– Mas Dona Lô aqui na roça o povo gosta demais de dia santo, né não? É saindo um e entrando outro, valei-me Jesus! Tem tanto dia santo pra guardar que nem sei como esse povo trabalha, ehehehehehe...
– Ô Cesinha, você tá que nem minha bisavó Constância, que era nascida em cidade grande e depois foi obrigada a se entocar aqui com meu bisavô. Ela dizia que nunca viu gente gostar tanto de santo que nem gente da roça, pois aqui na região da Chapada o povo inventa muita festa de santo que é pra se distrair. Não tinha outra coisa pra fazer, além de trabalhar no pesado, então ia rezar.
– ...
– Na verdade, os festejos de santos se constituíam em ocasiões de encontros e de diversões; de sociabilidade e de socialização. Até hoje desempenham tais funções. Mas Santa Luzia a minha bisavó respeitava demais. Virou devota juntamente com meu bisavô. E com razão. E a festejava todo 13 de dezembro, dia consagrado à Santa Luzia, a protetora dos olhos.
Mas Cesinha não deixa de ter razão. Nem bem a gente respira dos festejos de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Maria, há outra festividade religiosa em andamento, que é o Dia de Santa Luzia, que até à década de 1960 era também um dia santo. Pelo menos era nas cidades menores e continua onde ela é a padroeira do lugar. Aqui em nosso povoado e em outros da região é dia santo de guarda também. Mal encerramos as festividades de Santa Luzia, vem o Dia do Nascimento (o mesmo que Dia de Natal), que não é apenas um dia dito santo, mas é feriado nacional mesmo!
Mesmo sendo muito diferente do Natal das grandes cidades, aqui cultivamos tradições da data. Não há ceia de Natal na véspera, mas almoço de Natal no dia 25. Na madrugada do dia 25 entra em cena o Reisado de Seu Zé Preto, reiseiro por herança familiar desde o tempo em que a sua família morava no Ceará, como ele faz questão de dizer: “Iiiiiih, isso é coisa dos troncos velhos da família, desde o Ceará. Nasci numa família de reiseiros”. Quem recebe o reisado no primeiro dia é a “Casa de Donana”, desde há muito tempo – obrigação que continuo a ter. E a ”tiração” de reis só se encerra em 6 de janeiro, Dia de Reis.
Santa Luzia sempre foi muito prestigiada por aqui. Contam que meu bisavô, aqui chamado de Velho Chico Tropeiro, se apegou com Santa Luzia quando teve os olhos atingidos por maribondos em uma de suas viagens pelo sertão. O único remédio que usou foi sumo de vassourinha e a Oração de Santa Luzia, que lhe foi ensinada por uma velha aí pelo sertão, a mesma que lhe aplicou sumo de vassourinha por uma semana nos olhos, após um dia tocando a tropa de rosto inchado e sem nada enxergar.
Na volta pra casa, “enxergando ainda fraco”, disse à minha bisavô Constância que no dia em que pudesse comprar uma terra ergueria nela uma capela pra Santa Luzia e a festejaria anualmente em seu dia. Dito e feito! Naquele mesmo ano ele comprou as terras onde hoje parte delas é a Matinha da Dona Lô, na qual fica a Capelinha de Santa Luzia. E naquele mesmo ano fez a primeira capela, antes mesmo de erguer a casa de morada!
BIJOUX BY PAT CAETANO Mãos da Terra - arte em acessórios |
– Ah, pois eu não sabia dessa história assim. Nunca compreendi porque uma mesma família faz os festejos de Nossa Senhora da Imaculada Conceição de Maria e também o de Santa Luzia, menos de uma semana um do outro. Eu sei que a capela daqui do povoado foi feita por sua mãe, que era devota dela. A de Santa Luzia eu também sabia que seu bisavô era devoto, mas não tinha conhecimento da história. Agora tá bem compreendido.
– ...
– E as Caixinhas de Santa Luzia, que muita gente chama de oratórios, como surgiram?
– Meu bisavô em uma de suas viagens comprou 12 imagens de Santa Luzia e deu uma pra cada amigo que morava em outros povoados. Com a que ficava na capela, eram 13 imagens da santa. Assim em cada lugar era feita a Novena de Santa Luzia, que se encerrava com o último dia da novena e uma “tiração” de Ladainha de Santa Luzia lá na capela.
