Fátima Oliveira
Médica – fatimaoliveira@ig.com @oliveirafatima_
"E conta-me histórias, caso eu acorde,/Para eu tornar a adormecer./E dá-me sonhos teus para eu brincar/Até que nasça qualquer dia/ Que tu sabes qual é" (Alberto Caeiro/Fernando Pessoa, in "Poema do Menino Jesus"). São versos de beleza ecumênica única na voz de Maria Bethânia em "O Doce Mistério da Vida".

O Menino Jesus, nos Natais atuais, fugiu das casas, como fugiu do céu no poema de Pessoa. O aniversariante nem sequer é lembrado no frenesi consumista do espírito natalino e nas orgias gastronômicas, que remontam "ao antigo costume europeu de deixar as portas das casas abertas no dia de Natal para receber viajantes e peregrinos".

Em casa, nos empanturrávamos de café com leite e bolos; e mal deitávamos, rompendo a madrugada, ouvíamos o batuque do ‘reisado’ glorificando o Menino Jesus: ‘Ô de casa, ô de fora/Que hora tão excelente/É o glorioso santo Reis/Que vem do Oriente... Eu me pelava de medo dos ‘caretas’ dos ‘santos reis’, mas amava ‘cantigas de reis’. Nada de Missa do Galo (não havia padre, já disse!) e ceia de Natal. Nem presentes. Só no Ano Novo havia o ‘pagamento de alvíssaras’ - prenda que se dá a quem traz boas-novas. O almoço do Dia do Nascimento era leitoa e peru, cuja carcaça era degustada no dia seguinte, numa ‘quiabada’ - ossada de peru com quiabo, prato dos mais deliciosos. Mantenho a tradição: faço ‘quiabada’ do peru de Natal" (O TEMPO, 23.12.2008).


Peru de Natal: fartura da ceia é sinônimo de abundância e de agradecimento pelas conquistas do ano - Foto: Dreamstime/Terra
Peru caipira é uma memória olfativa tão forte e perene que consigo fazer de conta que é caipira o peru industrializado que vai pra nossas mesas desde 1974, quando surgiu o "Peru temperado Sadia", que, desde a década de 1960, criava "peru de granja". Pero, não há o que pague degustar um peru caipira nos moldes antigos: abatido na véspera, após o ritual de embebedá-lo com cachaça, não mais que 100 ml para um peru cevado, em média com 5 kg, é o suficiente para relaxar os músculos e amolecer a carne...

Voltei ao assunto em "Os rituais gastronômicos do Natal celebram o Menino Jesus?", no qual digo que "O centro da comemoração era o Menino Jesus, daí a imperiosa presença dos presépios e da ‘tiração de reis’ - apresentação de reisados, iniciados na véspera do Dia do Nascimento, indo até ao Dia de Reis, 6 de janeiro. Os reisados são autos natalinos de uma beleza indescritível... Não havia a cultura de Papai Noel nem de presentes. Isso era lá no sertaozão bravo, porque na capital, São Luís do Maranhão, o Natal já era infestado de Papai Noel, ceia de Natal e quetais, embora até hoje os presépios sejam venerados.
Maior presépio do Maranhão, de autoria do artista plástico João Ewerton, está instalado na área verde da Praça Maria Aragão, em São Luís (MA)
Não tenho religião, mas sou "religiosíssima" nas comidas de "dias santos", tradição cultural herdada de minha família, a exemplo da Semana Santa e do Natal, cujos rituais culinários são de dar água na boca e bens culturais a preservar. No que depender de mim, minha descendência não os esquecerá, em deferência aos nossos antepassados.
Publicado no Jornal OTEMPO em 27.12.2011