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Elizabeth Regina Comini Frota**
Desde
que mudamos para esta casa, em Nova Lima (MG), em outubro de 1995, nossas tentativas
de ter um cachorro que fique conosco até a vida adulta e velhice vem sendo
sistematicamente frustradas. Nestes quase 20 anos tivemos vários cachorros que
morreram pelos motivos mais
estranhos. Todos eles cuidados e
queridos, nunca maltratados e ainda assim nos deixaram perplexos com suas
mortes bestas. Sempre acho que morte de cachorros é uma negligência de quem os
cuida, e aqui estou eu contando uma história que nunca queria contar, uma
história da minha própria incompetência em conviver com os animais que eu mais
gosto.
(Saluki)
Quando
viemos para a casa recebemos de presente um casal de Salukis lindos. O Saluki é
uma raça extremamente rara aqui no Brasil, é um cachorro de pastoreio comum no
Oriente. Tem parentesco com Afghanhound, mas tem menos pelos no corpo. São elegantes, dóceis e extremamente obedientes. O casal era o Cascão (nome fantasia, porque o
nome no pedigree era outro) e a Dália.
Junto com estes a Lívia, então com 13 anos e louca para ter um cachorro,
trouxe no colo uma filhotinha de Cocker Spaniel dourada que recebeu o nome de
Tica. Ficamos todos, eu, a Lívia e o Bruno, exultantes, enquanto meu marido
arrancava o resto de cabelos com tantos cachorros! Mas como aqui cachorro tem
de montão, na semana seguinte, a primeira amizade que a Lívia fez no bairro lhe
rendeu mais dois filhotes de pastor belga, um pretinho e um marrom de capa
preta. Lindos, irresistíveis! Ficamos então, de repente, com cinco cachorros
para quatro pessoas.
(Cocker Spaniel)
(Pastor belga)
Nesta
altura a empregada resolveu voltar para BH porque não aguentava viver com
tantos cachorros. Deixamos a empregada ir e ficamos com os cachorros. Tínhamos
dois canis grandes e separávamos alguns para não ter briga. De vez em quando
soltávamos todos, principalmente aos domingos à tarde e aí era uma festa de pelos, corridas e
bagunças pelo quintal. Pura alegria! Cada um com sua personalidade.
Aí
começou a nossa Via Crucis canina! O pastor pretinho, que se chamava Duque,
teve uma desinteria e, apesar de vacinado, não
resistiu e morreu. Ficamos com os outros quatro. Tomávamos cuidados vigentes na época, mas não
havia ainda coleira contra Leishmaniose, ou outros recursos que agora são
comuns. O Cascão e a Dália tiveram cinco
filhotes de Saluki, lindos! Ficamos com um macho, a quem demos
o nome de Sheik, porque ele era legítimo originado das Arábias; e uma fêmea linda,
com manchas pretas, a quem demos nome de
Pretinha (não somos muito originais em nomes de cachorros, eu confesso!).
(Menina tomando chá com cachorros, no tapete, de Elsley)
Resolvemos
reformar o canil para dar mais conforto
aos nossos animais. Enquanto isso, pedimos
a um vizinho, que estava com uma casa inacabada
e fechada, que nos deixasse colocar alguns cachorros lá até conseguirmos reformar
o canil porque não podíamos deixar todos juntos
no quintal. A Tica, Cocker Spaniel, já
com mais de um ano, surrava a Pretinha, que era filhotinha. Deixamos por uma
noite três cachorros no vizinho e quando pegamos pela manhã, a Pretinha estava
com vômitos sanguinolentos e ao tentar levá-la ao veterinário ela morreu antes
de entrar no carro. Fiquei desolada mas não podia desanimar porque tínhamos
ainda cinco outros cachorros para cuidar.
O
filhote marrom de pastor belga nesta altura era um lindo adolescente de 1 ano e
três meses, com pelos imensos e sedosos,
totalmente dócil, gostava de deitar-se e acariciar nossos pés. Ele começou a perder pelos, deitar-se o dia
todo, e aí levamos ao veterinário que diagnosticou Leishmaniose. Foram feitos
então exames nos outros cachorros e o Saluki
pai, o Cascão, também estava. Ele tinha por volta de 11 anos. Os dois então
foram levados pelo veterinário para sacrifício. Aquela altura nenhum
veterinário tratava Leishmaniose e já havia pessoas no bairro que pegaram a
doença dos seus cachorros.
