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segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O cavaleiro andante dos direitos humanos + O legado de Sergio Vieira de Mello

 
O cavaleiro andante dos direitos humanos
Fátima Oliveira

Vários homens o definiram como charmoso. Todas as mulheres que conheço também. Quando ele se foi, me vi em meio a uma viuvez coletiva. Ah, uma amiga, viúva dele também, gravava imagens dele: "sabe, aquelas passadas largas e maneiras... passando a mão na cabeça, às vezes colocando a mão no bolso... seguro de si, um ´deus grego´, em meio aquela desgraceira da guerra? A própria flor no pântano... um óasis em meio à destruição. Era isso que ele era: um oásis." A tarde começava, mas parecia interminável. Tentei cochilar. Ao telefone, Cremilda. Conversa comprida: "sabe, daquelas paixões que a gente tem na adolescência? E lê-lê-lê-lê... quando eu fui a Portugal conheci..."
Ela tá variando... Ou, eu! Cortei a conversa. Uma pessoa que adoro poderia estar morrendo, disse-lhe. "Não é possível, você também? Vamos ficar viúvas?" Ficamos. Eu, veterana, sei que sinto luto de viuvez. Um amor platônico/moral se foi nos escombros de Bagdá. Outra das viúvas, falou que sou bruxa. "Nos jornais a morte dele. No mesmo dia você escreveu sobre a Irmandade da Boa Morte! Não é coincidência."
Débora, filha que aniversaria dia 28, não fique mais espantada do que está. Amor platônico/moral basta existir no campo das idéias. Se basta. É belo por dentro (as idéias) e por fora (o corpo). Sem perspectivas. Nem precisa. Se ama uma idéia. Não qualquer uma, mas belas idéias que se materializam em um cavaleiro andante... Endorfina pura! Relembro um dos chiliquentos de minha vida. Pedi que calasse. Ele, na TV! Em meio aos escombros de não sei de qual das guerras. E o babaca: "não sei o que esse cara tem demais." Desentendida, disse: "você não sabe o que uma guerra tem demais?" Ele foi "na mosca": "o bom moço aí estudou filosofia na Sorbonne. Podia, filhinho de diplomata"... Desancou. Dei-lhe um torra: "com ciúmes de uma miragem?" E ele: "miragem nada, é um cavaleiro andante. Um dia você cruzará com ele nesse infindável turismo feminista." Odeio, visceralmente, quem rotula nossas andanças políticas de turismo feminista. Ele sabia! Pois não é que agora resolveu tripudiar? Telefonou: "agora que o cavaleiro andante morreu, tenho chance?" Sujeitinho sem classe! Ouviu o que não queria: "realmente não se compra charme em botequim. Homem estiloso: bonito, filósofo e ativista, é peça rara."
 
 
Sérgio Vieira de Mello. Foto: Rádio ONU.
 
 
Das viúvas morais de Sérgio Vieira de Mello, Cremilda rouba a cena. É  "classuda". De pirraça, mandou um arquivo chamado "Há Três Anos." E telefonou: "Não mexa em nenhuma vírgula do que escrevi. Coisa que não compartilho é  homem amado." Concedo-lhe a palavra: "Missão Quase Impossível. Há três anos, visitando Portugal, várias situações chamaram-me a atenção pela identificação e reconhecimento de minhas origens. Uma mensagem, entretanto, se sobressaiu às demais, ao ver divulgado em cartazes o nome de um brasileiro que até então me era completamente desconhecido –   Sérgio Vieira de Mello. Nas paredes antigas da Universidade de Coimbra, nas agências bancárias e em outros recintos, constatava-se uma Campanha, empreendida por portugueses, em favor da reconstrução do Timor Leste e da preservação da língua portuguesa, essa nossa tão rica língua-pátria (...)
Meu ego aventureiro, inflado, estava a me perguntar: quem é? Por que essa decisão ou aceitação? Como se desenhava aquele projeto de trabalho e também de vida? Aqui, acolá, em longos intervalos de tempo, como uma infantil colecionadora, fui ajustando pequenos informes, se não fidedignos, mas que reforçavam perfeitamente minha condição emotiva. Refletindo sobre as informações de caráter pessoal e profissional, colhidas de forma acidental, surpreendi-me pensando sobre um brasileiro cuja imagem corporal me era desconhecida e estava sendo construída pela força de suas idéias tão instigantes. Cada nova informação era acrescida à minha composição mitológica. Aprofundando minhas reflexões, acrescentei-me nova indagação: na envelhecência sentimos a necessidade de substituir mitos de apego como o  fazíamos na adolescência? Passamos também, na atual fase de vida, pelo mesmo processo de posseiras e cúmplices de nossas representações, sentimentos esses já experimentados com Guevara, nosso objeto de paixão das batalhas em Sierra Maestra e nas selvas da Bolívia? Será sempre a política externa americana (do Norte) a opositora de nossa soberania e autodeterminação? Quando veremos aliviados o "the end" desse filme já visto tantas vezes?
 
