(DUKE)
Fátima Oliveira
Médica –
fatima.oliveira1953@gmail.com @oliveirafatima
Tenho como patrimônios culturais familiares, que ainda
hoje são marcantes em minha vida de sertaneja, a gastronomia religiosa do “Dia
do Nascimento” (Natal) e a dos “Dias Grandes” (nome da Semana Santa no sertão),
onde pontificam também minhas lembranças da queimação ou malhação do Judas no
Sábado de Aleluia.
Havia uma “meninada judeira” em Graça Aranha, onde
fazer Judas com cabeça de mamão verde e olhinhos de peteca (bola de gude) era
uma linda brincadeira de criança! “Fazendo Judas, aprendi ou descobri que sabia
versejar, lá pelos 8 anos de idade”, pois testamento de Judas dos legítimos é
escrito em versos! Ouvir a leitura do testamento de um Judas oficial do lugar é
um doce delírio, pois há sempre algo picante a decifrar, sobretudo insinuações
sobre “cornices” e teúdas e manteúdas de uns e outros...
(Maria Elvira Salles Ferreira)
A Semana Santa, segundo as leis do catolicismo popular
que comandavam o viver em minha família, era um tempo de silêncio, jejum e mil
e uma proibições, mas das comidas ainda hoje sinto o odor. Portanto, foi com um
misto de raiva e ternura que, num jantar natalino na casa da amiga feminista
Maria Elvira, em Belo Horizonte, ouvi de uma das convidadas uma história que me
fez pesquisar muito sobre o bacalhau e depois escrever o artigo “Sua
Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa”.
(Beth Pimenta, fundadora da Água de Cheiro)
Naquele lauto banquete, ouvi falar pela primeira vez
sobre a bicha (fila) das indulgências para comer carne na Semana Santa em
Portugal! Não tenho certeza, mas acho que a contadora foi Beth Pimenta,
fundadora da Água de Cheiro. Ela estava em Portugal na Semana Santa e ficou
espantada com as filas enormes de pessoas com sacolinhas de carne em volta das
igrejas católicas. Ao indagar o que era aquilo, recebeu como resposta que, para
comer carne, que ficava baratíssima naquele período, era preciso que ela fosse
abençoada pelo padre!
Evidentemente, percebi na hora que a “bicha da carne”
colocava a nu o logro cultural e religioso no qual fui criada: na Quaresma, era
seguido à risca o preceito de não comer carne na Quarta-Feira de Cinzas; em
nenhuma sexta-feira naqueles 40 dias, e em nenhum dia da Semana Santa porque
ela era dedicada a guardar contritamente a dor sofrida por Jesus Cristo, com
rezação, mortificação, jejum e silêncio!
“Desde fim do século XV, começo do XVI, o Vaticano, em
reconhecimento ao sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, decretou que os
cristãos não poderiam consumir carnes quentes durante a Quaresma. Dizem que o
Vaticano era proprietário da maior frota bacalhoeira – caravelas para a pesca
do bacalhau que levavam os dóris, barcos a remo, nos quais os pescadores
(bacalhoeiros) se lançavam ao mar para a pesca. Visando maximizar seus lucros,
o Vaticano proibiu o consumo de carne durante a Quaresma, quando então as
vendas de bacalhau explodiram. Já era um alimento apreciado nas camadas
populares europeias, sobretudo portuguesas, por ser nutritivo e barato”. (“Sua Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa”, O TEMPO, 19.4.011).
Dizia vovó Maria: “Se Deus inventou comida melhor do que bacalhau, guardou só para ele”. Foi seu amor pelo bacalhau que tornou sua
descendência amante incondicional da culinária bacalhoeira, e eu vivo quebrando
a cabeça tentando reproduzir suas receitas! Já recuperei o bacalhau à espanhola, o arroz de toucinho com bacalhau, mas não consigo fazer suas
misteriosas trouxinhas de couve com bacalhau no borralho, que iam ao borralho
enroladas em folhas de bananeira, já que desconhecíamos o papel-alumínio!
Vovó era uma sábia sem igual.
PUBLICADO EM 04.04.17
FONTE: OTEMPO
Nenhum comentário:
Postar um comentário