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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Comportamento bipolar e parasitário sobre a “riqueza” de médicos

Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_
 
Fico abismada quando leio matérias que dizem que todas as pessoas que são médicas não trabalham e só querem se encher de dinheiro sem trabalhar; e que as pessoas que querem ser ou que são médicas querem apenas ganhar dinheiro.
Nas soleiras da aposentadoria, tenho a honra de dizer que nunca faltei, nem sequer cheguei atrasada em toda a minha vida laboral. Em nenhuma profissão as pessoas são iguais, por que deveriam ser em medicina? Ganhar dinheiro com o suor do próprio trabalho nunca foi crime ou pecado, mas parece que para quem faz medicina é! Em tempo: não sou pobre, mas não enriqueci! 
 
 Será que confundem o exercício da medicina com sacerdócio de graça, que não existe em nenhuma religião, ou “profissão de fé” de não receber pelo trabalho realizado? Ou é má-fé inominável? Num país capitalista os salários são regulados pelo mercado. Assalariados não impõem quanto vão ganhar, por que só médicos teriam de dizer que querem menos do que paga o mercado, que aqui é majoritariamente precarizado: sem carteira assinada e sem concurso público?
Relación médico pacienteOs planos/convênios de saúde ficaram milionários porque médicos recebem por “produção”, sem lenço e sem documento, sob as bênçãos de todos os governos, até hoje! Conhece algum convênio em que, mesmo em hospitais próprios, médicos são funcionários? E não fomos nós quem estabelecemos o mercado assim, abrindo mão de direitos trabalhistas, regra tão arraigada que o governo dela compactua, tanto que no programa Mais Médicos não se paga salários, se dá bolsas! Ou trabalhamos assim, ou nada!
Há uma expectativa cultural leviana de que médicos são ricos ou vão ficar, e há certeza que querem ficar. São generalizações furadas. A aura cultural da sociedade exige de que médicos ganhem bem, morem bem, tenham carros sempre novos e top de linha e se vistam nos trinques – que suas mulheres andem na última moda, que as médicas se vistam como modelos. Quem não se encaixa no figurino imaginário fracassou porque os bons mesmo ganham rios de dinheiro, pois o mito da medicina profissão liberal diz que temos um consultório abarrotado de pagantes!
 
  
É senso comum que não podemos morar em qualquer lugar, nossos filhos não podem estudar em qualquer lugar, como pessoas comuns, porque nosso valor profissional fica comprometido. Uma diretora da Escola Estadual Leopoldo de Miranda indagou por que meus filhos estudavam lá. Respondi que considerava uma boa escola e perto de casa. “Você é médica e pode pagar escola!”. Tasquei: “E pago, inclusive a sua, religiosamente e em dia, já que meu imposto de renda é descontado na fonte!”.
  
ministro da saúde revela défice de 200 milhões e anuncia "cortes cirurgicos" para evitar ruptura
 
Quase sempre quem faz algum trabalho para médicos cobra “os olhos da cara”. Um bombeiro fez um pequeno reparo hidráulico num apartamento em meu prédio e cobrou R$ 30. O mesmo serviço no meu apartamento cobrou R$ 100! A vizinha havia dito que eu era médica! Em geral, quem já trabalhou para nós, sendo regiamente pago, adquire o direito eterno de telefonar a qualquer hora da noite para uma “consultinha telefônica”; trocar a receita do “remédio controlado” da vizinha; quer 0800 sempre e, sinceramente, crê que merece favores infinitos e quando trabalhou para nós “meteu a faca”! E a parentada toda VIP é outro departamento, a querer para o saco e para o bisaco 24 horas por dia!
 Há um comportamento bipolar generalizado em relação a médicos de tirar proveito, meio sanguessuga e parasitário, que se revela até em festas: “Ah, pode dar uma olhadinha aqui?”. Ora, a olhadinha 0800 é uma consulta... no meio da festa! Ai que fadiga! 
 PUBLICADO EM 27.08.13
Doutora Brinquedos FONTE: OTEMPO 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Uma delícia do sertão maranhense: coalhada com mel de tiúba

 (Foto do Caldeirão da Rose)
Uma doce memória de uma menina sertaneja
Fátima Oliveira
Médica -
fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_

 
Em “Deixa chover canivete que o resto o mel de tiúba resolve”, disse: “Amo coalhada adoçada com mel de tiúba!” (O TEMPO, 15.12.2009). Em geral, tenho mel em casa (nem sempre de tiúba) e a coalhadinha dificilmente falta, caseira ou de supermercado. É um luxo, ao qual não me furto, de vez em quando comer coalhada com mel de tiúba como sobremesa. É uma comida que conforta, massageia a alma e é uma doce memória de uma menina sertaneja.

