por Conceição Lemes
Começou dia 13 de fevereiro e vai até 2 de março, em Genebra, Suíça, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU).
Para o Brasil, especificamente, sexta-feira passada, 17, foi chave. A ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), apresentou um relatório sobre as medidas adotadas pelo Estado brasileiro para promover a igualdade de gênero. O enfrentamento da mortalidade materna foi um dos temas abordados.
Primeiro, porque anualmente cerca de 1.800 brasileiras morrem antes, durante ou poucos dias após o parto. Em 2009, foram 1.872 óbitos maternos declarados, segundo o DATASUS. O que significa 65 mortes para cada 100 mil bebês nascidos vivos.
Segundo, porque, em 2011, o Estado brasileiro foi condenado pela Cedaw devido à morte de Alyne da Silva Pimentel, ocorrida em 2002.
Os casos de Alyne, em Berlfort Roxo, na Baixada Fluminense, e de Marina Carneiro, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, são emblemáticos dessa tragédia brasileira.
Alyne, então com 28 anos de idade e 27 semanas de gestação, procurou uma casa de saúde particular, pois estava vomitando e com fortes dores abdominais. Saiu de lá com prescrição de remédios para náuseas, vitamina B12 e uma medicação tópica para infecção vaginal.
Após dois dias piorou. Voltou à casa de saúde e uma ultra-sonografia mostrou que o feto estava morto. O parto foi induzido. Mas os médicos só fizeram a cirurgia para retirar a placenta 14 horas depois. Em seguida, Alyne teve hemorragia, vomitou sangue e sua pressão arterial caiu. Decidiram transferi-la para um hospital público da região.
O único que a aceitou foi o Hospital Geral de Nova Iguaçu. Alyne esperou oito horas por ambulância. Como a casa de saúde não encaminhou junto qualquer documento que indicasse o seu estado clínico, ela ficou horas no hall da emergência, pois não havia leito disponível. Aí, entrou em coma e morreu no dia seguinte. Entre o mal-estar inicial e o óbito se passaram cinco dias.
Marina Carneiro tinha 25 anos, residia em Porto Alegre, havia morado nos Estados Unidos, cursava o último ano de Engenharia do Meio Ambiente. Fez pré-natal com o médico do seu convênio. Ele solicitou cinco ultra-sonografias, mas nenhum exame de urina durante o pré-natal, como determina o protocolo básico de atendimento às gestantes.
À 0h30 do dia 7 de março de 2005, na 34ª. semana de gestação, Marina deu à luz a Manuela. Não sobreviveu para conhecê-la. Sete horas depois morreu. Causa: doença hipertensiva específica da gravidez (DHEG).
“Se o médico da Marina tivesse recomendado exame de urina e demais medidas indicadas no protocolo de atendimento de gestantes, descobriria que ela tinha proteína na urina, a DHEG seria diagnosticada e ela salva”, atenta a enfermeira obstétrica e doutora em Saúde Pública Alaerte Leandro Martins. “Alyne morreu por falta de cuidados médicos adequados desde o instante em que procurou a casa de saúde pela primeira vez com fortes dores abdominais. A partir dali, os equívocos foram se acumulando, chegando ao absurdo de ela ser transferida de hospital, já em estado grave, sem um relatório com dados do seu prontuário médico.”
“Alyne e Marina morreram não por falta dos R$ 50, propostos pela MP 557, mas por falta de acesso a um pré-natal de qualidade, o nosso calcanhar-de-aquiles”, avisa Alaerte. “A alta taxa de mortalidade materna no Brasil se deve principalmente à má qualidade do atendimento e à falta de organização das redes de serviços e não à falta de acesso ao pré-natal, como muitos propagandeiam.”
“A mortalidade materna é maior entre as mulheres negras, sendo que metade dos óbitos devido a aborto é por aborto espontâneo”, adverte Alaerte. “Em situação de abortamento, as mulheres são discriminadas. E se são negras são mais discriminadas do que as brancas. Serão as últimas das últimas a serem atendidas, correndo maior risco de morte.”