 
 
 
Nesse meu processo de permanente reflexão, decidi por não me permitir desvendar essa relação psicanalítica (...) Quem sabe, um dia, trôpego, se soltaria de seus arreios e, mais próximo, vendo-o, ouvindo-o, poderia confirmar minha construção idealizada. Nessa espera esteve sempre a certeza de que, assim como Platão em estado idealizado, descobrira um grande filósofo da atualidade, cuja cosmovisão e liderança era privilégio de poucos seres humanos. Doutor em Filosofia, Comissário de Direitos Humanos, fazia filosofia à maneira clássica, como uma ferramenta viva, prática e ativa, capaz de transformar  a nós mesmas(os), onde se procura viver o que se aprende e aprender do que se vive (...) suas palavras traduzem coerência e consistência na valorização do ser humano, na eqüidade de gênero, na habilidade de adequar o intelectual competente na assessoria a seus pares, assim como a de estar sempre presente na linha de frente, nas ações de intervenção, na escuta das expectativas daqueles para os quais as ações de progresso seriam dirigidas e seus atores incentivados: "Quando você incentiva, as mulheres têm mais qualidades e valores superiores aos do homem. Minha experiência é que, mulheres e crianças, são as primeiras vítimas nos conflitos. Mas também são fatores de estabilidade, racionalidade e contenção nas crises. Elas sentem mais o valor da paz social e a importância do desenvolvimento econômico." (Sérgio Vieira de Mello) (...)  Cremilda Luiza de Almeida,  uma educadora feminista.

 
Fátima Oliveira escreve no Magazine às quartas-feiras.
O TEMPO, 27 de agosto de 2003
E-mail: fatimaoliveira@ig.com.br
 
