Fátima Oliveira
Sentados no alpendre da Fazenda Matinha de Dona Lô, os hóspedes apreciavam a agitação de Zé Vaqueiro e seus homens dando os finalmente nos preparativos para a boiada e conversavam sobre a modernização delas: uma caminhoneta com geladeira, no apoio! “Papai adoraria, com certeza, ter uma cervejinha gelada na hora em que quisesse”, disse Dona Lô.
Ao que o desembargador Elpídio Lobato retrucou: “Não, Lô! Dotozim Felipe Tropeiro quando estava tocando boiada só bebia alguma coisa com álcool à noite, na hora da janta. Isso ele não enjeitava, nunca! E pra cabroeira, era um cálice de cachaça na hora do almoço. Não mais! E à noite, a cabroeira quem não estivesse botando sentido na boiada ou guardando o pouso, podia beber mais uns dois tragos”.
– De fato. Papai bebia a pouquíssimo. E raramente. Mas lembro-me bem que das vezes em que acompanhei boiada com ele, desde bem criança, ele bebia algo no jantar e gostava de ouvir uma moda de viola. Ai, como gostava! De sanfona também, mas viola era muito mais. Já vovô, gostava mais de sanfona. Quando o violeiro começava papai, invariavelmente, dizia: “Aqui cabia uma cervejinha bem gelada!”. Claro que não havia! Nem em sonho! Lembro-me da nossa primeira geladeira, a querosene! Muitos anos depois, aqui na Matinha, tivemos uma geladeira a gás, que existe e funciona até hoje! Papai morreu sem ter o prazer de desfrutar de qualquer coisa da energia elétrica por aqui. Uma pena pra quem, embora tivesse o umbigo enterrado na roça, adorava a velha Europa e era apaixonado por Nova York.
A dra. Maria Helena, entre assustada e curiosa, perguntou se a paixão de Dona Lô por boiadas era desde criança e como era essa coisa estranha de uma menina dias e dias na estrada como boiadeira...
– É uma parte bem peculiar de minha vida. E linda! Quando participei a primeira vez de uma tocação de boiada eu deveria estar com uns seis anos de idade.
– ...
– Não me sai da memória uma noite estrelada, numa redinha de algodão armada nos galhos de uma árvore frondosa e eu dormitando aos acordes de uma sanfona que tocava Luiz Gonzaga... Papai de um lado, mamãe do outro, a cabroeira em volta e ao longe uns homens armados botando sentido – eram os guarda-costas de papai no estradão... Foram dez dias de estradão. Eu e mamãe na carruagem. Sim, tínhamos uma carruagem de verdade, puxada por dois cavalos brancos. Não era uma simples charrete, não! Acompanhava também a boiada um carro de boi, que eu viajava nele de vez em quando nas horas em que fazia muito calor...
– ...
– Até hoje às vezes acordo ouvindo o rangido mavioso das rodas do carro de boi. Era nele que meu bisavô Chico Tropeiro, já velhinho, acompanhava as boiadas. Papai sentia prazer em levá-lo no carro de boi! Ah, papai e vovô Neneco Tropeiro iam a cavalo, ladeando o carro de boi e puxando prosa. Eram três gerações de homens de uma mesma família, que reverenciavam a estrada e que fizeram fortuna nela, seja como tropeiros ou como boiadeiros... Era uma cena de muita beleza...
“É verdade Lô e eu acho muito bonito que você se orgulhe do passado de sua família e o valorize tanto”, acrescentou dr. Jairo.
– Uma vez, eu já grandinha e taluda, montando uma de minhas éguas, não lembro qual – sempre tive cavalo, mas ainda hoje gosto mais de montar égua – ficava zanzando: ora ia ladeando a boiada, fazendo as vezes de ponteira, ora ficava lá atrás, funcionando como culatreira; e nesse dia uma rês arribou e eu acompanhei dois vaqueiros pra pegar a rês desgarrada. Ô sufoco, minha égua parecia voar!
– ...
– Pegamos a fujona: era uma novilha famosa! Depois da peripécia me acheguei a eles, quer dizer: ao meu bisavô, ao vovô e ao papai, que estavam conformando mamãe que parecia assustada comigo – e deveria estar mesmo, pois eu acabara de fazer uma traquinagem perigosa – cheguei a tempo de ouvir meu bisavô dizer: “Felipe, meu neto, não fará falta não ter homem para herdar nosso suor, a Lô vai botar qualquer homem no saco. A bichinha é boiadeira das boas. Vê como ela já sabe tanger boiada direitinho e até correr atrás de rês desgarrada? Ô menina danada, minha gente! Bem, mas “Quem sai aos seus não degenara”...