Já nos anos 1970 o movimento negro alertava sobre fortes indícios de que a mortalidade materna das negras no Brasil era, expressivamente, maior que do que a das brancas. O setor saúde e os governos nunca deram crédito à hipótese. Até que uma enfermeira obstétrica negra, Alaerte Leandro Martins, resolveu estudar o assunto.
Alaerte Martins: Dificilmente os R$ 50 vão ajudar a reduzir a mortalidade materna no Brasil
Na tese de mestrado “Mulheres negras e mortalidade materna no estado do Paraná, de 1993 a 1998”, analisou 956 óbitos maternos, na faixa etária de 10 a 49 anos, ocorridos nesse período. Concluiu que, quando comparada à das brancas, a mortalidade das negras era 6 vezes maior. A tese de doutorado, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), foi sobre gestantes negras que não foram a óbito, mas que ficaram com graves sequelas: “Near miss e mulheres negras em três municípios da Região Metropolitana do Paraná”.
Alaerte trabalha há 22 anos com saúde da mulher. Integra o Comitê de Prevenção de Mortalidade Materna do Paraná, tendo sido sua presidenta. Integra a Comissão de Prevenção da Morte Materna do Ministério da Saúde. É coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras do Paraná.
Eis a íntegra da entrevista que ela nos concedeu.
Viomundo – Quando se diz que x ou y é um problema grave de saúde pública, muitos imaginam milhares e milhares de mortes. Qual o significado da alta taxa de mortalidade materna?
Alaerte Martins – Para se compreender melhor a magnitude do problema, a gente tem de falar do cálculo da mortalidade materna. É um dos raros indicadores calculados por 100 mil nascidos vivos. Significa que cada mulher que morre é única em 100 mil bebês nascidos vivos. E quando essa mulher morre, não é apenas ela que vai, a família toda “morre”. E o que é mais cruel: são mortes evitáveis.
Para a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), se a mortalidade materna de uma região é muito alta, é porque ela é subdesenvolvida. A morte materna evidencia que se não há assistência digna à mulher no pré-natal e no parto – em 85% a 90% dos casos deveriam ser normal –, não há assistência para mais nada.
É absurdo que em pleno século XXI, quando se faz transplante de todo tipo de órgão, a mulher ainda morra por estar grávida. Quanto menos desenvolvido o país ou a região, maior a mortalidade materna.
Viomundo – Quantos casos ocorrem por ano no Brasil?
Alaerte Martins – Em 2009, foram 1.872 óbitos declarados, segundo o DATASUS. O que dá 65 mortes maternas para 100 mil bebês nascidos vivos.
Viomundo – Como se distribuem pelo Brasil?
Alaerte Martins – Numa mesma região, há índices totalmente opostos. Eu trabalho numa regional de saúde que engloba 29 municípios, inclusive Curitiba. Nela, além da capital, está Araucária, o município com melhor IDH do Paraná, e Doutor Ulysses.
Araucária tem mortalidade materna comparável aos países de Primeiro Mundo, como Estados Unidos, Japão, Dinamarca, França, Alemanha, Inglaterra, onde ocorrem menos 10 mortes maternas para cada 100 mil nascimentos.
Mas também faz parte da minha regional a cidade de Doutor Ulisses, com índices comparáveis a algumas regiões da África. Doutor Ulisses, no Vale da Ribeira, município com menor IDH do Paraná, tem 500 óbitos maternos para 100 mil bebês nascidos vivos.
Em 2009, segundo o DATASUS, a taxa de mortalidade materna foi de 67/100 mil nascidos vivos na região Norte; 73, na Nordeste; 62, na Sudeste; 55, na Sul; e 62/100 mil nascidos vivos, na região Centro-Oeste.
Detalhe: as regiões Norte e Nordeste são as que apresentam maior percentual de população negra. E as mulheres negras morrem mais por causa da gravidez do que as brancas.
Viomundo – Qual o número de óbitos maternos segundo o quesito cor?