– Dona Lô, que história bonita. Arrepiei todinho!
– As Caixinhas de Santa Luzia vinham em romaria a pé, do povoado em que estavam até a capela. Muitos anos depois passaram a vir com os cavaleiros de cada lugarejo. É por isso que tem a chegada dos cavaleiros, que se encontram aqui na Chapada do Arapari até às oito da manhã do dia 13 e daqui seguem juntos até à capela. Cada comitiva transportando uma caixinha de Santa Luzia. É bonito, não é? Hoje em dia a gente nem sabe mais quantas Caixinhas de Santa Luzia são, pois cada novo lugar que foi surgindo, pegou a tradição. É tudo de muita beleza. Como são as coisas bucólicas que o povo sabe fazer e faz por sua própria conta.
– Ouvi falar que esse ano a romaria de Santa Luzia é em agradecimento à eleição de Dilma! E pode?
– Cada ano os devotos fazem a romaria num agradecimento especial por uma graça alcançada. É o povo que guarda as caixinhas quem escolhe o que vai agradecer. Na segunda eleição de Lula, agradeceram com a romaria. Se agora vão agradecer a eleição de Dilma é bom sinal. Quer dizer que confiam muito nela. O que não deixa de ser interessante. É o catolicismo popular dizendo que sabe o que quer. Ou seja, que não foi na onda dos padrecos. Boooooooooom, muito bom! O padreco que já disse que quero fazer de Dilma uma rainha, agora com certeza vai dizer que vou ajudar ao povo a fazer dela uma santa! Ai, ai, Jesus me abana! E com um abano bem grande porque ainda vou enfrentar mais esse levantamento de falso!
– E com que cara fica o papa, que pediu voto pra Serra?
– Com a mesma! Menino, deixa esse papa pra lá!
– Dona Lô, não responda se não quiser, mas por que a senhora parece que não gosta de padre?
– Não gosto e nem desgosto, Cesinha. Só não aceito desaforo. Você diz que vai ser juiz, não é? Pois precisa saber e entender o que vou lhe contar, já que um juiz deve aprender a ter uma visão de conjunto, uma visão global das coisas e dos fatos para poder decidir com segurança e justiça sem fazer juízo de valor.
– E o que é juízo de valor?
– Vai compreender agora. Minha família é centenária aqui nesse lugar e nenhum de nós jamais quis ser qualquer coisa de política. Nossa casa sempre foi um lugar neutro, como dizia meu bisavô; e em nosso teto sempre recebíamos com hospitalidade todos que aqui apareciam pedindo voto. Agíamos assim porque quem precisava de nós eram eles, os políticos, pois nós não dependíamos deles. Nunca dependemos, até as estradas daqui foram todas abertas por nós, com o nosso dinheiro. Não faz nem quinze anos que pela primeira vez apareceu uma máquina da prefeitura para dar uma melhorada na estrada principal. Sabia? Isso aqui existe secularmente e a luz só chegou agora com Lula! Por que terá sido, hein?
– Mamãe diz que era assim mesmo!
– De lá até à eleição passada jamais algum de nós declarou voto em alguém. Na eleição de Dilma Roussef, por senso de justiça, dada a avacalhação que foi a campanha e a satanização promovida contra ela e com esse padre e esse pastor vociferando que ela era do mal, fui obrigada a fazer os meus conchavos com as pessoas de minha confiança para defendê-la; também porque eu achava que ela tinha a melhor proposta para o país e para o povo!
– Foi mesmo! Isso foi mesmo! Então a senhora não gosta nem do padre e nem do pastor, porque eles mentiram em nome de Deus, não foi?
E Dona Lô riu intimamente, só de contentamento, porque Cesinha era um garoto esperto. Saiu melhor que a encomenda! E pensou: “Ele é esperto que dá gosto! Quero viver pra ver Cesinha juiz”.