Ô Lô, interrompeu o desembargador Elpídio Lobato, “Lembro-me bem quando você já grandinha, de nove pra dez anos, já montadinha numa eguinha de nome... que agora esqueci, cabelos ao vento, vestida de vaqueira, no ritmo da boiada. Era uma fera, causava admiração por onde passava...”
– Era a Brinco de Ouro, a minha primeira égua. Viveu mais de 30 anos. Morreu quando eu morava na França. Papai a enterrou logo ali debaixo do pé de sapoti, na curva da entrada da fazenda. Ela adorava sapoti! Bem, depois desse dia que ajudei a pegar a novilha desgarrada, papai me elevou à categoria de adjunta do comissário da boiada, que era Inácio Vaqueiro, que nos dá a honra de estar aqui conosco!
– Tocar boiada está no sangue da Lô! Eu a entendo perfeitamente e acho bonito ela promover essa diversão tão cultural para nós anualmente. Todos aqui somos boiadeiros desde crianças. Lembra Lô daquela parelha de carneiros que puxava a tua charretinha pra cima e pra baixo?
– Oh, se lembro desembargador!
– Me diga: eu soube que essa boiada que vamos tocar é de gado pé-duro? O que deu em você pra querer gado pé-duro, hein Lô? Já se foi o tempo de gado pé-duro ter valor; é um “gadim” fraco demais, mirrado...
– O luxo de voltar às raízes, desembargador...
– Como assim?
– No início da fazenda, aqui só tínhamos gado pé-duro. Depois vovô começou a trazer uns zebus e cada vez mais na Matinha só havia gado de raça... O pé-duro sumiu daqui. Sabia que está em extinção?
Túlio Dias |
– Estou entendendo perfeitamente Lô! E acho que está certa em fazer isso pelo pé-duro. Sua atitude é louvável porque está preservando a memória viva da história da pecuária no Brasil. Pode dizer mais alguma coisa sobre esse gado, o pé-duro?
– Ih, precisaria passar um dia discorrendo sobre o pé-duro para dizer tudo o que aprendi sobre eles nos últimos dois anos, viu dr. Jairo? Mas tentarei resumir.
“As informações a respeito da introdução do gado bovino no Brasil, embora haja discordância em relação a datas, dão um roteiro historicamente seguro de como isto ocorreu. Para alguns historiadores as primeiras cabeças de gado bovino foram introduzidas na região Nordeste (Pernambuco e Bahia) em 1535 por Tomé de Sousa, vindas diretamente da ilha de Cabo Verde.
Segundo Santiago (1960), foi Martim Afonso de Sousa quem primeiro importou bovinos para a capitania de São Vicente em 1534, da qual era donatário, proveniente da Ilha da Madeira e de Cabo Verde. Esses animais eram trazidos juntos com os escravos e trocados por açúcar e outras mercadorias.
Essas raças chamadas de crioulas, nativas, locais ou naturalizadas deram início ao povoamento dos campos naturais do Brasil, adaptando-se ao novo ambiente. O gado Crioulo formou grandes rebanhos e deu origem a diversas variedades, algumas das quais hoje já foram melhoradas, estando a grande maioria em perigo de extinção.
Em 1958, Athanassof descreve 13 raças Crioulas no Brasil, entre elas o Caracu, Igarapé, Pedreiro, Tourino, China, Mocho Nacional, Lageano, Pantaneiro, Junqueira, Franqueiro, Pé-Duro e Malabar. Apenas a raça Caracu não se encontra mais em perigo de extinção. Enquanto algumas raças já se extinguiram como a Igarapé, Pedreiro, Tourino, China, Franqueiro e Malabar, outras como a Junqueira, Mocho Nacional, Pantaneira, Lageano e Pé-Duro encontram-se em perigo de extinção e são conservadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Conforme José Herculano Carvalho, 1985, os primeiros bovinos foram introduzidos no Piauí por volta de 1674, por Domingos Afonso Mafrense, membro da casa d'Ávila, a partir do Rio São Francisco. Esses animais ocuparam inicialmente as regiões dos rios Canindé, Tranqueiras, Piauí e Gurguéia, espalhando-se depois para o Norte.