Em geral, após saborear a minha tigelinha de coalhada com mel, bate um relax e eu corro ligeirinho pra deitar na rede, pode ser a qualquer hora. Nunca entendi a equação comer coalhada e a urgência de deitar na rede... A mistura de dois hábitos tão sertanejos deve ter uma razão de ser. Aprendi a comer coalhada salgada em Sampa, quando conheci a coalhada síria ou coalhada seca (sem o soro), muito usada como aperitivo, tanto com acompanhamentos doces quanto salgados. Quando quero coalhada seca, embora fácil de fazer em casa, vou a um empório árabe. Dizem que, para os povos árabes, coalhada doce é uma heresia. Enfim, “Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”... Aproveito as delícias de ambas.




Contam que um
médico judeu curou
com leite fermentado
a dor de barriga
que durante anos
afligiu o rei da
França François I.
 

Todavia declaro que coalhada do sertão tem sabor especial em meu paladar, em minha memória afetiva. Há uma razão científica, a mesma que diz por que a coalhada búlgara é a melhor do mundo: “Alguns micro-organismos só conseguem se desenvolver em condições existentes nos Bálcãs”. Vale para o sertão também, pois não? Sei que sim. Parafraseando o maranhense Catulo da Paixão Cearense, “Não há, oh gente, oh não,/ coalhada como a nossa do sertão!”.A coalhada é o produto do leite fermentado naturalmente. Existe desde tempos imemoriais. Segundo alguns registros: “surgiu, acidentalmente, na Ásia Central, entre as tribos nômades que tinham o costume de carregar leite em suas viagens”; integra o grupo dos produtos do leite fermentado, segundo o micro-organismo que o fermenta. Assim temos: o iogurte, o leite fermentado ou cultivado, o leite acidófilo, o kefir, o kumys e a coalhada – rica em cálcio e proteínas, é também um remédio popular para diarreia, pois repõe a flora intestinal. Além do alto valor nutritivo, há os efeitos anticolesterolênico e anticarcinogênico.
Contam que um médico judeu curou com leite fermentado a dor de barriga que durante anos afligiu o rei da França François I. O cientista russo Ilya Metchinikoff concluiu em suas pesquisas que “as bactérias fermentativas exercem ação inibitória sobre outras bactérias do intestino, contribuindo para a sua desintoxicação” e afirmou que a longevidade dos povos dos Bálcãs é devida a uma dieta rica em leites fermentados.


 
Livro - Nao E Sopa


Coalhada é comida de alma, pois é um alimento que conforta (comfort food), como disse Nina Horta: "Comida de alma é aquela que consola, que escorre garganta abaixo quase sem precisar ser mastigada, na hora da dor, de depressão, de tristeza pequena... Dá segurança, enche o estômago, conforta a alma, lembra a infância e o costume". (In HORTA, Nina – “Não é Sopa – Crônicas e Receitas de Comida”, São Paulo: Companhia das Letras, 1995).


 



Vovó também fazia, para consumo familiar, manteiga de garrafa com a nata da coalhada e o queijo coalho, um maná dos céus. Era cheia de manias. Quando queria fazer queijo, escolhia de quais vacas queria o leite. E, pasmem, meu avô obedecia! Trazia o leite do queijo separadinho: “Tá aqui teu leite! C’os diacho de mulher abusada”... Dá pra acreditar? Pois ela era assim, cheia dos leros... Ai que saudades!