 
destaques O legado de Sergio Vieira de Mello
Sônia Araripe, Editora de Plurale

Como o tempo passa rápido. Entre aquele triste agosto de 2003 e agora já se passaram dez anos. Muitos fatos aconteceram desde então. Evento com a presença de autoridades e renomados internacionais marca hoje, 19 de agosto, no Rio de Janeiro, os 10 anos sem o carioca Sergio Vieira de Mello. O Alto-Comisário de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) morreu em atentado contra o Hotel Canal, onde funcionava a representação da ONU em Bagdá.
Estarão presentes no evento - a ser realizado no Jardim Botânico do Rio - nomes como o ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, o ex-presidente do Timor Leste, José Ramos-Horta e também a atual sub-secretária da ONU para Assuntos Humanitários, Valerie Amos. Ela dirige a dirige o Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
O dia 19 de agosto foi instituído como o Dia Mundial da Ação Humanitária desde o atentado que matou Vieira de Mello e outros 21 trabalhadores da ONU que serviam no Iraque em guerra. Alguns companheiros de Sergio e dos outros servidores da ONU estarão no Rio pessoalmente ou participarão da solenidade através de depoimentos gravados (leia mais sobre o evento na Agenda Plurale).
Nunca cheguei a conhecer pessoalmente Sergio Vieira de Mello. Quis o destino que nossas vidas se cruzassem por uma só - derrareira e marcante - oportunidade. Jornalistas não costumam acreditar em sorte ou no destino. Eu acredito. Como explicar, então, que aquela longa e sincera entrevista concedida por telefone, de sua sala em Bagdá, durante cerca de 40 minutos, seria a última concedida por Vieira de Mello? Filho de diplomata e professora, sonhou ser possível trabalhar pelo fim de conflitos, buscando a paz e a união entre diferentes povos. O Alto-Comissário de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) era, sem dúvida, um grande conciliador. Dos melhores.
Quis o destino que eu fosse a portadora de suas expressivas e impressionantes últimas palavras. Reveladoras até mesmo para a família. Só para citar um exemplo, Dona Gilda Vieira de Mello nos contou que o filho, como ela, não era muito apegado à religião. Na entrevista, porém, ele disse, lembrando um dito popular, que, por ser brasileiro, Deus o protegia. Publicada em um domingo de agosto, dia 17, apenas dois dias depois, um atentado a bomba mudou os rumos desta história: a explosão de um carro bomba na sede da representação da ONU no Iraque matou não apenas Vieira de Mello, aos 55 anos, mas também outros 21 companheiros de trabalho. O que parecia um testemunho de crença na paz e na boa fé dos homens transformou-se em tragédia.
A primeira esposa de Sergio, a francesa Annie, junto a seus dois filhos, criou a Fundação Sergio Vieira de Mello, com o objetivo de homenagear os verdadeiros heróis que praticam trabalhos humanitários em diferentes regiões do mundo.
Estudos – Nascido em março de 1948, no Rio de Janeiro, Sergio trouxe no sangue, digamos assim, o gosto pelas questões do mundo. Seu pai, diplomata de carreira, serviu em diferentes cidades, como Roma e Frankfurt. Aos 18 anos, o jovem foi estudar Filosofia primeiro na Suíça, mas foi na Universidade Sorbonne, em Paris, que conclui a graduação e logo depois o Mestrado.
“Os meninos sempre foram muito inteligentes”, recorda-se Dona Gilda. Além de Sergio, ela também tem Sonia, tradutora juramentada de diferentes idiomas. Aliás, como cidadão do mundo, Sergio falava, além do português, francês, inglês, espanhol e italiano. Tiveram a quem puxar: além do brilhantismo do pai já falecido (que tinha especial gosto pela História), é a matriarca da família que ajudou a manter a família unida sempre envolvida com as grandes questões.
“Gosto muito de ler, me interesso por todos os temas”, conta à Plurale, Dona Gilda. Apesar da aparência frágil – “sempre fui magrinha”, conta - aos 83 anos, sua memória é impressionante. Voltando à carreira de Sergio, ela lembra que o brilhante aluno entrou na ONU como tradutor de francês, aos 21 anos. Depois foi galgando postos mais importantes: a primeira missão foi no Paquistão e depois seguiu uma carreira brilhante, mas sempre corrida, sem tempo até mesmo para a vida pessoal. Casou-se com Annie em 1973: tiveram dois filhos, Laurent e Adrian. Sergio não chegou a conhecer, mas, certamente teria orgulho ao saber que já seria avô.
Iraque - Quando sofreu o atentado no Iraque, Sergio estava praticamente separado e vivia uma intensa paixão há quase dois anos com a argentina Carolina Larriera, também funcionária da ONU, sua fiel escudeira em Bagdá. Se conheceram no Timor Leste, onde ambos serviam em busca da paz. Tinham a mesma missão e compartilhavam hábitos e rotinas: gostavam de praticar cooper, apreciavam música, liam livros de bons autores, mas, principalmente, dividiam o compromisso com o bem estar da humanidade.
Foi Carolina quem completou a ligação telefônica no dia marcado para a entrevista, nos atendendo, simpática e cordial. Após quase seis meses de tentativas frustradas, contando com a ajuda de amigos em comum de Vieira de Mello, a entrevista iria finalmente acontecer.
“Você me desculpe. É que o tempo é curto. E temos um trabalho intenso. Preciso ser breve”,justificou, cordial o entrevistado. Não foi breve. Logo de cara cometi uma gafe: chamei-o de embaixador. Ele corrigiu, explicando que não tinha seguido carreira no Itamaraty por um motivo forte: seu pai, embaixador, tinha sido cassado. Refeita da gafe, corrigi dizendo que nós, brasileiros, tínhamos orgulho de ter um “superembaixador” como ele, alguém que trabalhava pela paz, pela conciliação de forças sempre tão distintas.
Foi em clima descontraído que Vieira de Mello conversou durante o que me pareceram depois de transcorridos infinitos minutos. Explicou que o tempo era curto, pois tinha uma equipe da emissora de televisão árabe, Al Jazeera, aguardando ser atendida. Ponderei que eles poderiam esperar um pouco: afinal, aguardamos longos meses para conseguir aquela ligação. Ele riu. E foi respondendo, simpático e bem preparado todas as perguntas.
Felizmente, o que não é o meu costume, fiz um roteiro das perguntas. Isto ajudou a “cobrir” diferentes temas. Não só os corriqueiros, os da vida pessoal, mas também vários questionamentos que ajudaram a relatar como é a vida em um país devastado por anos sucessivos de guerras. O entrevistado contou, com detalhes, como era o trabalho neste verdadeiro campo minado. Literalmente. Não era missão nova para o experiente Alto Comissário da ONU. Antes de chegar à Bagdá – aceitando um pedido pessoal do amigo Kofi Anan, na época, secretário-geral da ONU – Vieira de Mello esteve em missões espinhosas como na África (Angola, Ruanda e Moçambique), no Leste Europeu (Bósnia e Kosovo), na Ásia (Cambodja) e mais recentemente no Timor Leste. Por onde passava deixava companheiros de estrada.
O então presidente do Timor, Xanana Gusmão, era um destes fiéis amigos. Fazia diferença não apenas pela capacidade de fazer estas pontes, de dissipar e solucionar conflitos, mas, acima de tudo, por faze-lo com grande simpatia. Se fosse preciso, driblava as regras rigorosas para resolver impasses: fez isso, por exemplo, na guerra da Bósnia, retirando pessoas de áreas de conflito, em seu carro. É o que relata a jornalista americana Samantha Power, autora da recente biografia "O Homem que Queria Salvar o Mundo" (Companhia das Letras).
 



