(DUKE)
Legar esse conforto à descendência é um privilégio
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br
Legar zonas de conforto à descendência é um dever e um privilégio. Há memórias que, quando puxo por elas, fico enternecida. Não é propriamente saudosismo o que se apodera de mim, mas uma zona de conforto e de ternura. Lembrar a mesa posta para o café da manhã é uma delas.
Na casa da vó Maria, com quem eu morava, uma das primeiras tarefas de minha responsabilidade, por volta dos 7/8 anos, foi "pôr a mesa do café" à noite.
Consistia em limpar a mesa da copa, trocar a toalha e colocar um pratinho e, em cima dele, pires, xícara e colherzinha; e, no centro da mesa, uma bandeja com açucareiro, farinheiro, saleiro, manteigueira e uma "faca de mesa" para a manteiga. Ah, e guardanapos de panos!
Na copa havia um móvel de madeira, o lavatório, com uma bacia branca esmaltada, toalha de mão, sabonete e jarra de água, também de ágata. Não havia água encanada. Trocava a toalha, enchia a jarra de água e verificava se a bacia estava limpa. Nos primeiros dias, vovó ou a Albertina, a cozinheira, ficava ao meu lado, ensinando-me. Depois passei a pôr a mesa sem auxílio. De vez em quando, dava uma "esquecida" proposital... Mas vovó era rigorosa: "Acorda, vai cuidar da obrigação!". Ia para a escola muito cedo, eu tomava café sozinha. Aos sábados e domingos, a família toda tomava café ao mesmo tempo.
O hábito de "pôr a mesa do café" à noite é uma cultura familiar que reproduzi em minha casa. E a responsabilidade foi passando de Maria para Débora, dela para Lívia, para o Biel, que em um belo domingo nos acordou "para tomar café logo, pro misto não esfriar" - e nem completara 7 anos! Pulei da cama imaginando um acidente... Na mesa, uma jarra de suco, um misto-quente para cada pessoa e café fumegando no bule! Desconhecia que ele soubesse acender o fogão! Um baita susto e ele, com sorriso maroto, feliz da vida, apresentando suas estripulias gastronômicas! Desde então, virou o "fazedor de café" oficial da casa.
Por fim, a mesa do café chegou ao Arthur, com quem se perdeu no esvaziamento da casa. Com o ninho quase vazio, o costume de pôr a mesa do café sumiu! Só reaparece quando há visitas.
Mas como "o costume do cachimbo é que põe a boca torta", às vezes, já deitada, pronta para dormir, levanto-me e ponho a mesa... do café! Olho maravilhada e me dou conta de que, há muitos anos, quando saio para trabalhar, não tomo café. Paro na Mercearia Diniz, bebo um cafezinho, quando muito, como um pão de queijo e toco o carro... É cômodo e compatível com o corre-corre da vida de quem pega no batente cedo.
Ensinei ao neto Lucas, depois à neta Luana, que não demonstraram animação, mas insisto, mesmo correndo o risco de ser uma vó chata. Pasmem! Pôr a mesa do café na casa da vovó é uma imagem doce para ambos e sobre ela falam com muito carinho, assim como da outra cultura de conforto: a cochilada após o almoço.
O Lucas, que uma vez ficou escondido ao lado da geladeira, é tranquilo e acompanha-me na sesta e até cochila, mas a dona Luana de-tes-ta! Embora vá, não vendo a hora em que caio em sono profundo pra se mandar dali: "Ô Lucas, vê se a vovó já dormiu pra gente sair; quero ir pro computador...". Dei uma sonora gargalhada: "Luana, eu ainda não dormi. Fica quieta!".
A neta Maria Clara, embora ainda bem pequena, tem muito da pinga-foguice da Luana. Levo-a para a cama depois que almoço e minha sesta é interrompida N vezes pelos seus dedinhos em meus olhos, sinalizando que não está gostando daquilo... A "vozice" teima e teima em cochilar e ela acaba dormindo também... Momentos de ternura.
