Coral da UFMA  (Coral da UFMA)


Logo, país dividido é argumento que não se sustenta para colocar em xeque uma eleição quando não se é vitorioso. Na medida em que as práticas fascistas, seja na vida real ou no mundo virtual – nas redes sociais –, apareceram mais amiúde, adquiriram ar de naturalidade, era insuportável não me insurgir contra elas. Eu me via aos vinte e poucos anos devolvendo a beca do coral da UFMA para não cantar para Geisel (Ernesto Geisel, 1907-1996), ditador do Brasil de 1974 a 1979.


 (Palácio Cristo Rei - construído em 1838 pelo arquiteto Manoel Pulgão em estilo barroco tardio, por iniciativa do comendador José Joaquim Vieira Belfort)


Pouca gente imagina o que é, em tempos de fascismo, para uma estudante de medicina, no começo da noite, sair do parque Urbano Santos, passar pela praça do Panteon, descer a rua dos Remédios até ao palácio Cristo Rei, onde cantaríamos para o ditador, para devolver a beca ao maestro do coral, Giovanni Pelella, na véspera da solenidade, já com o largo dos Amores (praça Gonçalves Dias) cercado por policiais, depois de o meu nome ter sido carimbado como inofensivo e apto para cantar para o ditador.


gIOVANE pALEL  Giovanni Pelella (Foto entre Pereirinha e Zé Joaquim)


Quem integrava o coral da UFMA, uma semana antes do evento, passou por um pente-fino! O maestro apenas disse: “Nossos nomes passaram”. E eu ria intimamente por enganar a ditadura! Fui da Juventude Operária Católica (JOC), mas já respondia politicamente ao PCdoB.
Fui uma das primeiras pessoas inscritas no coral da UFMA quando ele foi criado, em 1973. “Amo música e gosto de cantar. Não tenho uma voz e tanto, mas sou afinadíssima em meu naipe de contralto. Sou muito musical e do tempo em que canto orfeônico era uma disciplina escolar. Aprendi a solfejar e a ler partitura... Ser desasnada em música é um privilégio. Participei de corais do primário à universidade” (“Sociologia da música caipira& da música sertaneja”, O TEMPO, 26.5.2009).


  (Da esquerda para a direita: Helenira Resende, Aurora Maria Nascimento Furtado, Soledad Barrett, Dinalva Oliveira Teixeira, Isis Dias de Oliveira, Ana Rosa Kicinski Silva) FONTE:  Em memória delas, as mulheres assassinadas pela homenagem de Bolsonaro, Por Mariana Serafini


E por que devolvi a beca ao maestro? Eu não queria cantar para Geisel, mas não podia dizer o motivo! Após passar a barreira do Exército na entrada do palácio Cristo Rei, no auditório entreguei minha beca ao maestro (não recordo por que ele estava lá naquele horário), apenas disse que não poderia participar porque estava com febre e diarreia. Alguém disse: “É a estudante de medicina, está com diarreia”. Gelei!
Outro alguém pegou a lista de nomes e riscou o meu. Devo ter sido convincente o bastante e com certeza estava com um aspecto de doente porque nada me foi perguntado. Saí de lá zonza e, na altura de onde era o Colégio São Luís, comecei a chorar convulsivamente. Entrando em casa ainda chorava. Eu poderia não ter voltado – eram tempos de fascismo.


 PUBLICADO EM 19.04.16
FONTE: OTEMPO

terça-feira, 12 de abril de 2016

“É melhor morrer em pé do que viver de joelhos”

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Quem ama as liberdades democráticas que se mire em La Pasionaria – Isidora Dolores Ibárruri Gómez (1895-1989), comunista espanhola que bradou: “É melhor morrer em pé do que viver de joelhos”.