PUBLICADO EM 20.08.13
  FONTE: OTEMPO

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O cavaleiro andante dos direitos humanos + O legado de Sergio Vieira de Mello

 
O cavaleiro andante dos direitos humanos
Fátima Oliveira

Vários homens o definiram como charmoso. Todas as mulheres que conheço também. Quando ele se foi, me vi em meio a uma viuvez coletiva. Ah, uma amiga, viúva dele também, gravava imagens dele: "sabe, aquelas passadas largas e maneiras... passando a mão na cabeça, às vezes colocando a mão no bolso... seguro de si, um ´deus grego´, em meio aquela desgraceira da guerra? A própria flor no pântano... um óasis em meio à destruição. Era isso que ele era: um oásis." A tarde começava, mas parecia interminável. Tentei cochilar. Ao telefone, Cremilda. Conversa comprida: "sabe, daquelas paixões que a gente tem na adolescência? E lê-lê-lê-lê... quando eu fui a Portugal conheci..."
Ela tá variando... Ou, eu! Cortei a conversa. Uma pessoa que adoro poderia estar morrendo, disse-lhe. "Não é possível, você também? Vamos ficar viúvas?" Ficamos. Eu, veterana, sei que sinto luto de viuvez. Um amor platônico/moral se foi nos escombros de Bagdá. Outra das viúvas, falou que sou bruxa. "Nos jornais a morte dele. No mesmo dia você escreveu sobre a Irmandade da Boa Morte! Não é coincidência."
Débora, filha que aniversaria dia 28, não fique mais espantada do que está. Amor platônico/moral basta existir no campo das idéias. Se basta. É belo por dentro (as idéias) e por fora (o corpo). Sem perspectivas. Nem precisa. Se ama uma idéia. Não qualquer uma, mas belas idéias que se materializam em um cavaleiro andante... Endorfina pura! Relembro um dos chiliquentos de minha vida. Pedi que calasse. Ele, na TV! Em meio aos escombros de não sei de qual das guerras. E o babaca: "não sei o que esse cara tem demais." Desentendida, disse: "você não sabe o que uma guerra tem demais?" Ele foi "na mosca": "o bom moço aí estudou filosofia na Sorbonne. Podia, filhinho de diplomata"... Desancou. Dei-lhe um torra: "com ciúmes de uma miragem?" E ele: "miragem nada, é um cavaleiro andante. Um dia você cruzará com ele nesse infindável turismo feminista." Odeio, visceralmente, quem rotula nossas andanças políticas de turismo feminista. Ele sabia! Pois não é que agora resolveu tripudiar? Telefonou: "agora que o cavaleiro andante morreu, tenho chance?" Sujeitinho sem classe! Ouviu o que não queria: "realmente não se compra charme em botequim. Homem estiloso: bonito, filósofo e ativista, é peça rara."
 
 
Sérgio Vieira de Mello. Foto: Rádio ONU.
 
 
Das viúvas morais de Sérgio Vieira de Mello, Cremilda rouba a cena. É  "classuda". De pirraça, mandou um arquivo chamado "Há Três Anos." E telefonou: "Não mexa em nenhuma vírgula do que escrevi. Coisa que não compartilho é  homem amado." Concedo-lhe a palavra: "Missão Quase Impossível. Há três anos, visitando Portugal, várias situações chamaram-me a atenção pela identificação e reconhecimento de minhas origens. Uma mensagem, entretanto, se sobressaiu às demais, ao ver divulgado em cartazes o nome de um brasileiro que até então me era completamente desconhecido –   Sérgio Vieira de Mello. Nas paredes antigas da Universidade de Coimbra, nas agências bancárias e em outros recintos, constatava-se uma Campanha, empreendida por portugueses, em favor da reconstrução do Timor Leste e da preservação da língua portuguesa, essa nossa tão rica língua-pátria (...)
Meu ego aventureiro, inflado, estava a me perguntar: quem é? Por que essa decisão ou aceitação? Como se desenhava aquele projeto de trabalho e também de vida? Aqui, acolá, em longos intervalos de tempo, como uma infantil colecionadora, fui ajustando pequenos informes, se não fidedignos, mas que reforçavam perfeitamente minha condição emotiva. Refletindo sobre as informações de caráter pessoal e profissional, colhidas de forma acidental, surpreendi-me pensando sobre um brasileiro cuja imagem corporal me era desconhecida e estava sendo construída pela força de suas idéias tão instigantes. Cada nova informação era acrescida à minha composição mitológica. Aprofundando minhas reflexões, acrescentei-me nova indagação: na envelhecência sentimos a necessidade de substituir mitos de apego como o  fazíamos na adolescência? Passamos também, na atual fase de vida, pelo mesmo processo de posseiras e cúmplices de nossas representações, sentimentos esses já experimentados com Guevara, nosso objeto de paixão das batalhas em Sierra Maestra e nas selvas da Bolívia? Será sempre a política externa americana (do Norte) a opositora de nossa soberania e autodeterminação? Quando veremos aliviados o "the end" desse filme já visto tantas vezes?
 
