Fátima
Oliveira
Médica
- fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Gosto
de ouvir testamento de Judas, cultura popular que está acabando. De um lado, há
quem considere malhar o Judas uma violência; de outro, era uma cultura forte e
presente nos meios populares, em especial nas regiões metropolitanas, onde hoje
um número expressivo de pessoas virou evangélico, e as expressões culturais do
catolicismo popular vão minguando.
Em
janeiro passado não encontrei um reisado para apreciar na ilha de São Luís.
Disse-me uma vizinha: “Ah, mulher, acabou tudo isso! O povo virou evangélico.Até bumba meu boi tá no rumo de acabar, por falta de gente pra brincar!”. Pois
é, que dirá malhação/queimação de Judas!
É fato
que Judas ou se enforcou (Mateus 27:5) ou se jogou de um barranco e se partiu
ao meio (Atos 1:18). Escrevi que “malhar ou queimar o Judas no Sábado de
Aleluia é, simbolicamente, agir à margem da Justiça oficial, o conhecido ‘fazer
justiça com as mãos’: justiçar um traidor sem direito de defesa, motivo pelo
qual muita gente é contra a tradição de origem católica e ortodoxa, trazida
para a América Latina por espanhóis e portugueses. Justiçamento é uma coisa, e
justiça é outra.
“No
Brasil, está perdido no tempo o início do costume de julgar, condenar eexecutar o traidor de Cristo após a leitura do seu testamento, cujo conteúdo satírico
é sobre a vida de alguma figura pública real ou salpicado de tiradas
humorísticas sobre pessoas de destaque na vida local (bairro ou município),
estadual ou nacional. Nada a ver com Judas Iscariotes, aquele que vendeu Cristo
por 30 dinheiros.
“A criatividade
brasileira transformou a malhação de Judas em uma sátira sobre amigos e
vizinhos e/ou sátira política, razão pela qual a ditadura militar de 1964
vigiava as malhações para não permitir que personagens do ou a serviço do
regime militar fossem alvo de chacota. Em alguns lugares, era preciso ‘tirar
autorização na polícia’ para o evento, só concedida mediante a apresentação do
testamento!”
“Não
podemos negar a cara política adquirida pela queimação do Judas no Brasil, e
omiti-la é esconder uma parte da nossa história... O testamento de Judas é uma
peça literária de grande criatividade” (“Como sátira política, a malhação deJudas sobreviverá”?, 10.4.2012).
“Falar
mal” da vida dos outros em versos é só pra quem sabe poetizar rimando! E
testamento de Judas que se preze é feito em versos: “Para Duda, minha neta/ Que
é cheia de mania./ Deixo uma roça completa/ Plantada de melancia” (“Testamentodo Judas do Sanharol”, de Mundim do Vale). “Deixo à direita raivosa/ Cujo
‘amor’ é conspirar/ Um pedaço de minha corda/ Para feliz se enforcar” (Do blog
“Afinsophia”).
(Vista aérea de Graça Aranha-MA)
Em
Graça Aranha, o homem que quisesse saber se era corno ou se a filha ainda era
moça (virgem), tinha de prestar atenção no testamento do Judas da rua do Alto.
Muitos casamentos foram desfeitos depois do Sábado de Aleluia. Embora as
inconfidências morais aparecessem cifradas, as “candinhas” quebravam a cabeça
até decifrá-las. Nas conversas na véspera, Sexta-Feira Santa, a grande pergunta
era: quais serão as presepadas do testamento de Judas?
Fazendo
Judas, aprendi ou descobri que sabia versejar, lá pelos 8 anos de idade. A
meninada “judeira” – porque também era uma brincadeira de criança – pedia ajuda
para escrevinhar o testamento do seu Judas. E eu, que tinha o meu Judas, não me
fazia de rogada em auxiliar outras crianças donas de Judas. E assim se passou
meio século...
PUBLICADO EM 31.03.2015
FONTE: OTEMPO
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