Fátima
Oliveira
Médica
- fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Sempre que ouço falar sobre lugares secos, falta de
água potável e o rentável e explosivo negócio de água engarrafada, sinto o
desejo de compartilhar um trecho de meu romance “Então, Deixa Chover” (Mazza
Edições, 2013), que conta sobre os tanques de água de chuva da Chapada do
Arapari, um lugar aonde o poder público não comparece. Eis um trecho do livro:
“Eu não sabia se olhava para as galinhas que ciscavam
bem perto de nós ou para meu marido, cuja única aspiração era ser um fazendeiro
e ter uma casa confortável ali naquela roça ‘onde Judas perdeu as botas’.
Estremeci, assustada pelo ganir de um cachorro pirento, nojento e fedido. Mas
tão fedido que senti meu estômago embrulhar... E o cachorro se esfregava numa
tora de madeira e latia como um gemido.
“Alguém se apressou a dizer que o bichinho estava com
sarna.
“‘Ah,
é? Lá em casa o pai velho dizia que quando cachorro estava assim era porque
estava com pira. Há um remédio que se coloca na água do banho que cura
rapidinho’.
“Um velho barbudo, que até então só ouvia o que
falávamos, fumando seu ‘pau ronca’ (cigarro de fumo de rolo, enrolado em palha
de milho), deu uma cusparada, daquelas longas, bem nojentas, e disse: ‘Que
banho, senhora! Cachorro aqui só se banha no tempo de chuva, e olhe lá! Quando
chove, eles correm logo pra dentro de casa. É preciso a gente fechar as portas
para que eles tomem um banho à força. Não há água corrente por aqui. É tudo
seco’.
“E eu retruquei: ‘Nem poço vocês têm?’
“‘Não’! Respondeu o velho cuspidor. E ficou com o
olhar fixo no meu.
“‘Nããão? Tantos anos morando aqui e nunca fizeram um
poço?’
“E, mais uma vez, o velho, que descobri ser o pai do
ex-dono das terras que compramos, com o cigarro no canto da boca, completou:
‘Parece que somos um magote de preguiçosos, não é? Pra beber a gente busca água
nos poços do povoado, onde há uns dois de água boa. É comprada. A gente traz
nas ancoretas, no lombo de jumento. Para as outras coisas, a gente se vira por
aqui, como Deus e nossas posses permitem. É que água daqui não presta. Tem
cheiro de querosene. Precisa furar muito mesmo para passar do cheiro do
querosene. Portanto, não se faz poço por aqui. Fica caro demais. É além de
nossas posses. O cabra vive aqui nesse sertão brabo, cumprindo uma sina que não
sabemos qual é. Mas só pode ser sina. Com tanto lugar bom de gente morar, a
gente se enterra aqui. Nasce e é enterrado, como semente. Sem falar que poço
muito fundo é perigoso. Ninguém que faz poço quer furar um poço por aqui.
Talvez hoje em dia até furem porque tem essas manilhas que ajudam, não é? Mas
antigamente não se falava em poço com manilha. Usamos os tanques’.
“Eu, que estava prestando muita atenção no que ele
falava, sentia arrepios pelo corpo. Mas ainda pude indagar: ‘Tanques? Como
assim?’
“‘Como aqueles que vosmicê está vendo ali’... (mostrou
os tanques com o dedo). ‘Quando chove, junta água nos tanques e então a gente
vai usando’.
“ De tão incrível que achei aquela
história, fui olhar de perto, pois o que vi foi um lugar coberto com um
plástico preto. Pois bem, era um buraco cavado no chão, cimentado até a borda,
que ficava um pouco mais alta que o chão e coberto com um plástico preto! Era
uma espécie de cacimba artificial! Explico-me. É que a cacimba é também um
buraco no chão, só que com uma mina d’água. A diferença ali é que, na ausência
da mina d’água, se juntava água da chuva naquele buraco cimentado. Como o povo
sabe se virar e dar asas à criatividade!
“E Cannes? Se eu me enterrasse em vida ali, jamais
veria o glamour de Cannes...”
PUBLICADO
EM 18.10.16
FONTE:
OTEMPO
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