 
 
 
Nesse meu processo de permanente reflexão, decidi por não me permitir desvendar essa relação psicanalítica (...) Quem sabe, um dia, trôpego, se soltaria de seus arreios e, mais próximo, vendo-o, ouvindo-o, poderia confirmar minha construção idealizada. Nessa espera esteve sempre a certeza de que, assim como Platão em estado idealizado, descobrira um grande filósofo da atualidade, cuja cosmovisão e liderança era privilégio de poucos seres humanos. Doutor em Filosofia, Comissário de Direitos Humanos, fazia filosofia à maneira clássica, como uma ferramenta viva, prática e ativa, capaz de transformar  a nós mesmas(os), onde se procura viver o que se aprende e aprender do que se vive (...) suas palavras traduzem coerência e consistência na valorização do ser humano, na eqüidade de gênero, na habilidade de adequar o intelectual competente na assessoria a seus pares, assim como a de estar sempre presente na linha de frente, nas ações de intervenção, na escuta das expectativas daqueles para os quais as ações de progresso seriam dirigidas e seus atores incentivados: "Quando você incentiva, as mulheres têm mais qualidades e valores superiores aos do homem. Minha experiência é que, mulheres e crianças, são as primeiras vítimas nos conflitos. Mas também são fatores de estabilidade, racionalidade e contenção nas crises. Elas sentem mais o valor da paz social e a importância do desenvolvimento econômico." (Sérgio Vieira de Mello) (...)  Cremilda Luiza de Almeida,  uma educadora feminista.

 
Fátima Oliveira escreve no Magazine às quartas-feiras.
O TEMPO, 27 de agosto de 2003
E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br
 