Publicado no Jornal OTEMPO em 19.07.2011
Fátima que texto doce. Não acostumei meus meninos a pôr a mesa. Acho agora um pouco tarde, mas quem sabe os netinhos?
ResponderExcluirUm cheiro com cheirim de café de coador de pano.
Oi Fátima, passei aqui antes de ir dormir e deparo-me com uma crônica que mexeu profundamente comigo. Muito bonita!
ResponderExcluirLembro-me bem dos lavatórios de madeira feitos no interior do Maranhão, contendo um lugar para a bacia, abaixo outro lugar para a jarra de água; com porta-toalha e alguns até com espelho, os mais chiques.
ResponderExcluirEra um móvel essencial e de muita utilidade quando não havia água encanada. Ficava na sala de jantar ou copa, sempre. É incrível, mas não encontrei na internet nenhuma foto de lavatório, como os que conhecemos, feitos pelos antigos marceneiros.
O seu uso, digo, o do lavatório era tão arraigado que com a chegada da água encanada, em muitos lugares todas as casas possuiam uma pia de lavar as mãos na sala de jantar ou na copa. Não era costume lavar as mãos na pia do banheiro!
Vou ensinar Clarinha, para quando ela for passar férias com a vovó Fátima, fazer esse mimo para ela...rs!
ResponderExcluirBjos mami!
Valei-me, senti o cheirinhio de cafezinho novo descendo do coador de pano...
ResponderExcluirFáááááá´tima, quase chorei com tanta ternura
ResponderExcluirDea cordo com Fátima. Eu preciso de mesa posta para tomar café, almoçar e jantar, afinal nosso alimento é o repasto do santuário do nosso corpo
ResponderExcluirVooei no tempo. Na casa dos meus pais a mesa do café também era posta à noite. Parece até que estou vendo
ResponderExcluirMeus olhos lacrimejaram. Fui criado da mesma maneira. Não pondo a mesa do café da manhã, mas sentando-me numa que era posta à noite. Lá em casa só as meninas colocavam a mesa do café. Tempo de criação machista. Em minha casa não é assim. Não era porque a partir de hoje será. Sinto falata. Sentia falta, mas não sabia. Hoje me dei conta que essas pequenas coisas fazem de nós o que somos enquanto seres humanos.
ResponderExcluirEspero que seus netos Lucas, Luana e Maria Clara possam um dia fazer o mesmo com filhos e netos. São coisas que ficam na vida da gente, como você mesmo disse, como uma zona de conforto por onde a gente pode navegar para buscar novas energias.
Quem tem memórias tão bonitas para recordar tem motivos para ser feliz
ResponderExcluirUm dos textos mais carinhosos e bonitos que já li
ResponderExcluirUma crônica que é puro carinho. Eu também sinto muita saudade do café da manhã da casa de minha mãe
ResponderExcluirSou maranhense. Viemos pro Rio quando eu era bem criança. Na casa de minha mãe a mesa é posta para o café da manhã, o almoço, o café da tarde e para o jantar.
ResponderExcluirAinda tem o costume de também por a mesa do café da manhã à noite. Na casa dos meus avós aí no Maranhão também era assim. Somos quatro irmãs, que já temos nossas casas e nelas, o hábito é o mesmo. Nossos maridos estranharam no começo. Porém nas casas dos meus irmãos não é. As mulehres deles t~em outros costumes. mas eles comentam que sentem falta, ou melhor sentem saudades.
Adorei ler sua crônica.
Sou irmã da Joseana. Conversamos ainda há pouco sobre sua crônica. Fiquei muito emocionada com ele, além do que é bem bonita. Eita conterrânea bacana!
ResponderExcluirUma doçura de crônica, além do que faz a gente repensar o modo de viver. lembro-me que em minha família, a que eu nasci e fui criado) as refeições eram momentos solenes. Nem posso imaginar meus pais comndo vendo televisão.
ResponderExcluirEmocionante. Até chorei. Texto muito bonito
ResponderExcluirAdorei!!! Voltei no tempo...
ResponderExcluirMaravilhoso texto e maravilhosas imagens!
Abraços.