Fátima Oliveira*
Publicado originalmente no site AFIRMA, em 01 de março de 2005
www.afirma.inf.br/htm/politica/marco.htm
www.afirma.inf.br/htm/politica/marco.htm
Bernardo Joffily, editor do Portal
Vermelho, em “As duas prioridades pós-Severino”, se aventura a dizer que “Depois
da eleição do ‘avulso’ Severino Cavalcanti (PP-PE) para presidente da Câmara
dos Deputados, duas questões ganham relevo e urgência em Brasília: reforma
política e governo de coalizão. O resto é resto, com todo respeito por aqueles
que passaram a priorizar miçangas como o salário dos deputados, o tamanho do
recesso parlamentar ou o estilo verbal do eleito, um sem-diploma universitário
(que horror)”.
Joffily justifica ainda porque afirma que
os partidos são os grandes derrotados pela eleição de Severino Cavalcanti (SC),
já que “O sistema partidário brasileiro sofreu um golpe demolidor na noite
de 14 para 15 de fevereiro, que alguém apelidou de Noite de São Bartolomeu
(numa alusão a um célebre e sangrento episódio de traição do período das
Guerras Religiosas na Europa). Seria superficial responsabilizar Severino,
o ‘baixo clero’, o ‘troca-troca’ ou o também candidato ‘avulso’
petista, Virgílio Guimarães (MG). Foram apenas os catalizadores. Mas o fato é
que, mais que o candidato oficial do PT à presidência da Câmara, Luiz Eduardo
Greenhalgh (SP), a consistência dos partidos políticos brasileiros foi a grande
derrotada daquela longa madrugada. Com honrosas exceções, nenhuma bancada
funcionou. Foi um cada-um-por-si-e-Deus-por-todos. O estrago foi maior por
incidir sobre um sistema partidário reconhecidamente débil.”
Marcelo Beraba, ombudsman da Folha de São
Paulo, afirma, destacando que a eleição de SC não foi uma surpresa apenas para
o governo, mas os 3 grandes jornais brasileiros (FSP, O Globo e Estadão)
fracassaram, “Não porque não apontaram antecipadamente a vitória do
deputado, mas porque foram incapazes de perceber a dimensão do fenômeno
político que estava sufocado nas bases do legislativo (...) Os erros que os
jornais cometeram não são exclusividade desta cobertura, mas vêm se repetindo e
apontam para a falência de um modelo de acompanhamento da política nacional que
domina hoje as grandes e médias redações do Rio, São Paulo e de Brasília. Os
jornais deveriam aproveitar a oportunidade para uma reflexão séria sobre os
rumos do jornalismo político”.
Há uma charge de Maurício Ricardo,
“Severino Cavalcanti canta Severina Xique-xique, do Genival Lacerda”, que,
priorizando as miçangas, contradiz, embora traduza de certa forma, o que falou
Joffily, com uma versão não incompatível com o contexto:
“Ninguém conhece Severino Cavalcanti
Nunca foi muito importante,
mas agora vai mudar!
Aqui na Câmara virei o presidente
prometendo pros colega dobrar o salário da gente
Eles tão de olho... é na conta corrente...
Eles tão de olho... é na conta corrente...
Eles tão de olho... é na conta corrente...
Dinheiro é bom e nunca é demais, não é verdade?
No parlamento um monte de gente bajula
o governo e o Lula
Pra tentar se arrumar
Mas me elegi sem apoio do presidente
Porque fiz uma campanha muito mais inteligente
Prometi dinheiro na conta corrente,
Eles tão de olho... é na conta corrente...
Eles tão de olho... é na conta corrente...
É isso ai, 21 mil lá na carteira,
tem alguém mais competente que eu, hein? Hein?”
Mas, foi a política quem saiu perdendo
O prof. Chico de Oliveira, em “O paradoxo
Severino”, conclui que “Foi a política quem saiu perdendo”. Tenho em alta conta as reflexões dele. Em meu
artigo “Reinventar a democracia” (O TEMPO,
4/08/2004), transcrevi um trecho de sua lavra que em muito poderá nos ajudar a
elucidar enigmas da atual conjuntura: “‘Por que motivo deveríamos considerar
a democracia representativa como último estágio do desenvolvimento da política?