Outros tipos que tiveram participação menor na formação do rebanho de origem colonial foram o Caracu, o Turino e o Malabar. Essas raças foram as principais responsáveis pela formação do tipo peculiar de bovinos que, comumente, é denominado no Piauí e no Nordeste do Brasil em geral, como Pé-Duro. Esses Bovinos foram ambientando-se ao calor e a outros fatores adversos, resultando, depois de séculos, em animais muito resistentes e adaptados a essas condições desfavoráveis.
Portanto, os bovinos que habitam o Semiárido do Nordeste brasileiro foram introduzidos através do Rio São Francisco, de onde foram levados para os campos e cerrados de Minas Gerais e Goiás, dando origem ao gado Curraleiro no Planalto Central do Brasil. Para alguns autores, essa raça seria descendente direta da Mirandesa e, mais particularmente, da variedade Beiroa, que, além de Portugal, é encontrada na província espanhola de León.
Entretanto, parece pouco provável que apenas bovinos mirandeses tenham dado origem ao gado Pé-Duro, mas sim um conjunto de reses de diferentes grupos genéticos, naquela época ainda não estabelecidos como raça. Por meio de seleção natural, predominaram os animais mais aptos a sobreviver e se multiplicar nessas regiões, constituindo assim o gado Pé-Duro” (1).
Mariá, que parecia entusiasmada, mas até então estava só na escuta, apareceu com seu veio de historiadora: “Mas Lô, mulher do céu, agora ficou cristalino para mim o papel pioneiro do Piauí que, recentemente, acho que em 2009, elevou o gado pé-duro à condição de patrimônio cultural! O Maranhão tem de fazer o mesmo também, oxente! O gado pé-duro tem uma historia gloriosa" (2).
– Não só o Maranhão Mariá, o Brasil todo...
– Isso é coisa pra sua amiga Dilma fazer: declarar o gado pé-duro patrimônio cultural do Brasil! Quem sabe a gente anuncia como reivindicação agora na boiada, hein Lô? Mexa aí com seus pauzinhos, pode colar! Do meu lado, pisando em São Luís escreverei um artigo a respeito. O desembargador pode dar uma penada também. Tem acesso à imprensa na hora em que quer...
– Realmente eu não havia pensado, mas a ideia é boa dr. Jairo. Já que vamos fotografar e filmar... Tenho uma peça de morim aqui na Matinha, quem sabe faremos uma faixa ou um estandarte... Que tal “Presidenta Dilma, o gado pé-duro é coisa nossa, não permita que desapareça”...
– Eh Lô, quem foi rainha nunca perde a majestade! Olha aí você com sua presença de espírito do tempo do movimento estudantil... É isso aí! Depois do almoço, juntaremos todo mundo e mãos à obra! Falando em almoço, qual é o cardápio de hoje?
– Rabada com joão-gomes e purê de macaxeira!
– Humhum... que fome!
– Bem, minha gente: vamos comer; descansar um pouco o esqueleto depois, pucardiquê lá pelas cinco horinhas o microônibus parte daqui nos levando para a Fazenda Sabiá. Lá acamparemos no pátio da casa do Seu Vicente; jantaremos a primeira comida de boiadeiro; e às cinco horinhas da matina: estradão...
E assim foi...
Fazenda Matinha de Lô, Chapada do Arapari, 18 de janeiro de 2011
Comitiva da Matinha de Dona Lô
Integrantes (21 pessoas):
Povo de Dona Lô
1. Dona Lô
2. Gracinha
3. Cesinha
4. Inácio Vaqueiro
5. Dr. Jonas
6. Mariá, esposa do dr. Jonas
7. Dra, Helena, filha do dr. Jonas e Mariá
8. Desembargador Elpídio Lobato
9. João, filho do dr. Elpídio Lobato
10. Dr. Francisco de Paula, filho do dr. Elpídio Lobato
11. Dr. Graciliano, veterinário da Matinha de Dona Lô
12. Namorada do dr. Graciliano
Povo de Zé Vaqueiro
1. Zé Vaqueiro
2. Pedro Vaqueiro
3. Mário Vaqueiro
4.5.6. Tocadores de boi: Pedrim, Joãozinho, Altino e Mateus
7. “Toco” cozinheiro
8. Velho Ananias (charreteiro)
9. Laurinha, mulher de Zé Vaqueiro
(1). A origem do bovino da raça pé-duro, Geraldo Magela Cortes Carvalho.
www.embrapa.br/imprensa/artigos/2010/a-origem-do-bovino-da-raca-pe-duro/
(2). Gado Pé-Duro vira patrimônio cultural do Piauí
http://iurirubim.blog.terra.com.br/2009/08/22/gado-pe-duro-vira-patrimonio-cultural-do-piaui/
Rabada com joão-gomes
Ingredientes:
1 kg de rabada
1 maço de joão-gomes
3 tomates picados
1 cebola grande picada
3 dentes de alho amassados
1 pimenta vermelha picada
1 folha de louro
2 limões
1 dose de pinga
Sal e pimenta-do-reino a gosto
Modo de fazer:
Limpar bem a rabada com o limão; temperar com sal, alho, cebola, alho, pimenta-do-reino e tomate
Refogar a rabada na panela de pressão e deixar cozinhar por 40 minutos.