Alaerte Martins – A relação mortalidade materna/nascidos é maior entre as mulheres indígenas, seguidas das mulheres negras. Porém, morrem mais mulheres negras.
Explico. Em 2009, segundo o DATASUS, houve 1.872 óbitos declarados, sendo 25 de mulheres indígenas. Mas, como a população indígena é pequena, a relação morte materna/nascidos vivos, é a mais alta: 157óbitos para cada 100 mil nascidos vivos.
Já entre as mulheres negras (soma de pardas e pretas, segundo o IBGE) a relação é menor: 75 para cada 100 mil. Porém, em números absolutos é, em disparada, maior: 1.076 óbitos. Portanto, 57% do total de um total de 1.872 óbitos em 2009.
Em 2009, segundo o DATASUS, tivemos 2 óbitos em amarelas, 638, em brancas e 131 em que a cor da pele não foi registrada, apesar de ser obrigatório desde 1996.
Viomundo – A mortalidade materna decorre de falta absoluta de estrutura?
Alaerte Martins – Não necessariamente.
Viomundo – Quais as causas então?
Alaerte Martins – Há causas diretas e indiretas. Nos países de Primeiro Mundo, a grande maioria dos óbitos maternos é por causa indireta, ou seja, doença previamente existente. Por exemplo, a gestante já tem hipertensão arterial ou diabetes antes da gravidez. Algumas vezes, apesar de acompanhamento diferenciado, essas doenças podem se exacerbar na gestação e ela morrer. A mulher morre não por causa da gravidez propriamente dita, mas devido a uma doença pré-existente.
Viomundo – E as causas diretas?
Alaerte Martins – É o grande absurdo: a mulher morrer exclusivamente porque está grávida. São quatro as principais: doença hipertensiva específica da gravidez (DHEG), hemorragia, infecção puerperal e aborto.
Viomundo – No Brasil, qual a mais freqüente?
Alaerte Martins – Na maioria das vezes, a DHEG é a primeira causa. Há anos em que a hemorragia a supera. Quando isso acontece, é a segunda.
A DHEG é o distúrbio mais comum, acontece em geral na primeira gestação. Gestantes perfeitamente saudáveis podem tê-la. O organismo passa a tratar a placenta como inimiga. Por volta da 20ª semana, provoca aumento da pressão arterial, edema (inchaço por retenção de líquidos) e proteinúria (aparecimento de proteínas na urina).
A terceira causa é a infecção puerperal. Está mais do que comprovado que ela é decorrente de imprudência e negligência dos profissionais de saúde. São médicos que se acham deuses e não lavam as mãos antes dos procedimentos. E enfermeiras, que é a minha categoria profissional, que não sabem esterilizar direito os materiais. Resultado: a gestante acaba morrendo de infecção. Ela pode contrair infecção numa cesariana descuidada e até num parto normal se for deixado no útero resto placentário.
Viomundo – Como prevenir a doença hipertensiva específica da gravidez?
Alaerte Martins – Fazendo pré-natal bem feito. Numa gravidez normal, dá, em torno, de 12 consultas. Mas existe um protocolo básico que tem de ser seguido, seja a paciente SUS, de convênio ou particular. Isso implica fazer, no mínimo, seis consultas, se a paciente não for de risco. É o mínimo mesmo! Em cada uma, é preciso verificar a pressão arterial e o peso – 1kg a 1,5kg é o máximo que se deve ganhar por mês. E fazer duas baterias de exames de urina. Com isso, previne-se a maior causa de mortalidade materna, que é a DHEG.
Viomundo – Mais leitos em UTI previnem a DHEG?
Alaerte Martins – Não adianta só fazer UTI. O leito da UTI é para a mulher que já está morrendo. Se a DHEG não for prevenida no pré-natal, através do acompanhamento adequado, a doença avançará tanto que a gestante entrará em coma. Aí, claro, vai precisar de UTI.
Muitas vezes a mulher com DHEG não morre por causa da DHEG propriamente dita, mas devido à imprudência do médico. Na ansiedade de fazer logo o parto, ele realiza uma cesariana no sufoco. A paciente descompensa de vez e morre.