Em nome de que esse respeito, essa reverência? Acaso não aprendemos que a
democracia só sobrevive se for constantemente reinventada?’ Estou morrendo de
inveja de quem ouviu o sociólogo Chico de Oliveira falar isso no Seminário
Agenda pós-Neoliberal (São Paulo, junho de 2004).
Ainda de quebra, citando
Jacques de la Rozière, ele acrescentou:
‘A política é a reivindicação por parte dos que não têm parte’ e o problema central da democracia é que ‘O novo
capitalismo’ globalizado e financeiro a está reduzindo a algo irrelevante
para os que dominam e inacessível para os dominados (...) a anulação da
democracia pelo capitalismo repercute entre os dominados. Os sindicatos,
antigos espaços de socialização para trabalhadores, perdem eficácia. O
individualismo predatório que marca o sistema subjetiva-se, transforma-se em
nova forma de pensar e se relacionar com o outro”.
Mas reflitamos mais sobre o que escreveu o
sociólogo em “O paradoxo Severino”: “não é disparatado que tenha sido o
deputado Cavalcanti, conhecido como o ‘ rei do baixo clero’, o vencedor. Isso
mostra que o governo do PT está emaranhado em pequenas negociações, em arranjos
paroquiais, para fazer passar sua vontade na casa principal do Legislativo.
Ainda se fosse para grandes reformas, até se admite, mas não, é para o pequeno
varejo (...) Pensando e fazendo política como se fosse negociação sindical, o
presidente anula a política, pois, se tudo pode ser negociado, nada é
prioritário. O presidente não tem posição definida sobre nada, e os políticos,
escolados também no mesmo fazer, podem mudar à vontade. Basta ver que o novo
presidente da Câmara já passou por nada menos que seis partidos desde que se
iniciou na política partidária”.
E o prof. Chico de Oliveira vai fundo nas
lições que decorrem do episódio: “O mais inquietante que essa eleição
confirma é a desimportância crescente da política, a sua irrelevância, o que se
avalia tanto pela biografia do novo presidente - inexpressivo deputado de um
inexpressivo partido, vindo de Pernambuco, que se enfraquece a olhos vistos
como força política na Federação (e olha que me custa dizer isso, pois sou
pernambucano e recifense roxo) -, quanto pelo fato de que os negócios se
assustaram logo que a notícia correu, com a Bolsa despencando, para voltarem à
normalidade quando se decifrou o enigma (...) O Estado é o Ministério da
Fazenda e o Banco Central. O resto é luxo de miçangas e paetês de escola de
samba que se permite hoje aos países ‘emergentes’”.
A mídia nacional tem dedicado espaços
substanciais analisando a “Onda Severino” - para uns um tisunami, para outros
um vendaval e muita gente no Planalto ainda acha que foi apenas uma marola da
base aliada - na caça dos culpados da vitória de SC. Sim, muita gente
considerada insuspeita tem “culpa no cartório” e não pode se eximir de admitir
que SC chegou “aos píncaros da glória”, como ele mesmo disse, porque desejos
escusos e mesquinhos de algumas personalidades da “elite letrada”, que arrotam
que estão na vida pública pelo “bem do Brasil”, estão acima dos interesses da
nação.
Contribuíram, decisivamente, para elevar
SC “aos píncaros da glória”, além da “cacicada” do PSDB e do PFL - conforme a
mídia, incensados pelo o ex-presidente, o prof. dr. Fernando Henrique Cardoso e o também
presidenciável pelo PSDB, o governador Geraldo Alckimin (SP) - figuras como o
ex-governador do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho (outro fundamentalista confesso); Delfim Neto (PP, como SC e Paulo
Maluf: o “estupra, mas não mata”), que colocaram seus nefastos desejos pessoais
acima dos interesses do país e carrearam as enxurradas de votos para SC, sem
nenhum pudor do convívio, durante dois anos, com uma presidência da Câmara
abaixo da crítica e talvez lesiva à democracia. Nenhum tinha o direito de fazer
isso. Permitiremos que continuem tendo a chance de fazer isso outra vez, ou
melhor, mais uma vez?
