Fátima Oliveira
Médica- fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_
Em 25 de setembro de 2002, publiquei em O TEMPO “Asmulheres abortam porque precisam”, no qual digo que 28 de setembro é Dia de
Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e no Caribe e conto a
história de Marcela, à época com 19 anos, que em 19.4.2001 enviou-me o seguinte
e-mail: “Oi, Fátima, estou mandando este e-mail porque li uma página da
internet sobre aborto onde constava seu nome e e-mail. Estou desesperada. Estou
grávida e preciso fazer um aborto. Se você é a favor do aborto e pode me ajudar
de alguma forma, escreva-me o mais rápido possível. Desde já agradeço”.
A partir de então, trocamos várias ideias. No 20 de
abril, outro apelo: “Obrigada por me responder. Preciso fazer. Não tenho
condições, nem eu, nem meu namorado, de criar uma criança; além do mais, meu
pai bebe e é muito ignorante. Sou filha única, e ele já disse que, se eu ficar
grávida, sai de casa. Minha mãe está desempregada e também é muito rígida. Aqui
em casa, sexo é assunto proibido... Moro em Sabará. Me ajude por favor”.
Antes que eu respondesse, chegou um e-mail intitulado
“Sem tempo”. Ei-lo: “A sra. é a minha última esperança. Passei a madrugada de
ontem e de hoje procurando artigos na internet sobre aborto. Preciso arrumar um
meio e preferia que fosse remédio porque não tenho condições de pagar clínicas
e não confio em chás (tenho medo de que algo me aconteça ingerindo plantas que
desconheço)”.
Escrevi: “Você está vivendo um drama milenar que
cotidianamente se abate sobre milhões de mulheres, que é a gravidez indesejada.
É imoral obrigar uma mulher a ter um(a) filho(a) quando ela não pode ou não
deseja. Defendo a legalização do aborto, o que permite que as mulheres não
sejam obrigadas a levar adiante uma gravidez quando elas não querem ou não
podem.
O artigo 128 do Código Penal de 1940 diz que não é
crime o aborto quando a gravidez resulta de estupro e para salvar a vida da
gestante. Fora das situações mencionadas, o aborto no Brasil é ilegal e é crime
apenas para as mulheres pobres. Em toda cidade brasileira de médio porte, a
mulher que possui US$ 1.000 aborta em clínicas que realizam o aborto com risco
de saúde e de vida zero. Há um caráter de classe na criminalização do aborto,
pois só penaliza as pobres, já que sem dinheiro elas recorrem aos piores
lugares, colocando em risco a saúde e até a vida.
As interdições ao aborto não impedem a sua realização,
apenas tornam-no clandestino e inseguro. Os fundamentalismos de caráter
religioso, patriarcal ou machista, reconhecem que suas proibições revelaram-se,
historicamente, impotentes para impedir a decisão de abortar – em todos os
tempos e em todas as sociedades estudadas, o aborto é uma constante –, então,
fazem o que lhes resta: são contra mesmo é que haja leitos hospitalares
públicos para o aborto seguro!
A ilegalidade do aborto empurra as mulheres para a
clandestinidade, em que abortam em condições precárias, em geral desumanas,
tendo como consequências as infecções, sequelas e até a morte. Tais
complicações tornam o aborto um grave problema de saúde pública, uma flagrante injustiça
social, já que as vítimas de tão inominável tragédia são as pobres, que morrem
precocemente por causas evitáveis!”.
No dia 23 de abril: “Adivinha só, minha menstruação
desceu... Eu não estou grávida, mas de qualquer forma obrigada por me ajudar,
por se corresponder comigo”. Ela sobreviveu.
Mas nem todas as mulheres que optam por um aborto
entre o pecado e o crime sobrevivem, e o que dizes, República?
PUBLICADO EM 23.09.14
("Eu aborto, tu abortas, todas em silêncio")
FONTE: OTEMPO
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