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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A mãe tigresa e os meninos carreirinhos de Urucuia


Um programa de TV e a moda brasileira de criar os filhos
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br


Ano passado, fazia a sesta quando ouvi: "Mãe, depressa, vê!". E ligou a TV do quarto. Deveria ser sério, pois a norma é jamais acordar alguém ou chamar para atender à porta ou o telefone durante as refeições, a não ser em caso de urgência urgentíssima. São normas da criação de minha família original: o sono e o horário das refeições são sagrados.





R. Peixoto
Vou adestrar dois carneirinhos pra Clarinha andar de carrinho de boi neles...". Eita Clarinha poderosa, pensei! "Mãe, lembra do carneirinho que eu montava?". Lembrei. Canseira ilimitada. Como esquecer da fadiga de um carneiro em casa, tão-somente para que as crianças usufruíssem do prazer da diversão da montaria? As meninas, já grandinhas, quase não o montavam. O Biel montava sozinho. O Arthur precisava alguém segurá-lo e outra pessoa puxar o raio do carneiro! Via o carneiro e esperneava pra montá-lo.





Dispensei uma babá que dizia que carregar menino em carneiro não era serviço dela! Ela tinha suas razões e eu, as minhas. De dia, o "Bé" ficava amarrado num pé de manga do condomínio; e à noite, no quintal... Um "processo": banho, alimentação e lavar o quintal toda manhã. "Senhora, esse carneiro ainda vai me fazer pedir baixa na carteira! Ô coisa impertinente esse bééééé dele acordando a gente. Os meninos gostam do ‘bichim’, mas ô coisa atentada!". Era a cozinheira quando amanhecia "atacada". Ficou conosco até se formar em pedagogia.

Menino com carneiros, Enrico Bianco, 1998
Uma peregrinação descobrir quem fizesse sela e arreios. O pai velho revirou a cidade até encontrar! Ao reclamar que era caro, ele retrucou: "Quer que os outros trabalhem dado? Isso é caro mesmo; luxo é só pra quem pode! Quando fiz pra vocês também era. É sua vez de pagar!". Ao mudar de Imperatriz, a vizinhança queria fazer um churrasco do carneiro! Não com aquele! Morreu de velhice na fazenda.


Meninos com Carneiros, Enrico Bianco
A linda selinha ficou anos em Beagá. Hoje adorna a parede da sala de nossa casa maranhense. Simboliza um tempo de felicidade. Agora, ela é da poderosa Maria Clara, a minha neta Clarinha. Nunca vi criança, até urbanoide de nascença, resistir a um carneirinho pimpão e pintoso de arreios luzindo. É paixão ao primeiro olhar!

Nos jardins do palácio imperial, em Petrópolis, os netos de Pedro II vivem os últimos dias da monarquia. Atrás do carro, o primogênito dom Pedro de Alcântara. Dom Luiz, fundador da dissidência familiar que hoje disputa a continuação da dinastia, aparece montado no carneiro. Dom Antonio, o caçula, está na boléia.
A foto é de 1889. O BAÚ DE SUA MAJESTADE (Veja 25.03.98)
Voltando à tarde em que fui acordada. Na TV, "Os meninos carreirinhos de Urucuia", que adoram brincar de trabalhar. Na chamada do "Globo Rural": "Em Minas, um pai que educa os filhos transmitindo um ofício, orientando as tarefas. Eles andam pra cima e pra baixo com uma miniatura de carro de boi". A conversa hoje é porque reprisou domingo passado. Para apreciá-lo, busque na web Carreirinhos de Urucuia. E prepare o coração pras coisas brejeiras da roça.



Ao rever o vídeo, foi inevitável comparar com o livro "Hino de Batalha da Mãe Tigresa" (Battle Hymn of the Tiger Mother), que está dando o que falar nos Estados Unidos e na Europa, no qual a autora, Amy Chua, professora da Universidade de Yale, casada com um judeu norte-americano, também professor de Yale, relata a experiência de criar as filhas - Louisa e Sophia - à "moda chinesa": disciplina férrea para tudo.

Estudo Menino com carneiro, Enrico Bianco
Os carreirinhos "Transportam coisas para os pais e avós, preenchendo a infância não só com brincadeiras, mas também afazeres e obrigações". E, na escola, vão bem. Indagado se não era exploração de trabalho infantil, Miguel Durães, o pai, foi taxativo: "Futuramente, quero que terminem os estudos; quando forem maior, se quiserem morar na cidade, procurar um emprego, tudo bem. Mas se quiserem continuar aqui, estão preparados".
Decididamente, sou mais Miguel Durães.


Jornal OTEMPO em 01.02.2011
www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=14161
Republicado no Site Lima Coelho
www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=4742
Ovelhas no jardim
Ovelhas no jardim

"Menino com Carneiro", Jurandi Assis, Santa Maria da Vitória, Bahia, Brasil
 

14 comentários:

  1. Maria Aparecida Damasceno2 de fevereiro de 2011 às 20:19

    Fátima, as ilustrações tornaram a tua crônica uma obra de arte

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  2. Oi Fátima, me apaixonei pelos carneirinhos

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  3. Beleza de crônica Fátima. As ilustrações são encantadoras

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  4. Uma crônica de muita beleza e as ilustrações são mesmo obra de arte

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  5. Achei fantástico

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  6. Paulo Afonso Fernandes3 de fevereiro de 2011 às 22:58

    Uma crônica bonita e de muito sentimento e apego às coisas do sertão

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  7. Fátima, adoro ler tuas crônicas de memórias

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  8. Gilmar Pereira dos Santos6 de fevereiro de 2011 às 01:39

    Fiquei muito feliz de ler uma crônica sobre o meu maior companheiro de infância: um carneiro, que eu também montava nele lá em Petrolina

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  9. A MORTE DO MEU CARNEIRINHO
    Vinicius de Moraes

    Não teve flores
    Não teve velas
    Não teve missa
    Caixão também…
    Foi enterrado
    Junto à maré
    Por operários
    Mesmos do trem…

    A flor do orvalho
    Pendeu da nuvem
    E pelo chão
    Despetalou…
    O céu ergueu
    A hóstia do sol
    E o mar em ondas
    Se ajoelhou…

    Cortejo lindo
    Maior não houve
    Desse amiguinho:
    Iam vestidas
    Com a lã das nuvens
    Todas as almas
    Dos carneirinhos!

    Os gaturamos
    Trinaram hinos
    No altar esplêndido
    Da madrugada;
    E o vento brando
    Desfeito em rimas
    Foi badalando
    Pelas estradas!

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  10. Ana Paula Martins Lemes7 de fevereiro de 2011 às 07:26

    Fiquei boquiaberta! Uma crônica divina e maravilhosa!

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  11. Oi Gilmar, que linda a poesia do Vinicius. Gostei da crônica também.

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  12. Catarina Alencar Seixas9 de fevereiro de 2011 às 22:04

    Emociona, pois é um texto profundo e terno

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  13. Uma crônica na quala flora toda a sensibilidade da autora

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  14. Fiquei emocionado porque quando criança sonhei muito com um carneirinho e nunca tive um

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