Qual o peso do ideário fundamentalista
na eleição de SC?
Há um fator que os analistas da política,
o governo Lula, o PT e os partidos de esquerda mais alinhados ao governo (PCdoB
e PSB) olvidaram, por não considerarem importante, a força das idéias
fundamentalistas - capitaneada pelo oficialato da Igreja Católica, em uma conjuntura
de avanço declarado do governo no campo dos direitos reprodutivos - espraiadas
em quase todos os partidos, inclusive no PT, cujas expressões mais conhecidas,
mas há outras, são a médica e deputada federal Ângela Guadagnin/PT-SP e o
jurista e ex-prefeito de SP, duas vezes pelo PT, o prof. dr. Hélio Bicudo.
Cometeram um erro crasso. E há motivos
para tanto, pois consideram os direitos sexuais e os direitos reprodutivos como
“questões culturais” menores, sem peso político, embora o atual presidente da República
tenha sido nocauteado em sua primeira campanha à presidência pela temática do
aborto (“Caso Miriam”) e se comente, à boca miúda, que a primeira delação oficial da Guerrilha
do Araguaia foi feita por um casal, que foi preso pela Ditadura, quando fugia
da guerrilha, por ter recusado a interromper uma gravidez. Pode até ser mais uma “lenda da guerrilha”, mas
ela é tida como verdadeira por muita gente (SOS! Quem souber detalhes da
história, por favor, torne-a mais pública).
Alguém tem dúvida que o Vaticano e
fundamentalistas de todas as tintas ficaram apenas expectando, ou melhor, como
dizemos nós da roça: matutando sobre o assunto? Tendo em conta que SC já foi
recebido pelo Papa João Paulo II, às custas de sua declarada e “meritória” ação parlamentar misógina e
homofóbica, e abençoado pelos serviços prestados ao Vaticano, analistas da
política se descuidaram, mas é bom correr atrás de buscar analisar o peso do
fundamentalismo (leia-se: Vaticano, mas também seitas e igrejas evangélicas,
criacionistas em geral) na eleição de SC à presidência da Câmara, justo quando
está pautada a revisão da legislação restritiva e punitiva sobre o aborto -
momento importante de reafirmação da separação do Estado brasileiro das
religiões (laicidade do Estado).
Alguém sabe dizer o que o deputado João
Paulo Cunha (PT-SP), nos estertores de sua saída da presidência da Câmara, foi
fazer em Roma e por que se exibiu e se
esmerou em posar recebendo as bênçãos do Papa? Será que foi prestar contas de
seu mandato? Apenas mais uma curiosidade...
Não podemos fechar os olhos ao peso que o
recrudescimento do fundamentalismo religioso vem tendo na definição dos rumos
políticos em todo o mundo, inclusive no chamado mundo ocidental. E SC é um
parlamentar da confiança dos “Setores Pró-vida”, em todo o mundo, e recebe loas
em muitas páginas da Internet contrárias ao direito ao aborto. Além do contexto
da recente enfermidade do papa João Paulo II e a insistência dos rumores de que
o cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Cláudio Hummes, é papável... há setores
da hierarquia da Igreja que avaliam que sendo ele de um “país latino” que ruma
para a descriminalização e/ou legalização do aborto, suas chances diminuem,
consideravelmente...
Logo, vale tudo para não correr riscos
rumo à Capela Sistina. Vide o que a dra. “Dona” Zilda Arns, que ocupa há muitos
e muitos anos, indevidamente, porém legalmente, em nome da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil), uma vaga
que deveria ser das religiões no CNS (Conselho Nacional de Saúde) - arquitetou
na última reunião do CNS (15 e 16/02/2005) apenas porque estava pautado o
debate sobre uma moção de apoio à
ADPF/Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre interrupção de
gestação de feto com anencefalia. Ela solicitou adiamento da discussão e um
“debate técnico qualificado”, com duas opiniões a favor e duas contra, como se
a essa altura de intenso debate na sociedade brasileira sobre o assunto, o
pleno do CNS (a nata dos conselheiros de saúde do país) ainda necessitasse de
maiores esclarecimentos.