 
destaques O legado de Sergio Vieira de Mello
Sônia Araripe, Editora de Plurale

Como o tempo passa rápido. Entre aquele triste agosto de 2003 e agora já se passaram dez anos. Muitos fatos aconteceram desde então. Evento com a presença de autoridades e renomados internacionais marca hoje, 19 de agosto, no Rio de Janeiro, os 10 anos sem o carioca Sergio Vieira de Mello. O Alto-Comisário de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) morreu em atentado contra o Hotel Canal, onde funcionava a representação da ONU em Bagdá.
Estarão presentes no evento - a ser realizado no Jardim Botânico do Rio - nomes como o ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, o ex-presidente do Timor Leste, José Ramos-Horta e também a atual sub-secretária da ONU para Assuntos Humanitários, Valerie Amos. Ela dirige a dirige o Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
O dia 19 de agosto foi instituído como o Dia Mundial da Ação Humanitária desde o atentado que matou Vieira de Mello e outros 21 trabalhadores da ONU que serviam no Iraque em guerra. Alguns companheiros de Sergio e dos outros servidores da ONU estarão no Rio pessoalmente ou participarão da solenidade através de depoimentos gravados (leia mais sobre o evento na Agenda Plurale).
Nunca cheguei a conhecer pessoalmente Sergio Vieira de Mello. Quis o destino que nossas vidas se cruzassem por uma só - derrareira e marcante - oportunidade. Jornalistas não costumam acreditar em sorte ou no destino. Eu acredito. Como explicar, então, que aquela longa e sincera entrevista concedida por telefone, de sua sala em Bagdá, durante cerca de 40 minutos, seria a última concedida por Vieira de Mello? Filho de diplomata e professora, sonhou ser possível trabalhar pelo fim de conflitos, buscando a paz e a união entre diferentes povos. O Alto-Comissário de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) era, sem dúvida, um grande conciliador. Dos melhores.
Quis o destino que eu fosse a portadora de suas expressivas e impressionantes últimas palavras. Reveladoras até mesmo para a família. Só para citar um exemplo, Dona Gilda Vieira de Mello nos contou que o filho, como ela, não era muito apegado à religião. Na entrevista, porém, ele disse, lembrando um dito popular, que, por ser brasileiro, Deus o protegia. Publicada em um domingo de agosto, dia 17, apenas dois dias depois, um atentado a bomba mudou os rumos desta história: a explosão de um carro bomba na sede da representação da ONU no Iraque matou não apenas Vieira de Mello, aos 55 anos, mas também outros 21 companheiros de trabalho. O que parecia um testemunho de crença na paz e na boa fé dos homens transformou-se em tragédia.
A primeira esposa de Sergio, a francesa Annie, junto a seus dois filhos, criou a Fundação Sergio Vieira de Mello, com o objetivo de homenagear os verdadeiros heróis que praticam trabalhos humanitários em diferentes regiões do mundo.
Estudos – Nascido em março de 1948, no Rio de Janeiro, Sergio trouxe no sangue, digamos assim, o gosto pelas questões do mundo. Seu pai, diplomata de carreira, serviu em diferentes cidades, como Roma e Frankfurt. Aos 18 anos, o jovem foi estudar Filosofia primeiro na Suíça, mas foi na Universidade Sorbonne, em Paris, que conclui a graduação e logo depois o Mestrado.
“Os meninos sempre foram muito inteligentes”, recorda-se Dona Gilda. Além de Sergio, ela também tem Sonia, tradutora juramentada de diferentes idiomas. Aliás, como cidadão do mundo, Sergio falava, além do português, francês, inglês, espanhol e italiano. Tiveram a quem puxar: além do brilhantismo do pai já falecido (que tinha especial gosto pela História), é a matriarca da família que ajudou a manter a família unida sempre envolvida com as grandes questões.
“Gosto muito de ler, me interesso por todos os temas”, conta à Plurale, Dona Gilda. Apesar da aparência frágil – “sempre fui magrinha”, conta - aos 83 anos, sua memória é impressionante. Voltando à carreira de Sergio, ela lembra que o brilhante aluno entrou na ONU como tradutor de francês, aos 21 anos. Depois foi galgando postos mais importantes: a primeira missão foi no Paquistão e depois seguiu uma carreira brilhante, mas sempre corrida, sem tempo até mesmo para a vida pessoal. Casou-se com Annie em 1973: tiveram dois filhos, Laurent e Adrian. Sergio não chegou a conhecer, mas, certamente teria orgulho ao saber que já seria avô.
Iraque - Quando sofreu o atentado no Iraque, Sergio estava praticamente separado e vivia uma intensa paixão há quase dois anos com a argentina Carolina Larriera, também funcionária da ONU, sua fiel escudeira em Bagdá. Se conheceram no Timor Leste, onde ambos serviam em busca da paz. Tinham a mesma missão e compartilhavam hábitos e rotinas: gostavam de praticar cooper, apreciavam música, liam livros de bons autores, mas, principalmente, dividiam o compromisso com o bem estar da humanidade.
Foi Carolina quem completou a ligação telefônica no dia marcado para a entrevista, nos atendendo, simpática e cordial. Após quase seis meses de tentativas frustradas, contando com a ajuda de amigos em comum de Vieira de Mello, a entrevista iria finalmente acontecer.
“Você me desculpe. É que o tempo é curto. E temos um trabalho intenso. Preciso ser breve”,justificou, cordial o entrevistado. Não foi breve. Logo de cara cometi uma gafe: chamei-o de embaixador. Ele corrigiu, explicando que não tinha seguido carreira no Itamaraty por um motivo forte: seu pai, embaixador, tinha sido cassado. Refeita da gafe, corrigi dizendo que nós, brasileiros, tínhamos orgulho de ter um “superembaixador” como ele, alguém que trabalhava pela paz, pela conciliação de forças sempre tão distintas.
Foi em clima descontraído que Vieira de Mello conversou durante o que me pareceram depois de transcorridos infinitos minutos. Explicou que o tempo era curto, pois tinha uma equipe da emissora de televisão árabe, Al Jazeera, aguardando ser atendida. Ponderei que eles poderiam esperar um pouco: afinal, aguardamos longos meses para conseguir aquela ligação. Ele riu. E foi respondendo, simpático e bem preparado todas as perguntas.
Felizmente, o que não é o meu costume, fiz um roteiro das perguntas. Isto ajudou a “cobrir” diferentes temas. Não só os corriqueiros, os da vida pessoal, mas também vários questionamentos que ajudaram a relatar como é a vida em um país devastado por anos sucessivos de guerras. O entrevistado contou, com detalhes, como era o trabalho neste verdadeiro campo minado. Literalmente. Não era missão nova para o experiente Alto Comissário da ONU. Antes de chegar à Bagdá – aceitando um pedido pessoal do amigo Kofi Anan, na época, secretário-geral da ONU – Vieira de Mello esteve em missões espinhosas como na África (Angola, Ruanda e Moçambique), no Leste Europeu (Bósnia e Kosovo), na Ásia (Cambodja) e mais recentemente no Timor Leste. Por onde passava deixava companheiros de estrada.
O então presidente do Timor, Xanana Gusmão, era um destes fiéis amigos. Fazia diferença não apenas pela capacidade de fazer estas pontes, de dissipar e solucionar conflitos, mas, acima de tudo, por faze-lo com grande simpatia. Se fosse preciso, driblava as regras rigorosas para resolver impasses: fez isso, por exemplo, na guerra da Bósnia, retirando pessoas de áreas de conflito, em seu carro. É o que relata a jornalista americana Samantha Power, autora da recente biografia "O Homem que Queria Salvar o Mundo" (Companhia das Letras).
 