Viomundo – Cesariana aumenta o risco da gestante com DHEG?
Alaerte Martins – Se não estiver sulfatada, sim.
Viomundo – O que significa sulfatar?
Alaerte Martins – Equilibrar a pressão arterial da gestante, dando-lhe sulfato de magnésio. Suponhamos que a pressão foi a para 20 por 15. Cesárea feita com esse nível pressório, a gestante “empacota”.
Por isso, primeiro, tem de sulfatá-la, para reduzir a pressão arterial. Estabilizada, escolhe-se a via do parto: cesariana ou normal, se ela tiver condições de fazê-lo.
O tratamento da DHEG em si consiste em retirar a placenta que envolve a criança. É essa membrana que, em algumas mulheres, eleva muito a pressão arterial, causando pré-eclampsia e eclampsia, que é quando já está em coma e pode morrer. Porém, se a placenta for retirada sem a paciente estar sulfatada, ela vai morrer do mesmo jeito.
Viomundo – Quais são as causas de hemorragia?
Alaerte Martins – Por exemplo, placenta fora do lugar. Essa mulher pode ter hemorragia durante a gravidez e já passar a ser gestante de risco, o que exigirá mais consultas.
A hemorragia pode ser pós-parto simplesmente porque o útero não se contraiu. Por isso, quando ocorre essa hemorragia, a mãe tem de ser levada logo para o hospital. É fundamental que tenha profissional habilitado a fazer massagem uterina, para o útero contrair. E se não resolver, tem de se recorrer até à histerectomia (cirurgia para retirar o útero), para garantir a vida dessa mulher. Às vezes a simples administração de sangue numa mulher que está com hemorragia pode provocar um choque. Aí, ela morre não pela falta, mas pelo sangue mal administrado.
Viomundo – O aborto seria a quarta causa principal?
Alaerte Martins – Sim, em alguns lugares, a terceira. Às vezes até a primeira causa, como aconteceu em Salvador há 3 ou 4 anos. Detalhe: ¼ dos abortos são espontâneos. Entre as mulheres negras, metade dos óbitos devido a aborto é por aborto espontâneo.
A propósito, quando uma mulher chega a um hospital em processo de abortamento, ela é vista e tratada pela equipe de saúde como criminosa. Então, tanto o aborto quanto o tratamento são, em geral, cruéis e desumanos.
Viomundo – Por que acham que o aborto foi provocado?
Alaerte Martins – Com certeza. A discriminação é tão grande que só o fato de ela chegar com sangramento, eles já ficam em cima pressionando.
Por um acaso eu sou doutora, mas a minha irmã é balconista de loja, mal fez o primeiro grau. No ano passado, ela teve de fazer uma cirurgia de emergência por conta de um mioma. Ela passou o dia inteiro para ser atendida, todo mundo chegava de cara feia perguntando o que ela havia feito.
Eu já conhecia isso do relato de outras mulheres. Mas quando a minha irmã de sangue me contou o quanto foi maltratada, pude sentir que a discriminação é muito maior. As mulheres com suspeita de aborto são as últimas a serem atendidas, são tratadas como criminosas, inclusive aquelas que sequer o provocaram. Esse atendimento certamente contribui para que algumas morram.
Viomundo – Por que a mortalidade materna é maior entre as mulheres negras?
Alaerte Martins – Sem dúvida alguma devido à condição genética. Existem quatro doenças que são mais comuns na população afro-brasileira: hipertensão arterial, diabetes, anemia falciforme (ou doença falciforme) e deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (anemia mais rara e mais fácil de tratar). Pois essas doenças que são mais prevalentes na população negra são causas indiretas de óbito materno. Assim como as mulheres descendentes de italianos têm mais talassemia (outro tipo de anemia), que também é causa indireta de morte materna.
Viomundo – O racismo pesa na morte materna?
