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sexta-feira, 20 de março de 2015

21 de março – Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial: Massacre de Sharpeville

Consciência Negra
Fátima Oliveira 
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


20 de novembro, Dia da Consciência Negra, lembra Zumbi dos Palmares, único herói nacional negro. Em sua memória, resgato hoje Steve Biko, cuja vida é narrada, com algumas distorções, no filme “Um grito de Liberdade”, de Richard Attenborough. Steve Biko, intelectual sul-africano, assassinado na prisão pelo apartheid (1977), é um dos ideólogos do Consciência Negra – movimento político sul-africano que objetivava unificar a luta contra o apartheid resgatando a história da resistência negra, tendo como inspiração a luta pela terra, o etiopismo e outros movimentos religiosos de matriz africana, assim como as lutas pelo reconhecimento da contribuição dos sul-africanos mestiços e asiáticos na construção da África do Sul.
Se o 20 de novembro aqui é Dia da Consciência Negra, não há dúvida que a inspiração foi o movimento de jovens estudantes negros liderado por Steve Biko. Fui à África do Sul em agosto de 2002. Fiquei sufocada diante das enormes grades de ferro da belíssima orla de Durban. Era o mesmo que sinto quando vou a uma “fazenda colonial”. Eu as detesto, pois lembram-me a senzala e o estupro colonial! Na orla de Durban compreendi Steve Biko. Durante o apartheid só os brancos podiam transpor aquelas grades. Havia cidades segregadas (townships) – áreas residenciais (bairros ou cidades) separadas para brancos, negros, mestiços e asiáticos; e os bantustões – áreas destinadas aos negros, consideradas pelo governo racista como países autônomos.
No momento da emergência do Consciência Negra, década de 1960, os líderes dos bantustões se diziam os legítimos porta-vozes dos negros, todavia a grande luta política anti-racista foi empreendida por organizações como o ANC (Congresso Nacional Africano) de Mandela e o PAC (Congresso Pan-Africanista). Steve Biko foi o primeiro presidente da SASO (Organização dos Estudantes da África do Sul), criada por volta de 1967 para se contrapor à NUSAS (União Nacional dos Estudantes da África do Sul) e a outras entidades de estudantes brancos. A SASO era uma necessidade, pois, conforme Biko, os estudantes liberais brancos eram incapazes de compreender satisfatoriamente as aspirações dos negros. Biko abandonou a Escola de Medicina da Universidade de Natal para se dedicar à política. Tornou-se ideólogo e liderança do Consciência Negra. Em 1973 era um dos 16 estudantes, negros e brancos, penalizados com o banimento – pena imposta pelo governo a ativistas contra o regime, que consistia em confinamento em uma área ou cidade; proibição de estar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo; publicar qualquer escrito e em não sair do local de confinamento.
Steve Biko nos anos 1970 se dedicou aos BCP (Programas da Comunidade Negra), projetos de desenvolvimento comunitário que ele chamava de “declarações políticas”. No prefácio de  “Escrevo o que eu quero” (Ática, 1990), que reúne os escritos de Biko, o segundo presidente da SASO, Barney Pityana, afirma: “tais projetos expressavam a luta do povo por autodeterminação e um meio para se utilizar com eficácia os recursos da comunidade. Eram empreendimentos cooperativos e não atos de caridade. Era vital portanto, que o pessoal que trabalhasse neles fosse negro e que eles surgissem a partir da percepção que a própria comunidade tinha suas necessidades”. Nos BCP os estudantes realizavam, voluntariamente, “trabalhos comunitários”, tais como alfabetizar e ajudar nas clínicas de saúde e similares.
Hoje o stevibikismo significa entreajuda entre negros, exclusivamente. Tenho a convicção que uso tão restrito, que desconsidera o contexto do apartheid que Biko vivenciou, é em si uma distorção da incomensurável contribuição, teórica e política, de Steve Biko à luta anti-racista. O stevebikismo precisa ser re-significado como o pensamento político original de Steve Biko, a Consciência Negra, e no Brasil adquire simbolismo especial, algo como renascimento da quilombagem, já que à data que lembra Zumbi, demos o nome de Dia da Consciência Negra! Entre nós Steve Biko vive!
Na iminência de um governo autodenominado popular e democrático, urge considerar que o Estado brasileiro é ideologicamente explorador, escravocrata e machista, cujas elites são praticamente as mesmas do período da escravidão, como diz o  sociólogo Clóvis Moura. Acrescentemos ainda que a “irmandade dos negros” não existe e que a intelectualidade negra brasileira é pequena, dividida em um espectro que vai da extrema direita à extrema esquerda, logo, no conjunto, não é “intelectual orgânica” do Movimento Negro. Completando o imbroglio, há uma “esquerda branca”, majoritariamente machista e racista, que chegará ao Planalto levando a reboque seus “negros de estimação”. Sabemos, de longa data, cada “grupo” se acha o “eleito” de todos os deuses e orixás, adotando a prática de impor como verdade única as suas idéias.
Eis o pano de fundo do governo popular e democrático, “caldo de cultura ideal” para uso da tática “dividir para reinar”. O embate ideológico tende a se acirrar, pois a luta anti-racista, que não é um bloco monolítico, não elaborou um corpo teórico e político sobre o que fazer. O feminismo conseguiu, logo tende a ser mais ouvido e respeitado que o movimento negro. Buscar união, ainda que temporária, é o que nos resta fazer.

