No Brasil, não há lei específica para casos desses acervos
Fátima Oliveira
Médica– fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Relutei muito a decidir quem herdaria meus arquivos de computador e meu blog "Tá lubrinando - escritos da Chapada do Arapari". Achava uma bizarrice, porém, tremia só de pensar que há gente que morre e deixa de herança pendências trabalhosas. Uma aporrinhação sem fim. Então, é preciso pensar em meus guardados de computador e no que produzi que está na web.
Levei na galhofa. É uma pessoa nostálgica e introspectiva, e eu a conheço assim desde sempre. "Fez testamento? Registrou em cartório?". Fiquei sem resposta, pois a pessoa tem muito medo de morrer, se crê imorrível; e não aspira à eternidade, que pressupõe morrer, mas à imortalidade do corpo.

Semana passada, ouvi uma história que mais se parece com uma lenda da internet: uma mulher e um homem, amigos virtuais, que nunca se encontraram, jamais perguntaram sobre a vida real do outro, e a única coisa que sabiam eram as respectivas profissões: uma professora de literatura e um médico. E assim se passaram cinco anos. Há quilos de páginas de e-mails trocados quase diariamente. O nome dela era real, o dele, nem tanto, mas ela só descobriu depois.
Uma noite, ela abriu o jornal e estava lá que o "dr. Fulano de Tal dos Anzóis Pereira", que mantinha o blog "Coisa & Tal", com o pseudônimo de "Etc. e Tal", falecera no dia anterior e seria enterrado em sua cidade natal naquele dia. Já era noite, ele já estava enterrado. Chorou copiosamente. Depois, mais calma, acessou o "Coisa & Tal". Lamentou que uma produção literária cuidadosa e meticulosa, quase uma obra de arte, deixasse na orfandade mais de mil seguidores.
Ela continua em
pleno gozo de seus direitos de herdeira
e recebeu uma oferta
milionária para a história
da herança virar um filme
Ela se apossou do blog. Fuçou o que pôde. Havia nos rascunhos seis contos, que ela publicou, as senhas de todas as contas digitais dele e um comunicado de falecimento, no qual constava que ela era a herdeira do seu acervo digital e poderia decidir livremente o que fazer com a herança, até deletá-la. Após uma semana, recebeu telefonema do advogado da viúva (ali descobriu que ele era casado e que tinha três filhos adultos!), que estava inconsolável por não ser a herdeira do acervo digital do marido e oferecia uma recompensa pelo seu silêncio e a desistência da herança!


Senha virou herança, coloque-a no seu testamento
Quantas fotos, e-mails e documentos você guarda em um ambiente virtual trancados com uma senha que só mesmo você conhece? Será que essa senha deve ser tratada como herança? O professor Carlos Affonso, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV DIREITO RIO, comentou o assunto nesta reportagem do Fantástico.