(DUKE)
Fátima
Oliveira
Médica
– fatima.oliveira1953@gmail.com @oliveirafatima_
Gosto de trabalhar em urgência. Por uma questão de ter
paz de consciência, de poder dormir por ter feito tudo o que sabia e a medicina
disponibilizava para as pessoas que atendi.
Em pronto-socorro aprendi muito sobre o ser humano,
profissionais da medicina e clientela. Há coisas para rir, chorar e refletir.
Sempre que vejo/ouço notícias sobre inaugurações de hospitais, a primeira
imagem que aparece são os quilômetros de exames complementares desnecessários,
um escoadouro ininterrupto de dinheiro que anemia o serviço público, mas que
cada dia se firma mais como o poder número 1 da prática da medicina defensiva,
sequestrando dinheiro precioso que poderia ser empregado em outras ações.
Conforme José Guilherme Minossi e Alcino Lázaro da
Silva, “a medicina defensiva surgiu na década de 1990 nos Estados Unidos, numa
tentativa de fazer frente às crescentes demandas legais dos pacientes. Pode ser
definida como uma prática médica que prioriza condutas e estratégias
diagnósticas e/ou terapêuticas e que tem como objetivo evitar demandas nos
tribunais... Na prática, se caracteriza pela utilização exagerada de exames
complementares, uso de procedimentos terapêuticos supostamente mais seguros,
encaminhamento frequente de pacientes a outros especialistas e a recusa ao atendimento
de pacientes graves e com maior potencial de complicações” (“MedicinaDefensiva: Uma Prática Necessária?”).
Os quilômetros de exames solicitados que nada têm a
ver com a queixa só dizem uma coisa: “Pouca medicina”! E “pouca medicina”
significa que a pessoa doente não foi devidamente examinada, pois até hoje, sob
o concurso da medicina tecnologizada, a clínica ainda é soberana! E exames
complementares bem solicitados, segundo a queixa e o exame clínico de quem o
médico consulta, recebem o justo nome de “exames complementares” porque de fato
são complementares apenas da história ouvida e do exame clínico realizado! Não
mudou, continua assim!
Há algo errado e irresponsável quando, após 12 horas
de plantão, 90% ou mais das telerradiografias de tórax solicitadas, num rol de
50, são normais! Acontece! Verifiquei várias vezes: “Ave, Maria, no plantão da
Fátima nem radiografia de tórax a gente pode pedir sossegado”, ouvi de um
colega campeão de raios X normais! Na lata: “Tudo o que temos do exame de
urina, hemograma, endoscopia, tomografia a ressonância magnética é para quem
deles precisa, e não para suprir a falta de exame clínico e a incapacidade de
montar uma hipótese diagnóstica”.
Quando ainda “atendia à porta”, a pessoa doente mal
sentou e disse: “Doutora, a senhora atende a gente muito bem, mas pede pouco
exame. Hoje quero fazer todos os exames!” Fiz de conta que não ouvi. Era uma
portadora de angina estável conhecida do serviço. Indaguei por que ela veio ao
pronto-socorro. Ouvi com atenção, examinei e encaminhei à sala de medicação com
os pedidos dos exames do nosso protocolo. Ela verificou os pedidos e disse: “Eu
não fico boa aqui nas ‘clínicas’ porque só pedem esses examezinhos bobos”.
Contra a medicina defensiva – que, “além de
ineficiente em proteger o médico, traz consequências graves ao paciente e à
sociedade, já que gera um custo adicional incalculável ao exercício da
medicina, determina um maior sofrimento ao doente e faz com que haja uma
deterioração na relação médico-paciente” –, temos de reafirmar os referenciais
básicos da eticidade dos serviços de saúde, compreendendo o dito pelo
bioeticista Daniel Callahan: “Se, para algumas pessoas, uma aspirina resolve
suas doenças, outras necessitam de transplantes de órgãos”.
PUBLICADO
EM 17.01.17
FONTE:
OTEMPO
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