Fátima
Oliveira
Médica
- fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Há gente declamando Marina Colasanti: “Eu sei que a
gente se acostuma, mas não devia. A gente se acostuma para poupar a vida, que
aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma”
(“Eu Sei, Mas Não Devia”, 1972).
E também “O Bicho”, de Manuel Bandeira: “Vi ontem um
bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos./Quando achava
alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade/ O bicho não
era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um
homem”. Retrato do tempo FHC.
E a gente jogando conversa fora na “mesa de comer”. Há
uma saladinha verde salpicada de tomate vermelho picadinho – bem frugal –, que
acompanha uma carne judia, e um vinho tinto chileno resfriado... As crianças
comendo vorazmente, pois querem ver desenho na TV... Parece que foi ontem, mas
não há mais crianças!
E alguém relembra: “Mentem. Mentem e calam. Mas suas
frases/ falam. E desfilam de tal modo nuas/ que mesmo um cego pode ver/ a
verdade em trapos pelas ruas” (“A Implosão da Mentira”, de Affonso Romano de
Sant’Anna).
Assuntos complexos e difíceis adquirem um tom mais
ameno e são mais digeríveis na mesa de comer. E relembramos que escrevi: “Como
em 2005, em 2015 foi a política que saiu perdendo, com o agravante de que, se
Severino era um misógino ‘católico roxo’, Eduardo Cunha é fundamentalista roxo,
orgânico e militante, o que faz toda a diferença, vide o sistema ‘jagunço’ de
fazer política, um sistema de poder que ele implementa com ares e desenvoltura
de presidente do Brasil.
“Se Severino Cavalcanti tinha aquele olhar de
paspalhão, o de Cunha é puro Hermógenes, um chefe jagunço de ‘Grande Sertão:
Veredas’, de Guimarães Rosa, que nem sequer respeitava as normas/ leis da
jagunçagem, como disse Riobaldo Tatarana: ‘O senhor sabe: sertão é onde manda
quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado’”
(“Uma república democrática e laica sob o ‘sistema jagunço’”, O TEMPO,
17.2.2015).
(DUKE)
Reafirmo: “Sim, ‘Hermógenes é fel dormido’. Até porque
Hermógenes não precisa ‘impor-se mau’, pois ele assim o é por si mesmo (e por
resultado do pacto que fez). Hermógenes aparece-nos como a excrescência do
ambiente do sertão, pois estão nele concentradas, justamente, todas as
características que aparecem, por vezes isoladamente, em cada homem da
jagunçagem”. (“Sobreviver ao jaguncismo exige arte e muita manha”, O TEMPO,
21.7.2015).
(DUKE)
Volto a repetir: “O que vivenciamos de janeiro até
agora encerra muitas lições para quem quer aprender. Uma delas é que a luta de
classes está viva, se move para manter o status quo de exploração/opressões e
pode se apresentar em qualquer de suas múltiplas faces. É essencial que
saibamos reconhecê-la” (“É um alento respirar democracia e derrotar ojaguncismo”, (1.9.2015).
E “o fel dormido” encenou uma presepada, embora
renomados juristas digam à exaustão que não há crime que justifique tão insano
desejo! Faço meu o dito por Fernando Morais em “O dia da infâmia”: “No
crepúsculo desse 2 de dezembro, um patético descendente dos golpistas de 64 deu
início ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A natureza do
golpe é a mesma, embora os interesses, no caso os do deputado Eduardo Cunha,
sejam ainda mais torpes. (...) E veremos quem se alia ao oportunismo, ao
gangsterismo, ao vale-tudo pelo poder. Não tenho dúvidas: a presidente Dilma
sairá maior dessa guerra, mais uma entre tantas que enfrentou, sem jamais ter
se ajoelhado diante de seus algozes (“FSP”, 6.12.2015).
A vida segue, e nos cabe defender a democracia.
(DUKE)
PUBLICADO
EM 08.12.15
(Severino Cavalcanti foi fisgado pela comida. No caso, pela acusação de cobrar propina do restaurante da Câmara dos Deputados. Na imagem, o retrato oficial de Severino montado sobre pintura portuguesa do início do século XX).
FONTE:
OTEMPO
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