O TEMPO, 20 de novembro de 2002


Imagens do Navio Negreiro

Fátima Oliveira 
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_

A sanha discriminatória da cientista política Lúcia Hipólito é tamanha que deixa qualquer pessoa normal atônita. Vamos reler um trecho paradigmático:
"A mulher do presidente Lula, seus filhos e netos são hoje também cidadãos italianos.
O que será que isto quer dizer?  Como é que esta atitude será interpretada pela maioria dos brasileiros, que não querem fugir do país e que tentam, todo santo dia, fazer do Brasil um
país melhor? Como o Brasil espera inspirar confiança nos investidores estrangeiros, quando a família do presidente da República já conseguiu para si mesma uma rota de fuga do país?” (Rádio CBN, 25.12.05). 
É um abuso de intelectual que “se acha”... Como ousa EXIGIR que alguém ESQUEÇA suas origens? E em nome de que a brasileira Marisa Letícia deve abrir mão de suas origens? Ela descende de italianos pobres que vieram ao Brasil “fazer a vida”. Criada com valores e cultura italianos, é natural que queira transmiti-los à sua descendência. E por que NÃO? Qual é o crime de Marisa Letícia por solicitar cidadania italiana? Renega o seu país natal? Não. Apenas não renega sua ascendência e origem de classe.  Lúcia Hipólito não sabe que a origem de classe é eterna? Eu “cultivo, de forma quase religiosa, a minha origem de classe” (A origem de classe é eterna. O TEMPO, 28.08.2002).
Fui criada numa família culturalmente negra, da alimentação aos mitos e ritos. Descendo de portugueses (lado paterno) e afro-descendentes (lado materno). Convivi pouco com meu avô branco. Recordo-me que ele era enfático ao dizer que não descendíamos de degredados (leia-se: criminosos), como a maioria de paulistas “quatrocentões”, cujos ancestrais vieram cumprir pena na Colônia Penal de Portugal, o Brasil.
Conheço alguns países europeus, mas jamais fui a Portugal. Estive na África do Sul em 2001 como representante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) na III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, na condição de assessora da Diplomacia do Brasil.
É a primeira vez que escrevo sobre a emoção que foi descer em solo africano. Não encontro as palavras que expressem o que realmente senti. Logo eu que sou visceralmente verbal... Amanhecia quando vi os céus da África e as savanas... Depois de mais de 8 horas de São Paulo a Joanesburgo (indo para Durban), chorei enquanto descia as escadas do avião, pois fui tomada, de repente, pelas imagens dantescas descritas em O Navio Negreiro... 
Em minha mente, afloravam, em torrentes, os versos de Castro Alves – que aprendi a declamar com a profª. Sílvia Parga, em São Luís, para o I Festival de Poesias do Maranhão, no suntuoso Teatro Arthur Azevedo (1969? 1970?): “Stamos em pleno mar (...) Era um sonho dantesco... o tombadilho (...) Tinir de ferros... estalar de açoite/Negras mulheres, suspendendo às tetas/Magras crianças, cujas bocas pretas/Rega o sangue das mães (...) E ri-se a orquestra irônica, estridente (...) Mas é infâmia demais! Da etérea plaga/Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares!/Colombo! fecha a porta dos teus mares!” (O Navio Negreiro. Castro Alves). 
Imaginei a travessia África-Brasil num navio negreiro quando descia do jumbo na Terra de Nelson Mandela e de Steve Biko. Na Delegação oficial do Brasil à Conferência da ONU, saudando Dandara e Zumbi, em copiosas lágrimas, pisava em solo africano uma médica, conselheira do CNDM. Não era pouco para uma tataraneta de sobreviventes de navio negreiro. Sei. Lamento jamais ser também cidadã africana, pois não posso comprovar documentalmente de qual país vieram meus ancestrais. Marisa Letícia pode. É crime?