 
Nos despedimos pelo telefone quase como “velhos” amigos. Certos de que um dia, em breve, iríamos ainda compartilhar, ao vivo, outras tantas histórias. Vieira de Mello não iria continuar em Bagdá por muito tempo: em 2004 estaria de volta à Genebra. Esperava voltar ao Rio para visitar a mãe, irmã e sobrinho. No domingo, dia 17 de agosto de 2003, Dona Gilda, mãe de Sergio, leu a reportagem completa e se emocionou. Confessou, mais tarde, que sentiu um certo aperto no coração de mãe ao ler algumas palavras do filho. “Mãe sente”, revelou, algum tempo depois do atentado. Ela há muito tempo não via o filho, pouco afeito aos flashes da mídia e tão ocupado com o dia a dia, falar tanto. E de forma tão reveladora.
Carolina também, mais tarde, revelou que por pouco aquela entrevista não ocorrera. “O tempo era curto para tantas missões.” Na verdade, a missão no Iraque deveria ter sido apenas por alguns meses, talvez quatro ou cinco, mas acabou se estendendo por mais tempo do que o esperado.
Apenas dois dias após a publicação da entrevista, mal acreditei quando soube do atentado ao Hotel Canal, onde a equipe da ONU havia montado um verdadeiro quartel-general. Estava na redação do jornal e as imagens da CNN não deixavam dúvidas.
O atentado havia tirado a vida do meu novo herói, do meu novo/velho amigo, alguém que nunca teria a chance de conhecer pessoalmente. Mais difícil ainda foi ver a imagem de Carolina, desesperada, sobrevivente da tragédia. Sobrevivente do atentado, ainda totalmente empoeirada, ela gritava o nome dele.
Entre chocada e triste era preciso exercer a função de jornalista. Contar alguns detalhes antes não revelados na entrevista, procurar a família.... Relatar, noticiar. Assim tem sido desde então.
Conheci a família de forma mais dolorosa, no funeral. Depois os visitei, fiquei ainda mais próxima de Dona Gilda, mãe de Sergio, de seu sobrinho, André Simões e de Carolina. Nos falamos com frequência, Dona Gilda e André fizeram questão de comparecer no lançamento de Plurale em revista, há exatos seis anos. Carolina – que deixou a ONU, mas continua estudando e atuando na área de Direitos Humanos - sempre acompanha também nosso trabalho. Somos solidários na dor, na saudade e na vontade de manter o pensamento de Sergio vivo.
 