Nada
disso, a eterna conselheira titular da CNBB no CNS é useira e vezeira na arte
de postergar quando o assunto no CNS é o aborto, aliás direitos reprodutivos de
uma maneira geral. E o pleno do CNS aprovou a petição: “Ontem, quando o
assunto seria discutido no CNS, houve a apresentação de três conselheiros
defendendo o direito de a mulher poder optar pela interrupção da gravidez
nesses casos. Um deles representa a CNTS (Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde), que protocolou a ação no Supremo. Zilda Arns quis que
o debate fosse adiado para que o conselho pudesse ouvir a opinião de técnicos
contrários ao aborto. ‘É injusto. Não pode acontecer de trazer só pessoas a
favor e não trazer ninguém em defesa da vida [do feto]’, afirmou (...) A
maioria do plenário do CNS votou, então, pelo adiamento. Decidiu-se que, em dez
dias, serão apresentados os nomes de quatro pessoas que farão exposição aos
conselheiros sobre a interrupção da gravidez em casos de anencéfalos. Serão
dois da área técnica -um a favor e outro contra a interrupção- e dois que
tratem da questão ético-jurídica”.
Católico
roxo, misógino e homofóbico, jamais um doido!
Agora
estão chamando o recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados de SS (Super
Severino). Relembrando que o nobre deputado estava em Nova Iorque em 11 de
setembro de 2001 (ataque às Torres Gêmeas do World
Trade Center), hospedado com a esposa, Amélia Cavalcanti, nas
proximidades da catástrofe, eles possuem o status de sobreviventes do 11 de
setembro, o que em si não deixa de ser uma glória pessoal suficiente para ele
receba o codinome de Sortudo Severino, mas daí a Super Severino há um longo
caminho que a sua biografia demonstra que ele não deu conta de percorrer, ou
pelo menos jamais se interessou.
(Torres Gêmeas do World Trade Center)
Recordo
que SS é também a sigla das Tropas ou Esquadras de Proteção (SS -
Schutzstaffel), criada pelo Partido Nacional-Socialista (Nazista) para a
segurança pessoal de Hitler, na década de 20 e 30. Parece que foi a partir de
1936 que a SS incorporou toda a polícia alemã, o que genericamente se conhece
por gestapo, a polícia nazista.
Embora
Severino Cavalcanti seja um velho e conhecido inimigo do feminismo, assim como
o Vaticano, e se vanglorie de dizer que é um “católico roxo” e que talvez seja
mais conservador do que o Vaticano (Vôte!), o codinome SS parece-me inadequado,
mesmo em contexto de democracia e partidos políticos débeis, para dizer da
supervalorização do poder de um presidente da Câmara dos Deputados, embora
saibamos que ele pode muito, sempre.
Por
outro lado, a cobertura da mídia é de certa maneira irresponsável ao tentar
evidenciar que foi uma fatalidade Severino Cavalcanti receber 300 votos num
campo de 498 votantes, de um universo de 513 parlamentares, e que ele é um
“doido”, ou como ele disse: “um tresloucado [eu não sou...]”.
Há
equívocos nas duas análises. Em primeiro lugar, a Câmara dos Deputados é uma
amostra representativa da pluralidade da sociedade brasileira e uma “média”
dela. SC recebeu voto de seus iguais de sempre (os fundamentalistas, os do
sindicato dos deputados, os defensores do latifúndio e dos grileiros) e dos
seus iguais circunstanciais - parlamentar que votou, secretamente e nem aos
deuses confessa, em SC, de “cálculo
pensado”, por ser a oportunidade de ser
contra o governo, por diferentes motivos, não apenas por um.