Até
aqui tínhamos quatro cachorros mortos, mas ainda era uma questão natural para
nós porque vários cachorros do bairro foram sacrificados.
Ficamos
então com 3 cachorros, o Sheik, sua mãe Dália e a Tica. Minha filha Lívia era
alucinada pela Tica, até teve um desmaio, um dia de tanto correr atrás dela.
Mas estávamos com uma problema. A Dália tinha uma pata defeituosa por um
atropelamento antes de ser nossa. A Tica
ficou adulta e começou a brigar com a Dália. Nós tínhamos que deixá-las presas
o dia todo porque a Dália não se defendia e acabou machucada. Numa destas decisões difíceis que a gente
acha que está fazendo o bem, resolvi dar a Dália para uma criança de 11 anos
que foi criada em nossa casa quando a mãe foi empregada aqui, antes de nós. Que
erro absurdo por falta de conhecimento de cachorros! Assim que viu o portão da
casa desta criança aberto a Dália fugiu e presumimos que tentou voltar pra
nossa casa, porque nunca mais foi vista. Com ela foram cinco cachorros que
perdemos.
(Menina de castigo e cachorro ajudando, de Barber)
A
Lívia nesta época ganhou de um vizinho uma fêmea de pastor alemão marrom a quem
chamamos de Luna. Enquanto estava pequena não havia problema, mas assim que
cresceu a Tica começou a enfrentá-la e a Luna uma vez pegou a Tica na boca e
quase a matou. Realmente a Tica não era uma cachorra que podia conviver com
outras e desta vez foi ela que foi doada a uma criança. Soubemos posteriormente que também ela pegou
Leishmaniose e morreu.
Conviveram
o Sheik e a Luna por uns bons anos em nosso quintal em completa harmonia, como
o Sol e a Lua, revezávamos quem soltava de dia e prendia a noite, para não
cruzarem, mas a vida sempre encontra um caminho e um dia descobrimos a Luna
gestando. Ela deu a luz a cinco cachorros bem
diferentes, mistura de pastor com Saluki. Demos todos e um deles viveu muitos
anos em nosso vizinho.
(Mulher de Renoir com cachorro)
Uma
nossa faxineira por medo dos cachorros nos obrigava a prendê-los em dia de
faxina. Num destes dias, o nosso vizinho mexeu em uma colmeia de abelhas e as
abelhas saíram furiosas em nuvem e atacaram meus cachorros, numa hora em que
somente a faxineira e o Bruno estavam em casa. O Sheik era muito magro,
conseguiu fugir pelas grades do canil. A Luna, muito grande e corpulenta, não
conseguiu sair, foi picada por centenas de abelhas, morrendo a caminho do
veterinário de edema agudo no pulmão pelas picadas. Ela tinha três anos, era
nossa queridinha. O Bruno foi tentar soltá-la e foi picado também mas se salvou
pulando na piscina. Ficamos arrasados mais uma vez. Só tinha nos sobrado o
Sheik e a história de sete cachorros com destinos trágicos em nossas vidas. Mas
a história não acabou aí. e tem muito mais!
Após
um ano deste trágico dia das abelhas, peguei o Sheik com febre e muito
prostrado e decidi levá-lo ao Hospital Veterinário da UFMG, porque um ano antes
haviam tratado muito bem dele lá. Foi então diagnosticado pneumonia e
resolveram interná-lo. Eu o deixei bastante confiante porque estava entregando
em mãos de pessoas experientes (ledo engano!). Ao chegar em casa de volta fiquei sabendo que
ao levá-lo para o canil a veterinária o deixou sem coleira e ele se levantou e
fugiu para mata. Quem conhece a mata do Campus da UFMG na Pampulha em BH, sabe
que lá é difícil achar um cachorro fujão. Que irresponsabilidade, que
incompetência!! Esta história durou 8 meses. Passei vários fins de semana
procurando à noite na mata. Coloquei no rádio, no jornal, em faixas na região e
não tive absolutamente nenhum apoio do hospital para reavê-lo. Funcionários da noite relatavam que ele
aparecia de vez em quando, eu ia atrás e tentava vê-lo. Nunca consegui.