O TEMPO, 21 de junho de 2006
  (Massacre de Sharpeville)
Lutar para nós é um destino
Fátima Oliveira 
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Para mim é gratificante a percepção de que o tempo passa; a consciência da finitude da vida; que estamos na luta por nossa própria conta e que à essa altura da vida posso me dar ao luxo de ser mais “abusada”, à la Steve Biko: “só escrevo o que quero”, e não ter prurido de quebrar a porcelana ordinária para colocar em seu lugar a porcelana verdadeira.
Ouso dizer que o mesmo ocorre ao presidente Lula. Gosto quando ele abre o verbo de livre-pensador e não deixa sobrar pra ninguém: “esse Dia das Mulheres é um alerta a todos nós: vamos acabar com a hipocrisia neste País, preservativo deve ser doado e ensinado como usar, sexo é deve ser feito e ensinado como fazer (...) eu queria dizer para vocês que nós precisamos dar um passo adiante (...) E para que essa ousadia venha a acontecer, no ano que vem Nilcéa você poderia, no Dia Internacional da Mulher, fazer um Dia de Combate à Hipocrisia que está estabelecida na cabeça de todos nós.”
Em “Veja você”, Renata Lo Prete diz: “Em conversa recente com um governador aliado, Lula observou que o PT, tão cheio de apetite em outras áreas, não demonstra o menor interesse por cargos  nas pastas criadas para cuidar de causas historicamente ligadas à sigla, como as secretarias da Igualdade Racial e de Políticas para as Mulheres”. (FSP, 18/03/07). Relembro ao presidente que ambas já são feudos 99% petistas. A constatação do presidente se coaduna com a realidade? É possível. Então, como não sentir um gosto amargo de fel nesse 21 de março – Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial?
A data foi criada pela ONU (21/03/1976) para tornar inesquecível o Massacre de Sharpeville (África do Sul, 21/03/1960), quando o governo do apartheid assassinou 60 pessoas negras e cerca de 180 ficaram feridas, numa manifestação de repúdio ao uso do “Livro de Passes” – único documento que permitia acesso às “áreas dos brancos”.
São inegáveis os esforços do Governo Lula para visibilizar o racismo, como são inegáveis os entraves na condução da política e os enormes desvios de rumos. Manda a sensatez que não se deve “jogar a criança fora, junto com a água suja do banho.” Então reafirmo o quê disse em entrevista à revista Eparrei (Casa de Cultura da Mulher Negra).
“Como vê as primeiras iniciativas do governo Lula de políticas para a raça negra?” Disse: “A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) é uma grande promessa. A SEPPIR, criada em 21/03/03, como órgão de assessoramento à presidência da República para estimular, articular, promover, coordenar políticas de promoção da igualdade racial e tendo ainda como missão a construção da transversalidade da igualdade racial nos demais ministérios, em si é uma carta de intenções.”
Se entrevistada hoje, pois “Pra quem sabe ler um pingo é letra”, usaria os versos de Agostinho Neto (1922-1979), médico e poeta, primeiro presidente de Angola (1975-1979):
“Não basta que seja pura a nossa causa./É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós./Dos que vieram conosco e se aliaram muitos traziam sombras no olhar e intenção estranhas./Para alguns deles a razão da luta era só ódio: um ódio antigo centrado e surdo como uma lança./Pra alguns outros era uma bolsa vazia e queriam enchê-la com coisas sujas inconfessáveis./Outros viemos./Lutar para nós é ver aquilo que o povo quer realizado./É ter a terra onde nascemos./É sermos livres para trabalhar./É ter para nós o que criamos./Lutar para nós é um destino./É uma ponte entre a descrença e a certeza de um mundo novo./Na mesma barca nos encontramos. Todos concordam, vamos lutar./Lutar para quê? Para dar vazão ao ódio antigo?/Ou para ganharmos a liberdade e ter para nós o que criamos?/Na mesma barca nos encontramos, o que há de ser do timoneiro?/Ah! As tramas que eles tecem! Ah! As lutas que travamos!/Mantivemo-nos firmes:  no povo buscamos a força e a razão./Inexoravelmente, como uma onda que ninguém trava, vencemos. O povo tomou a direção da barca./Mas a lição foi aprendida: não basta que seja pura e justa a nossa causa./é necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”

O TEMPO, 20 de março de 2007

   (Massacre de Sharpeville)

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