Sergio 300x291 O legado de Sergio Vieira de Mello FONTE: Plurale.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

É hora de olhos de bem-te-vi e ouvidos de boi manhoso

Médico virou para-raios de governos irresponsáveis
Fátima Oliveira
Médica -
fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_
 
São tantas coisas na política nacional que é difícil eleger um assunto. Então, vamos à bricolagem. Na atual avalanche, o “quente” é o propinoduto tucano, empacando até trens de última geração e espalhando penas pra todo lado. Sem espantos! Tucanos depenados nada sabem. É esperar os finalmente para o veredito. O procurador geral da República, Roberto Gurgel, indicou a cassação da governadora do Maranhão (Quem viver verá. Ou não!). É um espanto a postura do STF de dois pesos e duas medidas para cassar parlamentares: ora diz que, quando cassa mandato, é procedimento terminativo, ora a finalização cabe ao Congresso Nacional. Não há neurônio que suporte.
 
 


 

 O plebiscito, com seu DNA romano, continua na ordem do dia. Sem ele a reforma política vira miragem, e nós, o povo, continuaremos no sal... Há o Mais Médicos, prenhe de boas intenções e vícios de origem, de diversas ordens e dimensões, em especial a bondade com que Dilma riscou do seu caderno as leis trabalhistas. No Brasil, ninguém em pleno uso de suas faculdades mentais é contra a universalidade do SUS; o resto é firula, futrica e peso na consciência de quem poderia ter feito a coisa certa, mas, por onipotência afrodisíaca do poder, errou a mão! Puro mangue. Política é a arte do diálogo. Vale para entidades médicas e governo.
 
 
Thumb Daniel Callahan.jpg  (Daniel Callahan)
 

Em que pese a megalomania monumental do Ministério da Saúde ter chamado para si responsabilidades de municípios e Estados, a gestão da política de saúde, fica a pergunta: “pucardiquê”? Nem às deusas confesso. Cabe citar o bioeticista Daniel Callahan: “Se é fácil compreender que a saúde é um bem precioso e que uma população saudável constitui uma necessidade social e econômica, é difícil encontrar meios para aplicar uma política sanitária eficaz quando os recursos são escassos. Não existem dúvidas de que a saúde é um objetivo desejável, mas nem todo mundo está disposto a pagar para que se outorgue a prioridade devida”. (Salud Mundial, Ano 49, No. 5 set.-out./1996). Releia. Relembre sempre.


   Divulgação( "Carro de Boi", de Rui de Paula)


No Brasil, ninguém
em pleno uso
de suas faculdades
mentais é contra
a universalidade

do SUS; o resto é
firula, futrica


Há obrigações constitucionais para as três esferas de governo, e quem acredita em educação popular em saúde levou anos para vincar na consciência do povo, que difusamente introjetou, as competências de cada uma na atenção à saúde. O desserviço está feito, e o novo culpado, eternizado – e não se chama governo, atende pelo nome de médico, que virou bode expiatório e para-raios de governos irresponsáveis. Pero, agora que Inês é morta, é hora de “... Coração atrevido/Pernas de curioso/ Olhos de bem-te-vi/E ouvidos de boi manhoso...” (“Cavalo Bravo”, Renato Teixeira).
 
 

  Resta a quem teve a profissão vilipendiada aprender a arte de ser Mágico de Oz: atender desejos, sabendo que, “em casa em que falta pão, todo mundo briga e ninguém tem razão”. O que implica expor o mundo real da assistência médica para grandes massas populares, a desigualdade na atenção à saúde e reafirmar os referenciais básicos da eticidade dos serviços de saúde: o acesso universal; a compreensão do ser humano como unidade biopsiquicossocial; a equidade, compreendendo que, “se para algumas pessoas uma aspirina resolve suas doenças, outras necessitam de transplantes de órgãos”; e a qualidade da atenção compatível com a dignidade humana, sobretudo denunciando e repudiando como as mulheres são (des)tratadas nos serviços de saúde e como tais serviços (mal)tratam os negros, explicitando, que em qualquer lugar do nosso país, o primeiro exame para dor de barriga e dor de “estambo” ainda é o parasitológico de fezes, e não a endoscopia!