Alaerte Martins – Eu fiz uma pesquisa sobre morte materna no Brasil. Em cima dela, te digo: se um dia eu for parir, vou parir em Salvador. Aqui, no Paraná, a gestante negra tem 7,3 vezes mais risco de ir a óbito. Em Salvador, 3,7.
Explica-se. Aqui, no Paraná a nossa população negra é só 24%. Você chega num hospital, numa escola, a maioria das pessoas é branca. A nossa mente é seletiva. Vai atender o pacote, que é a maioria. E vai deixar para depois a minoria. Em Salvador, onde a maioria é negra, acontece o contrário. Primeiro, é atendida a maioria que é negra.
Isso não significa que o risco para as brancas seja maior em Salvador. O risco para as negras é que é menor.
O racismo e o preconceito estão tão incrustados em nós que as pessoas aprenderam a tratar as outras no pacote. E isso se reflete na mortalidade materna, na assistência à saúde, enfim. Primeiro, são atendidos os que são iguais, depois os diferentes.
Imagine na hora do aborto. As mulheres negras já são discriminadas. Em situação de abortamento, elas são mais discriminadas do que as brancas. Serão as últimas das últimas a serem atendidas, correndo maior risco de morte.
Viomundo – Influencia mais racismo ou a pobreza?
Alaerte Martins – Os dois caminham quase sempre juntos. Você pode ter condição genética para hipertensão arterial e não chegar a desenvolvê-la ou mantê-la bem controlada, se tiver diagnóstico e tratamento precoces aliados a acesso a serviços de saúde, alimentação adequada, etc. Por outro lado, se tiver baixa renda (menor acesso aos serviços, menos alimentação adequada), ela se somará à baixa escolaridade (menor nível de compreensão sobre si e sua saúde), contribuindo para o rápido desenvolvimento da doença, até a morte.
Viomundo – Como deve ser o pré-natal?
Alaerte Martins – É preciso que todas as mulheres grávidas brasileiras tenham acesso ao pré-natal. Isso se chama universalidade. É o primeiro pilar do SUS (Sistema Único de Saúde). O segundo é a integralidade, para não acontecer o que ocorreu em Curitiba há 3 anos. Tivemos cinco óbitos por infecção urinária, um atrás do outro.
Levamos um susto. Será que a mãe não estava fazendo exame de urina? Estava. Será que não havia antibiótico para tratar a infecção? Havia.
Nós fomos estudar. As cinco mulheres que morreram eram pobres e ninguém as encaminhou para fazer uma higiene dentária. E elas tinham infecções na gengiva. De que adianta dar antibiótico para o útero e esquecer que pode haver infecção na boca? Isso é integralidade da atenção à saúde. Quem trouxe esse conceito para o SUS foi o movimento de mulheres.
As mulheres são únicas e um todo, não apenas útero. E os governantes insistem em não entender isso. Daí uma das razões pelas quais sou contra a Rede Cegonha. Todo mundo esperava que a presidenta Dilma fosse melhorar – e muito – a saúde da mulher como um todo. Em vez disso, veio um pacote com a Rede Cegonha, inclusive com esse nome horrível.
Para salvar todas as negras e as descendentes de italianos é indispensável que façam no pré-natal a eletroforese da hemoglobina, que é o exame para saber se têm anemia falciforme ou talassemia.
Não adianta fazer um pré-natal completo para elas só pensando na universalidade. Tem de se pensar na especificidade que essas duas mulheres têm. Ou seja, a possibilidade de terem essas doenças genéticas.
Equidade é tratar os desiguais de modo diferente. É saber que todas as mulheres não são iguais para serem colocadas num pacote. Tem de ter o pré-natal para todas. Mas tem de ter integralidade, mas principalmente especificidade, de acordo inclusive com o tipo de atividade profissional de cada mulher.
Viomundo – O que acha dos R$ 50 previstos na Medida Provisória 557 como auxílio-transporte às gestantes?