LUZciana |
– Já que quer saber, saiba logo e saia contando por aí, que é o que vai fazer: eu não tenho religião, mas respeito essas crenças, esse amor que o povo demonstra pelas coisas sagradas, seus santos e seus orixás; e os evangélicos apenas em seu Deus. Cada crença tem seus rituais com suas belezas próprias. É uma questão de respeitar mesmo, além de achar bonito como rendem loas ao seu Deus. Isso tem nome Cesinha, chama-se cultura religiosa. E quando uma cultura religiosa não atenta contra os direitos humanos de ninguém, a gente tem o dever de deixá-la em paz.
– Muito bonito de sua parte Dona Lô.– Faço essas festas, não porque acredite ou por obrigação, mas porque acho que devo respeito às tradições religiosas e culturais de minha família e ao povo daqui. Todo mundo espera que eu mantenha essas tradições, não é verdade? E também nunca deixei o pastor sair de minha casa de mãos abanando quando ele precisa de algo que está ao meu alcance. Não vê que aquela casinha onde fica a igreja evangélica é minha? Nunca cobrei um centavo de aluguel. Ela, a igreja, pode ficar ali o tempo que quiser.
– Quer dizer que... Ah, deixa pra lá!
– ...
– E é verdade que aquela “comidaida” toda que fazem pro almoço dos romeiros de Santa Luzia toda vida foram vocês quem bancaram?
– Sempre! É por isso que a gente só abre os portões da fazenda para as comitivas oficiais da festa. A pessoa só entra se vier numa comitiva. É preciso organizar tudo. A festa cresceu muito. Ainda bem que convivi com mamãe pelo menos três anos antes dela morrer. Assim aprendi a tocar essas coisas todas, não é? Sem falar que a memória de Gracinha, sua mãe, é um computador vivo. Sabe tudo, até o lugar das bancas de café! E não adianta as banqueiras arrumarem encrenca, porque ela não esquece da nada.
– Dizem que antigamente o café era feito também pela gente da fazenda?
– É. Faz uns quinze anos mamãe resolveu contratar umas “banqueiras” para servir o café reforçado para cada comitiva. Cada banqueira é responsável pelo café de uma comitiva. Depois a gente paga tudo. Diminuiu muito o nosso serviço em si. Por isso não é tão trabalhoso fazer essa festa, ela já é organizada por sua natureza. E as banqueiras ainda ganham um trocadinho. Ficou bom para ambas as partes.
Chapada do Arapari, 11 de dezembro de 2010
ORAÇÃO DE SANTA LUZIA
Ó, Santa Luzia,
que não perdestes a fé e a confiança em Deus,
mesmo passando pelo grande sofrimento de lhe vazarem e arrancarem os olhos,
ajudai-me a não duvidar da proteção divina,
defendei-me da cegueira não somente física, mas também espiritual,
e atendei a este meu pedido (fazer o pedido).
Conservai a luz dos meus olhos para que eu tenha a coragem
de tê-los sempre abertos para a verdade e a justiça,
possa contemplar as maravilhas da criação,
o brilho do sol e o sorriso das crianças.
Ó minha querida Santa Luzia,
eu vos agradeço por terdes ouvido a minha súplica.
Por Jesus Cristo, nosso irmão e amigo, na unidade do Espírito Santo.
Amém!
[Santa Luzia (Padroeira de Carangola-MG)] |
Quase perdi a respiração diante de tanta beleza. Muito legal esse resgate do catolicismo popular
ResponderExcluirFááááátima, a Dona Lô é um número!
ResponderExcluirGente, olhem só o que ela diz neste episódio:
"O padreco que já disse que quero fazer de Dilma uma rainha, agora com certeza vai dizer que vou ajudar ao povo a fazer dela uma santa! Ai, ai, Jesus me abana! E com um abano bem grande porque ainda vou enfrentar mais esse levantamento de falso!"
Ó, Santa Luzia, assim como devolvestes a visão de minha santa mãe Azize, faça com que Dilma, guiada por tua luz, enxergue os fracos e oprimidos e não se contamine com a soberba e a ambição dos poderosos e famintos de poder.Farei indulgências diárias.
