Fátima Oliveira
Médica -
fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Eram costume das famílias remediadas do sertão os
retratos emoldurados e pintados à mão em cima de um móvel ou na parede ao lado
dos santos de devoção.

Na casa da vovó e na da mamãe, todas as pessoas foram
retratadas no que se denomina hoje “fotopintura”, arte que remonta ao início do
século XX, antes das fotos coloridas, na qual, a partir de um retrato preto e
branco, um colorista-pintor fazia sua arte sobre papel de sais de prata – hoje
com recursos digitais: “Photoshop, scanners e outros programas e equipamentos
de captação e tratamento de imagem disponíveis”, como relata Mestre Júlio,
cearense fotopintor de retratos, eternizado em um livro:” “Júlio Santos, Mestre da Fotopintura (Editora Tempo d’Imagem).




(Capa do Livro - “Júlio Santos, Mestre da Fotopintura”)
Eram adornos tão caros que a tia Lô morreu aos
cinquenta e poucos anos sem realizar sequer parte do acalentado sonho! Era uma
prática cultural tão arraigada que estabelecia consensos no campo do caráter ao
lado de outras verdades, tal como: “Marido bom, quando fica viúvo, se casa
logo”.
Se o viúvo se casasse sem eternizar a morta em um
retrato pintado, ficava falado e sem valor. Vovó era a primeira a dizer: “Eita
que fulano deu ruim! Nem um retrato da falecida mandou fazer! Nisso é que dá
mulher besta fazer economia pra quem não trabalhou gastar”.




Um dia, o retratista chegou. Tirou da mala um belíssimo
retrato pintado da vovó. Mamãe, espantada, não se conteve: “Mãe, a senhora já
tem um, pra que outro?!”. Vovó: “Mas é junto com Braulino. Não sei se vou morar
com ele a vida toda”. A fotopintura virou fonte de ameaça até quando o pai
velho falava com ela de “estucada” (sem educação). Ela dizia calmíssima: “Num
grita comigo, não, que eu até já tenho meu retrato sozinha! Olha ali”. Meu avô
se calava como que por milagre.
Nossas fotopinturas antigas são a memória de um doce
tempo do qual sou herdeira. Tenho uma minha aos 3 anos com a minha boneca de
pano preferida, envolta em lendas e lendas. Contam que só fiquei quieta para a
foto depois que tive a boneca nas mãos – vovó disse para o fotógrafo que a
abolisse no retrato pintado, e o pai velho mandou que ficasse porque eu era
doida com ela. Caso contrário, o retratista não receberia o pagamento, pois
quem pagava era ele; outra, aos 18 anos, com a minha irmã Júlia adolescente; e
outra de meu pai aos 30 anos. Tenho paixão por elas porque, para além da arte, são
repletas de nossas histórias.

Quando morei em BH, vovó passou dois meses comigo em
1989 e, vendo as fotopinturas, disse-me, em lágrimas: “Tu guardas com tanto
carinho! Tenho arrependimento de não ter te dado todas”. Em 1993, mamãe,
chorando, disse: “Tu és muito cuidadosa. Pena que não te demos todas. As outras
se acabaram”.
Há quem diga que os retratos pintados são
sonhos-tatuagens de alma. Concordo, pois a memória cultural é composta por
heranças simbólicas.

Fotopintura: o "photoshop" que reinventou o Sertão
https://youtu.be/-w-oIPXDSwU
"A fotopintura surgiu na França, em 1832, mas foi no nordeste brasileiro onde se popularizou. A técnica deu vida à fotografia em preto e branco, levando cores e mais realidade para o papel".