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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Os bastidores da Resolução 196/1996 e as cobaias humanas


Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_



Em “Tributo ao dr. Adib Jatene, um humanista de muitos dons” declarei: “Se não fosse o dr. Jatene, até hoje a pesquisa em seres humanos no Brasil seria ‘terra de ninguém’!” (O TEMPO, 18.11.2014). Abaixo, tópicos dos bastidores da Resolução 196/1996: “Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos”, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), e porque o ministro Jatene foi corajoso ao bancá-la.


Grandes universidades declinaram integrar o Grupo de Experimentação em Seres Humanos (GET), alegando falta de clima consensual sobre o tema. A UFMG e a UFRJ sediaram seminários de suporte à revisão da Resolução 01/1988, primeira diretriz brasileira sobre pesquisas em seres humanos, pouco cumprida!
Houve muito trabalho de sapa contra a 196/1996. Após aprovação no CNS (10.10.1996) e a saída do ministro Jatene (6.11.1996), medalhões da medicina, em audiência com o novo ministro, Carlos Albuquerque, pediram a sua revogação, acusando-a de stalinista: contra a liberdade da ciência! O ministro não caiu na lorota.
O GET foi instituído pela Resolução CNS 170/1995 e eu o integrei. Após aprovada a 196/1996, o GET assumiu, por 180 dias, atribuições da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e acolheu a denúncia sobre um estudo do laboratório Merck, Sharp & Dohme (MSD), em curso em São Paulo (Hospital Emílio Ribas, HC-USP, EPM, Unicamp e CRT-Aids), desde abril de 1995, com 900 participantes, em três grupos de 300: o que só tomava AZT; o que tomava AZT + indinavir; e o que tomava só o indinavir (a droga em ensaio), monitorados pelo Data Safety Committee Board  (DSCB) – comitê de especialistas contratados pelo MSD para revisão de condutas médicas e aspectos éticos.
Em março de 1996, a monoterapia com AZT foi abolida da rede pública, mas a pesquisa insistia nela! Só em agosto de 1996, acrescentou a droga 3TC (epivir) aos dois primeiros grupos e manteve a monoterapia com o indinavir! Fui designada, pela Conep, para elaborar um parecer no prazo de até um mês.


Coisas estranhas aconteceram. Sofri perseguição sem paralelo em minha vida laboral. Telefonemas durante a madrugada que atendia e só ouvia risadas. Passaram a telefonar a qualquer hora: “Não tem medo de amanhecer com a boca cheia de formiga? Seu prédio é inseguro! Não teme sofrer um acidente?”. A “voz” dizia saber onde meus filhos estudavam. E a última cartada foi direta: qual o meu preço para não “prejudicar” a pesquisa. Havia milhões e milhões de dólares em jogo. A “voz” sabia que eu não aliviaria nas conclusões. Bati o telefone. Até hoje não sei quem tocava o terror!
Duas semanas depois, eu estava deitada, lendo, quando alguém, em nome do DSCB, comunicou na TV a “descontinuidade” da pesquisa! Os argumentos/justificativas eram os que embasavam o meu parecer, na ordem em que os escrevi! Nem sequer se deu ao trabalho de mudar a ordem e/ou as palavras! Sem chão, telefonei para Sérgio Ibiapina, representante do CFM na Conep, que bradou possesso: “Vazou, Fátima! Que nojo! Deram o parecer e ‘eles’ fecharam a pesquisa antes da Conep”. E nos perguntávamos: Quem? Mistério, até hoje!
“Eles” agiram antes para blindar as ações do laboratório na Bolsa! Uma coisa é um laboratório alegar questões éticas para “descontinuar” uma pesquisa, outra é um país fechá-la!

Bioética uma Face da Cidadania 2ª Edição PUBLICADO EM 09.12.14 
 FONTE: OTEMPO

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