O
espectro do eleitorado de SC é amplo e
não homogêneo, desde a Tropa de Choque de FHC à do PFL de ACM e seus similares,
passando pelos fundamentalistas de diferentes matizes religiosos e latifundiários.
Todos se esforçaram até às raias da insensatez no que estão chamando, tão
desavergonhadamente, de “dar uma lição no PT”, alegando que foi “por isto,
aquilo e aquilo outro”, nada suficiente para justificar que, deliberadamente,
há uma maioria de parlamentares que coloca seus interesses pessoais acima das
necessidades do povo brasileiro, sempre, pois o resultado do processo eleitoral
da presidência da Câmara e de sua mesa diretora revela, de maneira cristalina,
o pensamento majoritário da Câmara dos Deputados.
Em
segundo, é preciso pontuar que chega até ser desrespeitoso com as pessoas em
sofrimento mental ficar de galhofa dizendo que SC é doido. De uma coisa podemos
ter certeza: SC não é um doido, pois, como dizem no sertão do Maranhão, “Se não
rasga dinheiro não é doido”. Ao contrário, é tão apegado a dinheiro que o
guarda em casa e sequer confia em bancos e recebeu a alcunha de “presidente do
Sindicato dos Deputados” pelo seu afã histórico de buscar alguma maneira de os
parlamentares terem sempre “algum a mais” - base que catapultou a sua candidatura, que parecia tão
risível, e permitiu que ele corresse em raia livre e chegasse ao comando de um
poder quase imperial, a condição de presidente da Câmara que, para quem não
sabe, é quem define a pauta da Câmara, pois o seu presidente é detentor do
poder de dar a “última palavra” sobre os projetos que entrarão em votação.
Logo,
SC, sozinho, pode impedir que seja pautado qualquer projeto contrário aos seus
interesses pessoais e/ou convicções morais. Sabemos que SC tem as dele. São
públicas e renitentes: aborto e homossexualidade, em nome da defesa da família.
Sim, família no singular, pois SC, em nome do seu deus, é um convicto e
confesso desrespeitador da Constituição Federal, que reconhece a diversidade de
famílias em nosso país.
A
presidência da Câmara é uma das cabeças definidoras dos rumos do país, pois
detém o poder de aprovar relatores/as de projetos e até de só indicar seus
iguais em opinião para o cargo de relator(a)! Portanto, está na ordem do dia
para as pessoas de bem do nosso país e para todos os movimentos sociais, lutar
pela recomposição do “Colégio de Líderes”, espaço de todas as lideranças das
bancadas, que possui, quando quer, poder de negociação e barganha junto à presidência
da Câmara, e que poderá ser rearticulado (já que foi para as calendas gregas no
atual governo), pois uma de suas prerrogativas é a definição negociada de uma
agenda mensal de votações com a presidência da Câmara, o que poderá minimizar
possíveis desastres, tal qual a imposição de uma pauta fundamentalista.
O
que é uma pauta fundamentalista? Por exemplo, a criminalização total do aborto
e da homossexualidade, ou o engavetamento de projetos de lei sobre
descriminalização do aborto e sobre os direitos de gays, lésbicas, travestis e
transgêneros. Mas há no horizonte a saída: a reestruturação do “Colégio de
Líderes”. Portanto, enquanto movimentos sociais precisamos nos conscientizar
que devemos lutar para sensibilizar os partidos políticos e o governo que se
trata de uma necessidade emergencial. Como sensibilizar gente que deu conta de
eleger SC, eu não sei, mas que precisamos, não há dúvida.
As
possibilidades de sensibilização da maioria dos partidos é grande, pois há um
misto de medo e vergonha velado no ar, por parte até dos comandantes da eleição
de SC, sobretudo do PSDB, tão cioso da excelência da maioria de seus quadros
como uma elite da intelectualidade do país, pois agora se deu conta que há
possibilidades concretas de a “liturgia do cargo de presidente da Câmara” e a
imagem do Parlamento saírem definitivamente arranhadas diante das declarações
estapafúrdias, aos borbotões, saídas da boca do próprio SC - que tem se
revelado um boquirroto e sem poder de auto-censura (“Você duvida que o
Virgílio votou em mim no segundo turno? provoca”), por pura ignorância do
papel e da liturgia do cargo que ocupa, mas que não chega nem perto do que
afirmou Dora Kramer: “Um presidente da Câmara desprovido - pelo menos
naquele momento - de organização mental e articulação oral para estabelecer um
diálogo razoavelmente sensato”.