   [La Pasionaria – Isidora Dolores Ibárruri Gómez (1895-1989)]
  (La Pasionaria statue in Glasgow, Scotland)


Imaginar viver sob o ideário fascista é terrorismo político! A última dose de fascismo foi a ditadura militar de 1964. E quem possui dois neurônios íntegros não deseja repeti-la!
O fascismo crê que há seres humanos melhores e com mais direitos do que outros e que só alguns podem ser usufrutuários da Terra e de tudo o que nela há! O fascismo, que aprofunda as opressões de gênero, racial/étnica e de classe, é uma irracionalidade!
Pontuo que o nazismo é uma forma de fascismo – perseguição à democracia, desde o início, na Itália no pós-Primeira Guerra Mundial, para suplantar as ideias socialistas. O vocábulo “fascismo” deriva do italiano “fascio” (“aliança” ou “federação”), cuja origem é “fasci”: “feixe”, simbolizando, desde a Roma Antiga, a força de muitos galhos juntos.
Como movimento político, o fascismo foi criado por Benito Mussolini (1883-1945), em 23.3.1919, ao fundar a associação Fasci Italiani di Combatimento; e se formalizou partido político em 1921, com definição doutrinária antidemocrática e de defesa da “autossuficiência do Estado e suas razões, superiores ao direito e à moral”. O símbolo do Partido Nacional Fascista é um feixe de lenha com um machado sobre as cores da bandeira italiana.
Em 28.10.1922, com a Marcha Sobre Roma, os fascistas tomaram o poder, e Mussolini, com o apoio do rei Vittorio Emanuelle III (1869-1947), virou chefe de governo, autoproclamado “duce”, em italiano: “líder”, assim como “der führer”: “líder” em alemão, adotado por Adolf Hitler. Ele passou a ter poderes outorgados pelo Parlamento Nacional e amplo apoio de massa, setores do operariado e da pequena burguesia rural e urbana, convencidos de que seus inimigos eram o grande capital e o sindicalismo comunista e que só um regime nacionalista de força, que conferisse ao Estado e ao “duce” poderes “acima daqueles que as democracias lhes entregavam” salvaria a Itália! Um embuste.




Em represália às denúncias de violência e corrupção do fascismo, o deputado socialista Giacomo Matteotti (1885-1924) foi assassinado por um comando fascista em 10.6.1924. A oposição abandonou o Parlamento, e, em janeiro de 1925, Mussolini decretou um Estado totalitário, proibindo partidos e sindicatos não fascistas. De 1928 a 1943, o Partido Nacional Fascista era o único legalizado e só foi dissolvido em julho de 1943 com a prisão de Mussolini e a debacle do regime fascista na Itália!




Além de Itália e Alemanha, o fascismo vigorou em Portugal – de 1932 a 1968, com a ditadura salazarista (António de Oliveira Salazar, 1889-1970) – e na Espanha – de 1936 a 1975, com a ditadura franquista (Francisco Franco, 1892-1975). Com a derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sistemas fascistas sobreviveram na Europa. As ditaduras latino-americanas foram de inspiração fascista, incluindo a ditadura militar de 1964 no Brasil!


Resultado de imagem para frases contra o fascismo  (Imagem de O Brasil do fascismo, por  Aline Soares, 15.09.2015) 

O ideário fascista persiste em partidos conservadores e de extrema direita na Europa. Na conjuntura brasileira, o fascismo medra, na não aceitação da derrota do PSDB nas eleições presidenciais de 2014; no cerceamento do direito de ir e vir; no fato de não podermos enterrar nossos mortos em paz; no desrespeito à autonomia universitária; e na pretensão de usurpar, via impeachment, o mandato da presidente eleita Dilma Rousseff. Ao arrepio da lei. E da República. “Não passarão!