Alaerte Martins – Quando soube que a MP 557 previa R$ 50, fiquei saltitante. Tinha certeza de que era o retorno do pagamento do SisPreNatal (Sistema de Acompanhamento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento) às Secretarias Municipais de Saúde, que são as responsáveis pela atenção à saúde das gestantes, inclusive pelo transporte quando necessário. Seria uma forma de retomar o financiamento e monitoramento do pré-natal como um todo, principalmente das gestantes de alto risco.
Caí do cavalinho, quando vi o absurdo que é dar esses R$ 50 para a mulher, responsabilizando-a por algo que já é direito dela. Desde a Constituição Federal de 1988 e a consequente implantação do SUS, a responsabilidade de transportar a gestante no pré-natal é do gestor municipal.
Viomundo – Por favor, explique melhor essa história do SisPreNatal e dos R$ 50 que eram pagos às secretarias municipais de saúde.
Alaerte Martins – O SisPreNatal é um sistema informatizado de monitoramento da qualidade do pré-natal. Possibilita acompanhar cada gestante cadastrada até a consulta do puerpério, preservando o sigilo dos dados.
Até 2009, o governo pagava às secretarias municipais de Saúde gestante R$50 por gestante, sendo R$ 10 para cadastrá-la no primeiro trimestre de gravidez. E os R$ 40 restantes, para realizar seis consultas de pré-natal (no mínimo), uma consulta até 42 dias de pós-parto, vacina antitetânica e solicitar todos os exames básicos preconizados: tipagem sanguínea, hemoglobina e duas baterias de VDRL (teste para sífilis), urina e glicemia.
Em 2009, houve mudança na forma desse pagamento, que foi transferido para o Piso da Atenção Básica (PAB). O valor do PAB foi aumentado na época. Mas perdeu-se ao não possibilitar a visualização dos R$ 50 do SisPreNatal. Muitas secretarias municipais de saúde deixaram então de alimentar o SisPreNatal. E principalmente desvalorizou o SisPreNatal.
Eu pensei que estávamos tendo esse recurso de volta para tratar melhor todas as gestantes e identificar as de alto de risco. Mas não foi o que aconteceu. Infelizmente, o auxílio-transporte é uma grande decepção. Perdemos em 2009. E na portaria 1459, de junho de 2011, que institui a Rede Cegonha, só temos garantido o retorno do pagamento de R$ 10 do cadastro, e ainda fundo a fundo, o que dificulta o monitoramento e consequentemente o interesse do gestor. Cadastrar e não acompanhar — monitorar, fazer busca ativa ou o nome que quiser neste país continental –, não reduzirá a morte materna, pois a gestante é que terá de se cuidar.
Viomundo – Por que considera os R$ 50 reais um absurdo?
Alaerte Martins – Se a mulher mora em município qualquer Região Metropolitana de São Paulo, Curitiba ou Belo Horizonte, por exemplo, ela é atendida na Unidade Básica de Saúde (UBS), perto de onde mora. E quando precisa de transporte para chegar até um centro de referência é a UBS que vai trazê-la.
Já em Doutor Ulisses a situação é bem diferente. Lá não tem transporte coletivo. Portanto, os R$ 50 reais não vão ajudar a pagar o transporte para consultas normais. Lá, o parto é feito por parteira em domicílio. Se a mulher precisa ir a um centro de referência, a cidade mais próxima é Cerro Azul, onde vai ser atendida por uma parteira hospitalar, que é uma auxiliar de enfermagem. Óbvio que lá não tem obstetra 24 horas por dia. Depois, ela tem de andar mais 100 quilômetros para chegar em Campina Grande do Sul, que é onde tem maternidade. E não se consegue táxi com menos R$ 200 para ir de Doutor Ulisses a Campina Grande do Sul.
O que a mulher de Doutor Ulisses vai fazer com esses 50 reais? Nada! Se é difícil para a mulher de Doutor Ulisses arrumar um táxi, como vai ser para arrumar uma canoa aquela que mora lá no meio da Amazônia?
Ou seja, para algumas mulheres esse dinheiro não serve, para outras é totalmente insuficiente. E o governo ainda transfere para essa mulher a responsabilidade pelo transporte, que é do município.