O
comportamento de escorpião X Ignorância do ideário fundamentalista
Usando
uma outra vertente complementar de análise, e voltando a um intertítulo do
início do artigo (“Mas, foi a política quem saiu perdendo”), considero que em
uma democracia, é acintoso nos referirmos a uma autoridade eleita (e SC é uma
autoridade legitimamente eleita), ainda que por meios escusos e uma plataforma
eleitoral corporativa e imoral, como se fosse um SS, mesmo quando a referida
autoridade é, inegavelmente, um exemplar do conservadorismo e da moral
fundamentalista, como é o caso de SC. Ainda que o presidente Lula, a título de
minimizar o comportamento de escorpião do seu governo e também do seu partido,
pose de braços dados com ele para demonstrar a “força de Pernambuco”.
É
de domínio público que a “força de Pernambuco” da qual SC é representante é a
força do atraso, da misoginia e da homofobia, a tal ponto que não é arriscado
dizer, embora ainda seja cedo, que amanhecemos em 15 de fevereiro em outro
país, tendo como 3o. nome da hierarquia da República um homem de aparência
simplória e inofensiva, quase um bocó, como dizemos no Nordeste, mas que, sem
meias palavras, reafirma aos quatro ventos que nutre ódio visceral à luta
contra o latifúndio e pela reforma agrária; que é contra o divórcio, a união
entre pessoas do mesmo sexo e o aborto. Tudo, na mesma semana em que o governo
começava a discutir nomes para a Comissão Tripartite sobre o Aborto, com
previsão de funcionar durante dois
meses, e elaborar uma proposta de lei que será apreciada pelo governo
brasileiro, cujo compromisso é encaminhar ao Congresso Nacional um Projeto de
Lei capaz de enterrar o entulho
autoritário e patriarcal que impede o direito de decidir das mulheres.
Se as artimanhas da drª. Zilda
Arns de tão conhecidas já não nos causam
comichão, e nem espanto, é preocupante (e o que significa mesmo?) a
repentina insistência do governo em privilegiar em uma das vagas destinadas à
sociedade civil o CONIC (Conselho Nacional das Igrejas Cristãs), alegando que
visa ampliar a participação da sociedade civil para além do CNDM (Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher), quando sabemos que dar lugar a um dos setores
da religião cristã (e é isso que o CONIC é), no máximo, significará desdém
pelas demais religiões.
Vejamos
uma análise sobre o assunto: “O tema entrou na última reunião do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), ligado à secretaria da ministra Nilcéa
Freire, mas com a participação de 18 representantes dos movimentos de mulheres.
O CNDM escolheu quatro organizações feministas, de um total de seis
representações da sociedade civil. A quinta indicada foi uma entidade médica, a
Febrasgo (Federação Brasileira Associações de Ginecologia e Obstetrícia). Mas o
sexto participante ficou em aberto, depois da reação negativa a uma proposta do
governo, que propunha para a vaga o Conic (Conselho Nacional das Igrejas
Cristãs). Após sete horas de reunião do CNDM, não foi possível chegar a um acordo
(...)
O
Conic reúne sete igrejas cristãs, com destaque para a Igreja Católica
Apostólica Romana - que, a partir do
Vaticano, tem se destacado na oposição a qualquer medida descriminalizadora.
Circula entre as feministas a versão de que a representante da Conic seria
designada pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), e que esta
escolheria dona Zilda Arns, num indicativo de
alta prioridade para o tema aborto.”
