(DUKE)
Fátima
Oliveira
Médica
- fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
No sertão, a Semana Santa era chamada de “Dias Grandes”. Não sei por
quê. Intuo que eram tantas as proibições que os dias eram entediantes e longos.
Jejuavam adultos e crianças a partir de 7 anos, que, se “quebrassem o
jejum”, era certeza de “romper a Aleluia na taca!” Criança não apanhava nos
“Dias Grandes”, mas, se fizesse malfeitorias, recebia o “corretivo” no
amanhecer do Sábado de Aleluia.
Falava-se baixo, em
respeito ao calvário de Jesus. Fazer “ar de riso” era passável, mas
repreendido. Gargalhar? Desrespeitoso. Era preciso sentir o sofrimento e a
morte de Jesus! Brincadeiras de roda, nem pensar! As moças não podiam sequer
usar batom, imagine namorar!
Casados, se fizessem sexo, virariam bestas-feras! O cabaré do Derivaldo
fechava! Bebidas alcoólicas, só vinho. Um conhecido enchia um garrafão de vinho
com cachaça e colocava “Ki-Suco” de morango! E a mulher dele dizia: “Vinho pega
mais do que cachaça!”
Ligar o rádio, só na hora do Angelus e para ouvir missa. Só saíamos
para rezas e terços na vizinhança ou na igreja. Não havia padre em Graça Aranha
– acho que até hoje não há! Ficávamos enclausurados – para controle do respeito
ao jejum e para “não se sujar”. Banhos eram pecados. Após o Domingo de Ramos,
banho só na Aleluia – só podia escovar os dentes, lavar o rosto e se “assear” –
lavar os pés antes de dormir e as partes íntimas: banho de assento para as
meninas.
Eram dias de completo descanso. De trabalhos domésticos, só fazer
comida e lavar as louças. Nem lavar roupa podia! A casa era varrida e arrumada no
Domingo de Ramos. Depois, só na Aleluia! As quitandas (bolos e roscas) e os
doces para os Dias Grandes eram feitos até Domingo de Ramos, cujo almoço era
carne, mas da segunda até a Sexta-Feira Santa, qualquer carne era proibida!
Após tantas mortificações, as crianças se esbaldavam atrás dos judas no Sábado
de Aleluia, e os adultos nos bailes da Aleluia.
A gastronomia
religiosa dos “Dias Grandes” e do “Dia do Nascimento” (Natal) do sertão eu
preservo como patrimônio cultural familiar. É uma culinária com cheiro de
infância!
“Até os 10 anos passei os Dias Grandes em minha casa, no sertão. As
saudades são tamanhas que sinto o odor das comidas! Até os 14 anos, passei em
Colinas (MA), onde assistia às duas missas diárias do Domingo de Ramos à
Páscoa; e degustava suculentos peixes do Itapecuru e do Alpercatas, exceto na
sexta-feira, quando o almoço era torta de bacalhau e o jantar era arroz de
bacalhau, da marca Nem – cozinheira da Casa do Estudante” (“As comidas dos‘Dias Grandes’ no sertão e queimação do Judas”, O TEMPO, 14.4.2009).
Sinto os cheiros do cardápio dos “Dias Grandes” da vó Maria. Comíamos
peixe de açude: mandi e piaba fritos no azeite de coco de babaçu e curimatã
recheada envolta em folha de bananeira e assada na telha. Em Graça Aranha, como
dizia meu avô, “nem rio quis passar”! Peixes do litoral, só secos, feitos no
leite de coco de babaçu ou arroz de peixe seco com toucinho. As tortas de
sardinha e de bacalhau eram um luxo!
Jantávamos sobras do almoço e caldo de ovos, exceto na Sexta-feira
Santa, que era arroz de bacalhau ou de peixe seco com toucinho, mas almoçávamos
bacalhau com verduras, que foi transformado em “bacalhau à espanhola” na
terceira geração da família – a vovó adorava e dizia que “a maior vantagem de
ter mandado Fátima para a escola do padre Macedo é que ela virou a cozinheira
mais aprovada da família”.
Eu ser médica era um
mero detalhe para quem dizia que, “se Deus inventou comida melhor do que
bacalhau, guardou só pra ele”.
PUBLICADO EM
22.03.16
FONTE: OTEMPO
Outros escritos de Fátima Oliveira sobre Semana Santa
As comidas dos "Dias Grandes" no sertão e queimação do Judas, 14.04.2009
Sua Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa, 18.04.2011
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