Para que servem então os R$ 50? Não consigo pensar em outra finalidade, que não fins eleitoreiros. Não é possível que um técnico que entenda minimamente de saúde pública tenha falado para presidenta Dilma dar esse dinheiro a essa mulher, pois não há o que fazer com ele. É um retrocesso.
Viomundo – Os R$ 50 empoderariam essa mulher?
Alaerte Martins – Em hipótese alguma. Isso é para comprar votos das mulheres mais pobres que acabarão pegando esse dinheiro. Acho isso indigno, até humilhante. A mulher não precisa dos R$ 50, ela precisa que o serviço público realmente funcione. E o serviço é que tem de ir atrás dela. Até porque tudo o que foi proposto até hoje pelo próprio Ministério da Saúde, é exatamente o contrário do que faz a MP 557.
Viomundo – Esses R$ 50 vão ajudar a reduzir a mortalidade materna no Brasil?
Alaerte Martins – Dificilmente. Pelo contrário. É inadmissível uma gestante minha lá de Doutor Ulisses ter de ficar responsável para chegar em Campina Grande do Sul ou Curitiba. É preciso alguém lembrar ao ministro Padilha e à presidenta Dilma que as que morrem são as pobres, as negras, as que não têm acesso. E com R$ 50 nenhuma grávida de Doutor Ulisses vai conseguir táxi para chegar a uma dessas cidades de referência, que têm a responsabilidade de cuidar dessa mulher e quando ela precisar, transportá-la; ignorar isso é querer que muitas mais morram de morte materna.
Depois da conquista desse direito humano à saúde e dentro dele, o pré-natal, a gente conseguiu a duras penas que as secretarias municipais se responsabilizassem pelo transporte, agora, com a MP 557, estamos retrocedendo.
Viomundo – Com os R$ 50 a MP 557 joga nas costas da gestante a responsabilidade pelo transporte até a maternidade. Não é arriscado?
Alaerte Martins – Esse é o meu temor. Meu medo inclusive é que possa acontecer alguma morte e, aí, sim, além do caso Alyne, tenhamos mais processos internacionais. Alyne não morreu por causa dos R$ 50. Não foi por falta de chegar. Pelo contrário. Ela peregrinou por vários lugares. O atendimento é que foi ruim. Se não melhorarmos, portanto, a qualidade do atendimento no pré-natal e principalmente a organização dos serviços, a mortalidade materna continuará sendo uma tragédia brasileira.
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FONTE: VI O MUNDO
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Gostei da entrevista porque é muito educativa. Falam que não há racismo no Brasil e por que as mulheres negras morrem de morte materna mais que as brancas?
ResponderExcluirMulheres, vocês arrebentaram a boca do balão
ResponderExcluirUma entrevista que choca pela realidade que apresenta
ResponderExcluirEu só lamento que o Ministério da Saúde atualmente nem se lixe para morte de mulehres negras. É preciso que seja denunciado isso como racismo institucional
ResponderExcluirFico a imaginar por que os serviços de saúde não se dão conta da tragédia que desaba sobre as mulheres negras quanto aos seus direitos reprodutivos. Uma entrevista importantíssima
ResponderExcluirAlaerte, que dedicação de vida um tema tão pouco estudado! Uma pergunta para a especialista, aliás doutora, em morte materna de mulheres negras, quais foram as fontes que O Ministério da Saúde usou para dizer que a morte materna no primeiro semestre de 2011 é 19% menor do que em 2010? O lançamento desses novos dados parecem um palco de propaganda do ministro padilha para garantir a votação da Medida Provisória 557, não acha?
ResponderExcluirUma entrevista que me tirou o fôlego e o sono. Uma realidade dolorosa que eu desconhecia
ResponderExcluirParabenizar entrevistada e entrevistadora é um dever. Foi como se eu tivesse assistido a uma aula. Ganhei muito e coloquei muitas coceiras na cabeça. Mais algumas
ResponderExcluirAlaerte, que Deus te ilumine cada vez mais
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