 PUBLICADO EM 13.08.13
FONTE: O TEMPO

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Nhá Chica não era pobre, mas adotou a simplicidade voluntária


Fátima Oliveira
Médica – fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
 
O fervor devocional por Nhá Chica faz de Baependi (MG) um porto de turismo religioso similar a uma Casa da Moeda. O dinheiro rola aos montes: de R$ 1 em R$ 1 – preço de um chaveiro com a Nhá Chica preta, anecas, xícaras, camisetas, sacolas, panos de prato, imagens tradicionais da santa, em papel e em gesso pintado, de vários tamanhos e preços.
Estive lá em 27 e 28 de julho passado, com Silvana Nascimento, perguntadeira de nascença, que indagou a mais de uma centena de pessoas sobre a nova imagem. Para devotos, Nhá Chica é preta e acabou-se! Foi instalada a desobediência religiosa. Disse a dona de um restaurante: “A minha Nhá Chica, e não vou trocar, é pretinha, em sua cadeira e com seu guarda-chuva. Diz que o papa mandou fazer daquele jeito, quase branca, de pé, de terço de ouro na mão e vestido florido. Não troco minha Nhá Chica pretinha nem por ordem do papa!”.
 
 
Nas missas de domingo, às 9h e às 11h, o santuário da Imaculada Conceição lotou até a escadaria, e o comércio de tudo com a imagem antiga da santa, até na loja do santuário, que não fecha nem nos horários das missas, é vigoroso. A nova imagem, cópia da de Osni Paiva, é rara. Só a vi em um lugar. O comerciante disse que não é vendável (!).
O legado de Nhá Chica é de fé e muito dinheiro. Doou para o patrimônio de Nossa Senhora da Conceição “casas, terrenos e fontes de água”, sob a guarda da paróquia de Santa Maria de Baependi, que, em 1955, designou às freiras da Congregação das Irmãs Franciscanas do Senhor cuidar da herança de fé e material que gera dinheiro para obras sociais. Até para acender vela virtual/ecológica paga-se – uma moedinha no cofre aciona um sensor que acende a vela –, pois as velas de verdade são proibidas! Ah, usar o banheiro é de graça!
 
 
Nha Chica
 

Numa retrospectiva da vida de Nhá Chica, ela nunca foi “pobre, pobre, pobre de marré deci”. Optou pela filosofia da vida simples, que não é a penúria imposta pela pobreza. Da chácara, onde vivia com a mãe, tirava o sustento. Após a morte da mãe (1818), recebeu do irmão, Theotônio Pereira do Amaral, o escravo Félix, a quem alforriou, mas morou com ela até morrer, aos 80 anos (1883); com dinheiro próprio e de doações, construiu a igrejinha de Nhá Chica, em homenagem a sua Sinhá, a Imaculada Conceição, iniciada em 1865 e inaugurada em 8.12.1887, sob os acordes de um órgão caríssimo, comprado por ela no Rio de Janeiro, levado de trem até Barra do Piraí (RJ) e de lá até Baependi, num carro de boi, uma viagem que durou três semanas!
 
Herdeira universal do irmão, falecido em 1861, recebeu uma fortuna e a usou para a caridade e para cumprir designação do testamento dele de doação de 200 mil réis para dourar o altar mor da igreja matriz de Mont Serrat (1862). Nhá Chica ditou um testamento em 1.7.1888. Seu espólio, cujo inventariante foi o monsenhor Marcos Pereira Gomes, vigário de Baependi, foi suficiente para um enterro “nos trinques”, de cujas despesas, no valor de 47 mil réis, consta até uma grinalda de porcelana francesa; e distribuiu para o cônego Custódio de Oliveira Monte Raso, o sacristão Francisco de Paula Mota Júnior e várias irmandades católicas 106 mil réis, totalizando 153 mil réis, em dinheiro vivo (um conto de réis valia oito gramas de ouro), conforme Passarelli (2013).
Nhá Chica praticou a simplicidade voluntária, era solidária com os pobres, material e espiritualmente, e socorria com a sua fé todas as pessoas que a procuravam. Nhá Chica, por seus méritos, é uma santa do povo, sempre-viva e imortal como a flor.


 PUBLICADO EM 06.08.13
FONTE: OTEMPO