Retirar a pressão e acrescentar o louro e a pinga
Cozinhar sem pressão por mais cinco a dez minutos
Acrescentar o joão-gomes e deixar cozinhar por mais cinco minutos.
João-gomes |
Servir com arroz branco e purê de macaxeira
Purê de macaxeira
Ingredientes:
1 quilo de macaxeira
Sal a gosto
1 xícara de leite
100 gramas de queijo ralado
2 colheres das de sopa de manteiga
Modo de fazer:
Cozinhar a macaxeira com sal em panela de pressão
Passar a macaxeira no espremedor de batata.
Junte a manteiga e a metade do queijo, batendo bem
Corrigir o sal
Acrescente o leite, batendo bem
Cozinhar, sempre mexendo, por cinco minutos
Despeje o purê na vasilha de servir e espalhe por cima o restante do queijo ralado.
Emocionante. Vou ler mais sobre o gado pé-duro. Fiquei impressionado
ResponderExcluirUm conto lindo. Estou gostando muito dessa forma de contar o hoje como conto
ResponderExcluirFátima, o qu é joão-gomes? Gostei do episódio
ResponderExcluirO conto é bom demais, mas a rabada me deixou com água na boca.
ResponderExcluirJoão-gomes é uma plantinha da família da "berduega" (beldroega), acho que que só tem no Maranhão, mais especificamente na Ilha de São Luís. É uma delícia!
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João-gomes
Nome científico: Talinum patens (sinonímia: Talinum paniculatum)
Família: Portulacáceas
Nome comum: joão-gomes, língua-de-vaca, maria-joão, mariangombe, maria-gombe, maria-gombi, maria-gomes, labrobó, labrobó-de-jardim, bredo, erva-gorda, mariagorda, beldroega-grande.
Origem: origem das Américas
Descrição e característica da planta: João-gomes ou língua-de-vaca cresce como planta invasora em lavouras, terrenos baldios e na beira de estradas. Ela é uma erva perene, ereta, caule verde e suculento, atinge 30 a 50 centímetros de altura. As folhas são inteiras, espessas, bordas lisas, elípticas, carnosas, verdes, lisas, brilhantes, de 4 a 12 centímetros de comprimento. As inflorescências, do tipo panícula, são produzidas na extremidade dos ramos com flores pequenas, de cor amarela ou rósea. Os frutos são globosos, de cor marrom-púrpura, pequenos, deiscentes (abrem naturalmente quando secam para liberar as sementes), contêm muitas sementes, pequenas e pretas. A raiz da planta é tuberosa, isto é cheia de saliência. A propagação é feita por sementes e raízes tuberosas.
Produção e produtividade: a planta apresenta um rápido crescimento. Não foram encontradas informações sobre o rendimento em folhas, sementes e raízes.
Utilidade: as folhas podem ser consumidas como hortaliças, na forma de saladas ou refogados. A planta é indicada principalmente na medicina popular pelas propriedades medicinais apresentadas. Em todos os casos é importante a correta identificação da espécie antes do seu uso para diferentes finalidades.
http://pro.casa.abril.com.br/group/produtoresecolecionadoresdebromliaseorqudeas/forum/topics/joao-gomes-talinum-patens?xg_source=activity
eu aqui só no aguardo da tocação de boiada
ResponderExcluirO Conto é muito bonito e a autora entende de gado pé-duro mesmo
ResponderExcluirFiquei pensando que se não é facil preparar uma boiada hoje, omeginemos há meio século ou mais. Os tropeiros e os boiadeiros foram heróis contrutores do hoje
ResponderExcluirMuito bem escrito. Meus cumprimentos
ResponderExcluirO conto é realmente ótimo e a receita de rabada é sem defeito
ResponderExcluirUma autora de imaginação bela e fértil
ResponderExcluirTenho paixão e adimiração por essa tam bela raça que foi a fundadoura do meu estado. PIAUI
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