ResponderExcluirSanta Luzia, por extensão, proteja a visão de Dona Lô, de Cesinha e das mulheres de Arapari. Em sendo assim, teremos razão de nova festa em 2011. Amén
Leila Jalul
Êh Dona Lô, você é nota mil
ResponderExcluirO que esse episódio deixa claro é que através do catolicismo popular é possível avançar do porto de vista político. Isso quer dizer que não é preciso fazer o povo abandonar as suas crenças para crescer politicamente, mas um processo pedagógico através delas pode aumentar a consciência política. Eu acho que é esse o papel de Dona Lõ.
ResponderExcluirMuito bonito, viu Dona Lô?
ResponderExcluirÉ um texto belíssimo. Demais. A autora é muito criativa e sabe prosear com poesia
ResponderExcluirDona Lô gostei do seu jeitão. E Dilma merece e precisa duma mulher como a senhora de olho no governo dela e pra defendê-la das muitas feras
ResponderExcluirCaríisima Dona Lô, eu acho que sua tarefa é inglória porque a sua candidata a rainha ou a santa não ajuda. A senhora verá. Mas como literatura a sua criadora é dez.
ResponderExcluirDescobri esse blog acessando o site Lima Coelho.
Um abraço do amigo Elias Pacheco
A beleza do post é o resgate da devoção popular a Santa Luzia. Muito bem escrito e bonito
ResponderExcluirSão Paulo, sábado, 11 de dezembro de 2010
ResponderExcluirSocióloga aceita convite para pasta de Igualdade Racial
Luiza Bairros acertou com Dilma que costurará apoio de movimentos sociais para que seja legitimada no cargo
Considerada uma das principais lideranças contra discriminação racial, gaúcha construiu sua militância na Bahia
NATUZA NERY
MÁRCIO FALCÃO
DE BRASÍLIA
A presidente eleita, Dilma Rousseff, chamou a socióloga Luiza Bairros para assumir a Secretaria de Igualdade Racial. Ela aceitou o convite, mas ficou de costurar apoio de movimentos sociais ao seu nome para que seja confirmada no cargo.
Atual secretária de Igualdade Racial da Bahia, onde construiu sua militância, a gaúcha Luiza Bairros é considerada uma das principais lideranças no combate à discriminação racial.
O perfil da ministeriável, que é ligada ao PT, cumpre as exigências de Dilma para o posto: ser mulher e negra. A escolha de seu nome acabou derrubando uma outra indicação do PT para o cargo: o deputado Vicentinho (SP).
Dilma a conheceu quando era ministra. Segundo fontes do governo de transição, ela se encantou com a desenvoltura da socióloga.
Bairros, que deverá assumir um lugar no primeiro escalão na cota pessoal de Dilma, recebeu, ainda, a bênção do governador Jaques Wagner (PT-BA), um de seus principais aliados e conselheiros.
Apesar da escolha, a presidente eleita tem um problema para fechar, como planejava, o time de quatro mulheres em diferentes secretarias.
O imprevisto foi provocado pelo TRE (Tribunal Regional Eleitoral) do Espírito Santo, que rejeitou anteontem a prestação de contas da deputada Iriny Lopes, cotada para a secretaria das Mulheres.
O tribunal apontou irregularidades nas notas fiscais de gastos com combustível feitos pela deputada, que diz ter havido falha do posto de gasolina. Dilma decidirá sobre seu nome nos próximos dias.
Ao lado da nomeação de Ideli Salvatti (PT-SC) para Pesca e de Maria do Rosário (PT-RS) para os Direitos Humanos, Iriny e Bairros fechariam a cota de mulheres.
A pedido do PSB, Dilma pode unir portos e aeroportos para contemplar a legenda, que antes não pretendia.
Por Deus, é só poesia!
ResponderExcluirShow demais! Dona Lô é só purpurina
ResponderExcluirQue beleza de lugar, de festas!!!!
ResponderExcluirPasseeo pelo blog e ele está lindo. Dona Lô é fofa demais
ResponderExcluirDona Lô cativa a gente. Uma bela personagem
ResponderExcluirGostei de todos os episódios, mas achei esse demais
ResponderExcluirDona Lô, emocionei com seu relato. Que Santa Luzia abençõe ocê, sua família e todos os brasileirinos.
ResponderExcluirUm cheiro em seu coração.
Dona Lö, um encanto essas suas historias.
ResponderExcluir