  (Madrid, 1937)
 
PUBLICADO EM 12,04.16
 FONTE: OTEMPO

terça-feira, 5 de abril de 2016

O saber, a sabedoria, o sábio e o sabido

12  (DUKE)
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


O saber, a sabedoria, o sábio e o sabido são palavras que encerram significados técnicos, políticos e filosóficos. Coisas para quem gosta de pensar, de buscar as raízes dos vocábulos.
“Saber”, do latim “sapere”, é “ter gosto; exalar um cheiro, um odor; (fig)., ter inteligência, juízo; conhecer, compreender, saber”; “sabedoria”, do grego “sofia”, é o que detém o “sábio” (do grego “sofós”; em latim: “sapidus”), que tem um sabor/saber, que sabe muito, erudito. No sentido figurado, é quem age com sensatez ou prudência. “Sabido” é o mesmo que “sábio”, mas se popularizou no Brasil como “finório”, “embusteiro”, “passador de perna”.


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Para Aristóteles, que afirmou que “a dúvida é o princípio da sabedoria”, o saber comporta três áreas: técnica, prática e científica. O saber é um produto “do acúmulo de conhecimentos e estudos que se faz. E a sabedoria é um dom que nos permite discernir qual o melhor caminho/atitude a seguir e/ou adotar nos diferentes contextos da vida” (blog Muito Além das Palavras e Sentidos).
Quando, em 1964, fui estudar em Colinas (MA), no quarto ano primário, o último ano de estudo que havia em Graça Aranha (MA), na véspera da viagem o meu avô Braulino fez uma preleção mais ou menos assim: “‘Tô’ te tirando do bem-bom de tua casa pra te dar saber, que é a herança que um pobre pode deixar para uma filha ou um filho. Abra o olho, ‘tá’ indo para estudar! ‘Tô’ te dando o que não tive: saber, que vai ser teu a vida toda e ninguém vai tomar. Quero te ver uma mulher sabida pra nunca ter de aguentar esturro de homem”.
Palavras fortes que ainda ressoam em meu juízo e causam-me uma emoção caliente, pois eu era uma menina de apenas 11 anos de idade! Na festa de minha formatura em medicina, o pai velho estava lá, nos trinques e com os olhos lacrimejando. Depois da valsa, ele, que só falava alto, disse-me baixinho: “Já posso morrer ‘prumodiquê’ com o saber que te dei tu nunca vai saber o que é passar necessidade na vida!”.
Nas duas falas, presente a sabedoria de um sertanejo analfabeto, que trabalhou a vida inteira “pegando no pesado” de sol a sol, de que o saber, em seu aspecto instrução/escolaridade, é instrumento que permite ascensão social e é garantia ímpar de enfrentar as vicissitudes da vida com uma luz que alumia.




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Meu avô Braulino era um sábio que dizia frequentemente: “Doutor não se faz a facão! Me pergunte, que eu sei!”. E sabia, do princípio, do meio e do fim. Quando colocou mamãe, filha única, na escola – “ela estudou tudo o que tinha por aqui nessas brenhas” (até o quarto ano primário), ouviu repreensão de seu irmão Vicente Bodô: “Mulher não precisa de estudo!”. São histórias que nos fazem refletir sobre os aspectos técnicos, políticos e filosóficos das palavras “saber”, “sabedoria”, “sábio” e “sabido”, assim como das questões políticas que inferem no acesso ao saber.


  Logo, soou como música a meus ouvidos o que verbalizou o secretário de Estado de Educação do Maranhão, Felipe Camarão, em celebração do Dia da Escola (15 de março): “O Maranhão do futuro está na escola, por isso o governo estátrabalhando para assegurar as condições necessárias que tornem a escola umespaço digno e de qualidade social”, no que foi corroborado pelo governador Flávio Dino, um sábio que tem o dom da sabedoria, em “Governando para quem maisprecisa” (20.3.2016), ao enumerar as políticas que democratizam o saber: a primeira rede estadual de ensino profissionalizante, o Instituto de Educação,Ciência e Tecnologia do Maranhão e o Programa Escola Digna, que legarão a herança do saber para a descendência do povo.


 
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 FONTE: OTEMPO