Parece
sem sentido que as ditas “questões morais”, dos conservadores, não possuem
força no Brasil? Basta não nos escusarmos de ver e de entender como uma
“questão menor”, para analistas da política no Brasil, foi, por unanimidade,
rotulada por analistas de todo o mundo, como a pedra de toque da eleição de
George W. Bush em 2004, e foram “as questões morais” que permitiram a Bush
dizer, com propriedade, que “os Estados Unidos profundo falou”. Refiro-me em especial às duas temáticas das
quais SC é adversário roxo: aborto e homossexualidade, que o próprio deputado
SC faz questão de dar visibilidade para suas convicções a respeito delas em
todas as suas entrevistas, posto que ambas estão enraizadas no cotidiano de sua
história política.
Indagado
pela revista ISTOÉ (“O sr. tem posições conservadoras em vários temas:
aborto, células-tronco, divórcio...”), foi taxativo: “Eu tive na
primeira eleição 32 mil votos, na segunda fui para 52 mil e na terceira fui
para 83 mil. Nunca mudei”.
A
revista insistiu: “Mas o mundo mudou. O sr. não teme ficar obsoleto?” Ao
que ele respondeu: “Não porque a minha idéia é a mais pura: defender a
família. Todo país que não defende a família naufraga. Esses países do Primeiro
Mundo, como o próprio Estados Unidos, estão fazendo uma mudança. Você vê o que
aconteceu nessa eleição agora do Bush (George W. Bush). Ele ficou contra o
homossexual e contra o aborto e foi consagrado”.
Perguntado
se admirava Bush, disse: “Eu discordo de certas posições dele, mas não deixo
de elogiar o eleitorado que votou nele, porque ele defendeu aquilo que devia
defender, que é a consagração da família”. E foi mais longe para enfatizar
que talvez seja mais conservador do que o Vaticano, quando indagado: “O
Vaticano, na sua opinião, está muito liberal?”, não se fez de rogado: “Às vezes eu discordo
do que o Vaticano aprova. Tem algumas coisas que eu não aceito muito. Eu talvez
seja mais conservador que o Vaticano. Esse negócio de padre casar, que já estão
aceitando lá, eu acho um absurdo. Padre não é para casar. Padre é para fazer
com que se respeite a vida dele e não dê esses exemplos de padre estar se
amigando, se juntando”.
Diante
de um retrato sem retoques de SC, não esquecendo que estamos falando do 3o. homem da
hierarquia da República, penso que se é um dever político do poder executivo,
na figura do presidente da República, manter relações civilizadas com o poder
legislativo e o judiciário, assim como respeitar e assegurar a independência
entre eles, em nome do interesse público o presidente Lula deveria ser mais
acolhedor, e buscar formas inequívocas de demonstrar solidariedade, para com a
dor de quem amanheceu em 15 de fevereiro em outro país, a exemplo das
feministas e dos movimentos de lésbicas, gays, travestis e transgêneros - que
há mais de uma década sofrem uma perseguição sem tréguas, por parte do deputado
SC, com vistas a impedir o exercício de direitos elementares e mínimos de
cidadania, como o direito de decidir sobre o próprio corpo.
Enfim,
vivenciaremos uma conjuntura na qual a ampliação da democracia e a reafirmação
da laicidade do Estado no Brasil e da justiça social, com certeza, parecerão
mais distantes e há partidos políticos, pessoas, personalidades e autoridades
públicas responsáveis por termos chegado onde estamos: assuntando a
encruzilhada. Espera-se dessa gente, no mínimo, que se envergonhe e que o
demonstre não atrapalhando mais a luta pela cidadania em nosso país. Sim, Chico
de Oliveira tem razão quando nos alerta que precisamos reinventar a democracia
no Brasil. E estamos nisso por nossa própria conta.
* Fátima Oliveira médica,
secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, autora de Engenharia
genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995; 14a. impressão, atualizada em 2004); Bioética:
uma face da cidadania (Moderna, 1997; 8a. impressão atualizada, 2004); Oficinas
Mulher Negra e Saúde (Mazza, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a
liberdade de escolher (Mazza, 2000); Ensaio O estado da arte da
Reprodução Humana Assistida em 2002 e Clonagem e manipulação genética
humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios (CNDM/MJ, 2002); e
Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002).
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