Um dia ligaram do hospital que ele havia sido resgatado, mas estava
muito doente com Leishmaniose avançada e eles eram obrigados a
sacrificá-lo. Briguei até com o diretor
do Hospital e eles foram obrigados a tratá-lo e me dar o remédio para trazê-lo
pra casa. Eu o trouxe de volta. Nesta altura entretanto já tinha aqui um pastor
macho irmão da Luna, que vivia circundando minha casa e quando os donos mudaram
ele nos escolheu e resolveu ficar conosco. Chamava-se Newton, nome dado pelos
antigos donos, que eram muito irônicos. E mais uma vez nos vimos diante da
impossibilidade de ter dois cachorros soltos no quintal.
Então o
Newton ficava preso durante o dia e o Sheik ficava preso a noite. Mas o Sheik
embora tratado, não aguentou muito tempo. Seus nódulos cresciam a cada dia, ele
se levantava com dificuldade e estava muito magro. Não comia mais e eu passei
dias com a cabeça dele no colo tentando confortá-lo. Até um dia que eu mesma
pedi a meu marido que arranjasse a medicação que eu mesma iria sacrificá-lo sem
traumas, calmamente. Mas ele não me ouviu e simplesmente chamou a veterinária
quando eu não estava e levaram-no para sacrificar. Mais um grande luto, mais dor. Restou-nos o Newton, aquele que nos
escolheu como donos, que escolheu nossa casa. Achava que isso significa que de
alguma forma nossa casa era boa em algum aspecto. Ele passou alguns meses sozinho, tranquilo,
solto pela casa, 'só o prendíamos em dia de festa, porque ele não era de todo
confiável com pessoas estranhas.
(Pastor alemão)
Alguns
meses depois a Lívia ganhou outro cachorro Cocker Spaniel dourado, lindinho e muito esperto, que
recebeu o nome de Duque (o segundo Duque!). Algum tempo depois ela ganhou
também uma fêmea Cocker Spaniel preta e branca,
de 10 meses, e pretendíamos cruzá-la com o Duque que a esta altura já
estava adulto. Mas na maioria das vezes
os nosso planos deram errado, não somos muito bons com cachorros. Antes que
descobríssemos os primeiros sinas do seu cio, ela cruzou com o Newton, o pastor
alemão enorme. E o Duque nem chegou perto dela mais.
Durante
o dia ela ficava solta e o Newton preso, e ela ia para perto do canil do Newton
e os dois ficavam se beijando e imagino que trocavam também juras de amor. Ela
deu a luz a lindíssimos filhotes, seis, enormes, e foi uma mãezinha excelente
para eles. Ficamos com um deles, parecido com o pai na cor, com orelhas caídas,
muito bonito e chamamos novamente de Beethoven (o segundo). Os outros filhotes
foram facilmente doados. A cachorra nem chegou a ter o segundo cio, adoeceu com
Leishmaniose e teve que ser sacrificada também. Oitava cachorra perdida em
nosso quintal!! Aqui tem alguma coisa muito estranha, apesar de pessoas que
adoram cachorros, não conseguíamos ficar com eles.
Outro
acidente então veio nos intrigar ainda mais. O Newton, ficou preso no canil num
dia de festa. Ao final da festa ocorreu uma tempestade com raios que eu nunca
mais vi outra igual. Raios por todos os lados e nosso quintal cheio de árvores,
eu não deixei o Bruno ir ao quintal libertar o
Newton. Após amainar a chuva e os raios, fui soltar o cachorro e ele estava com
respiração agônica. Tentei ligar para uma veterinária na casa dela, e ela me
explicou que não podia atendê-lo, mas que ele provavelmente melhoraria, estava
apenas assustado com a tempestade. Outro veterinário de plantão somente do
outro lado de Belo Horizonte.
Auscultei o cachorro como faço com meus pacientes e percebi que
seu pulmão estava cheio de líquido e seu coração batia bem fraquinho. Ele foi
agonizando e morreu tentando respirar. Uma morte muito sofrida! Este foi o
nono.
