(DUKE)
Fátima
Oliveira
Médica
- fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Ideologia e práticas fascistas causam-me repugnância.
Misto de medo e ódio. Quem combateu os tempos macabros de fascismo no Brasil
(ditadura militar de 1964) carrega, além da repugnância, o sentimento do dever
cumprido e a obrigação eterna de reconhecer e denunciar as diferentes faces do
fascismo.
Desde pós-eleições presidenciais de 2014, tive a
percepção de que o fascismo – que ensaiava sair da toca antes das eleições,
sobretudo durante a campanha – reaparecia com vigor espantoso quando quem
perdeu as eleições não aceitava a derrota, e sob o argumento do país dividido,
devido a uma vitória inegável, porém numericamente “apertada”, movia mundos e
fundos, querendo sair vencedor de um pleito que perdera no voto a voto!
Tal atitude não republicana encontrou eco em setores
que sufragaram o nome do derrotado, mas muito mais na escória da política que
sempre se beneficiou do fato de que somos um país dividido, não apenas por
classe, mas também por recorte racial-étnico. País dividido é o “normal” do
Brasil, pois desde sempre somos um país “apartado”.
(Coral da UFMA)
Logo, país dividido é argumento que não se sustenta
para colocar em xeque uma eleição quando não se é vitorioso. Na medida em que
as práticas fascistas, seja na vida real ou no mundo virtual – nas redes
sociais –, apareceram mais amiúde, adquiriram ar de naturalidade, era
insuportável não me insurgir contra elas. Eu me via aos vinte e poucos anos
devolvendo a beca do coral da UFMA para não cantar para Geisel (Ernesto Geisel,
1907-1996), ditador do Brasil de 1974 a 1979.
(Palácio Cristo Rei - construído em 1838 pelo arquiteto Manoel Pulgão em estilo barroco tardio, por iniciativa do comendador José Joaquim Vieira Belfort)
Pouca gente imagina o que é, em tempos de fascismo,
para uma estudante de medicina, no começo da noite, sair do parque Urbano
Santos, passar pela praça do Panteon, descer a rua dos Remédios até ao palácio
Cristo Rei, onde cantaríamos para o ditador, para devolver a beca ao maestro do
coral, Giovanni Pelella, na véspera da solenidade, já com o largo dos Amores
(praça Gonçalves Dias) cercado por policiais, depois de o meu nome ter sido
carimbado como inofensivo e apto para cantar para o ditador.
Giovanni Pelella (Foto entre Pereirinha e Zé Joaquim)
Quem integrava o coral da UFMA, uma semana antes do
evento, passou por um pente-fino! O maestro apenas disse: “Nossos nomes
passaram”. E eu ria intimamente por enganar a ditadura! Fui da Juventude
Operária Católica (JOC), mas já respondia politicamente ao PCdoB.
Fui uma das primeiras pessoas inscritas no coral da
UFMA quando ele foi criado, em 1973. “Amo música e gosto de cantar. Não tenho
uma voz e tanto, mas sou afinadíssima em meu naipe de contralto. Sou muito
musical e do tempo em que canto orfeônico era uma disciplina escolar. Aprendi a
solfejar e a ler partitura... Ser desasnada em música é um privilégio.
Participei de corais do primário à universidade” (“Sociologia da música caipira& da música sertaneja”, O TEMPO, 26.5.2009).
(Da esquerda para a direita: Helenira Resende, Aurora Maria Nascimento Furtado, Soledad Barrett, Dinalva Oliveira Teixeira, Isis Dias de Oliveira, Ana Rosa Kicinski Silva) FONTE: Em memória delas, as mulheres assassinadas pela homenagem de Bolsonaro, Por Mariana Serafini
E por que devolvi a beca ao maestro? Eu não queria
cantar para Geisel, mas não podia dizer o motivo! Após passar a barreira do
Exército na entrada do palácio Cristo Rei, no auditório entreguei minha beca ao
maestro (não recordo por que ele estava lá naquele horário), apenas disse que
não poderia participar porque estava com febre e diarreia. Alguém disse: “É a
estudante de medicina, está com diarreia”. Gelei!
Outro alguém pegou a lista de nomes e riscou o meu.
Devo ter sido convincente o bastante e com certeza estava com um aspecto de
doente porque nada me foi perguntado. Saí de lá zonza e, na altura de onde era
o Colégio São Luís, comecei a chorar convulsivamente. Entrando em casa ainda
chorava. Eu poderia não ter voltado – eram tempos de fascismo.
PUBLICADO
EM 19.04.16
FONTE:
OTEMPO
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