 
Nos despedimos pelo telefone quase como “velhos” amigos. Certos de que um dia, em breve, iríamos ainda compartilhar, ao vivo, outras tantas histórias. Vieira de Mello não iria continuar em Bagdá por muito tempo: em 2004 estaria de volta à Genebra. Esperava voltar ao Rio para visitar a mãe, irmã e sobrinho. No domingo, dia 17 de agosto de 2003, Dona Gilda, mãe de Sergio, leu a reportagem completa e se emocionou. Confessou, mais tarde, que sentiu um certo aperto no coração de mãe ao ler algumas palavras do filho. “Mãe sente”, revelou, algum tempo depois do atentado. Ela há muito tempo não via o filho, pouco afeito aos flashes da mídia e tão ocupado com o dia a dia, falar tanto. E de forma tão reveladora.
Carolina também, mais tarde, revelou que por pouco aquela entrevista não ocorrera. “O tempo era curto para tantas missões.” Na verdade, a missão no Iraque deveria ter sido apenas por alguns meses, talvez quatro ou cinco, mas acabou se estendendo por mais tempo do que o esperado.
Apenas dois dias após a publicação da entrevista, mal acreditei quando soube do atentado ao Hotel Canal, onde a equipe da ONU havia montado um verdadeiro quartel-general. Estava na redação do jornal e as imagens da CNN não deixavam dúvidas.
O atentado havia tirado a vida do meu novo herói, do meu novo/velho amigo, alguém que nunca teria a chance de conhecer pessoalmente. Mais difícil ainda foi ver a imagem de Carolina, desesperada, sobrevivente da tragédia. Sobrevivente do atentado, ainda totalmente empoeirada, ela gritava o nome dele.
Entre chocada e triste era preciso exercer a função de jornalista. Contar alguns detalhes antes não revelados na entrevista, procurar a família.... Relatar, noticiar. Assim tem sido desde então.
Conheci a família de forma mais dolorosa, no funeral. Depois os visitei, fiquei ainda mais próxima de Dona Gilda, mãe de Sergio, de seu sobrinho, André Simões e de Carolina. Nos falamos com frequência, Dona Gilda e André fizeram questão de comparecer no lançamento de Plurale em revista, há exatos seis anos. Carolina – que deixou a ONU, mas continua estudando e atuando na área de Direitos Humanos - sempre acompanha também nosso trabalho. Somos solidários na dor, na saudade e na vontade de manter o pensamento de Sergio vivo.
 

Sergio 300x291 O legado de Sergio Vieira de Mello FONTE: Plurale.

3 comentários:

  1. A minha mãe é uma viúva de Sérgio Vieira de Mello e o seu ardor por ele é tanto que eu também virei fã rsrsrsrsr

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  2. Só emoções...

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  3. Pois é Fátima o Sérgio Vieira de Mello se impôs na ONu, ao mundo e aos corações de muitas mulheres. Não preciso dizer mais

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