O
Duque e o Beethoven viveram tranquilos conosco
por volta de quatro anos. Saíam na rua, davam uma voltinha, voltavam sempre.
Até que duas vizinhas muito implicantes começaram a reclamar deles. Parece que
uma delas pegou-os e levou para longe, porque um dia sumiram e nunca mais os
vimos. Nunca mais! Procuramos por todo o bairro,
perguntamos anunciamos o desaparecimento, mas não os
achamos. Decidimos com isso nunca mais ter cachorros. Onze cachorros perdidos
em situações ruins já eram mais que suficientes para sabermos que aqui não é um
lugar bom pra cachorros, pois nós erramos muito
com eles e por mais que gostemos sempre fazemos alguma coisas que contribui involuntariamente para eles morrerem ou irem embora.
Por sete anos fomos firmes em nossas decisão.
(Border Collie)
Parecia
que estávamos curados de tantas perdas quando o Bruno chega em casa com um
filhote de Border Collie, misturado com legítimo vira lata. Uma bolinha de pelo
preto branco e marrom, lindo, inteligente e amoroso.
Recebeu o nome original de Bohr, dado pelo Bruno, ligado nas ciências. Ele foi
treinado por um especialista, mas na verdade fazia o que queria, abria as
portas e ficava na porta do quarto do Bruno quando ele estava em casa.
(Pastor canadense)
Não
satisfeitos com um só, quando o Bohr estava com
1 ano e três meses, a Lívia novamente ganhou uma
fêmea de pastor canadense de um aluno e trouxe para que cuidássemos dela. Outra
vez pus o nome de Luna, desta vez por semelhança porque ela era branquinha como
uma raio de luar, com os olhos cinzentos lindos. Estavam aqui convivendo bem os
dois, brigando e brincando todo o tempo juntos. Estava planejando levá-la ao
veterinário para verificar os sinais de cio, resolvi tirá-la do canil e colocá-la
separada num jardim de inverno que temos ligado ao nosso quarto. No primeiro
dia, ambientando-se no lugar, ela descobriu um fio de luz num cantinho que nós
não sabíamos que tinha, mordeu o fio e
morreu eletrocutada, com sete meses apenas. Este é um trauma que não vai dar
para esquecer, porque cuidamos com tanto carinho desta cachorra, tinha muito
medo de perdê-la, protegi o quanto pude e uma fatalidade dessas acontece assim,
debaixo do nosso nariz, contra todas nossas esperanças.
Enquanto
eu escrevia este texto, esperançosa de que nosso último cachorro o Bohr,
vivesse muito tempo conosco, aconteceu a
última tragédia. O Bohr adoeceu logo depois da morte da Luna, e após uma semana
internado na clínica, inexplicavelmente, desenvolveu convulsões fatais. Ele foi
o décimo terceiro cachorro da saga de cachorros de nossa afeição mortos ou
sumidos. Tínhamos verdadeira admiração por ele, era um menino, um amigo do meu
filho Bruno.
Nossa
casa é uma casa de treze cachorros mortos ou sumidos, não é uma boa história
para contar, não é um lugar abençoado pela convivência canina. Nós adoramos cachorros, considero-os pessoas da
família, sou incapaz de abandoná-los maltratá-los. Eles
são uma grande fonte de carinho. Mas nossa vida em algum momento se descruza e
o vento os leva de nós, assim na primeira ventania, como flores se desfazendo, como passarinhos
que caem do ninho.
Se
houvesse um céu de cachorros, eu seria uma grande contribuinte, logo eu que não
consigo imaginar um paraíso sem estas criaturas que só nos fazem bem. Cada um
dos nossos cachorros nos deu muita alegria quando chegou e muita tristeza
quando partiu. E de cada um temos muitas
lembranças boas. De cada um eu lembro o olhar pedindo carinho, porque é só isso
que querem de nós. Gostaria de ter
continuado minha jornada com todos eles até o fim, porque é assim que queremos
com as criaturas que gostamos.
Belo Horizonte, 21 de março de
2015
(**Elizabeth Regina Comini Frota, neurologista)
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