O exercício livre da sexualidade é uma experiência nova
Fátima Oliveira
Médica –
fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_
Como prometi em “NháChica é uma santa negra que nasceu escrava?” (O TEMPO, 14.5.2013), fui a
Baependi (MG) para ver a santa de perto. Desde maio, mergulhei no mundo da
santinha de Baependi. Li dois livros sobre ela: “Nhá Chica, Mãe dos Pobres”, de
Rita Elisa Seda (Editora ComDeus), e “Nhá Chica Perfume de Rosa”, de Gaetano
Passarelli (Paulinas).
Fotos: José Antônio de Ávila
Osni Paiva pode estar
certo. Nhá Chica é a segunda geração de Nhá Roza de Benguela, escrava de
Custodeo Ferreira Braga, provável pai de sua mãe, Izabel Maria, mestiça de
preto com branco, que foi vendida para um membro da família Pereira do Amaral,
com quem teve Maria Joaquina e Theotônio Pereira do Amaral, ambos registrados e
criados pelo pai; após ter os filhos, foi alforriada pelo seu dono. Quando Nhá
Chica nasceu (1808), sua mãe era uma mulher livre, que trabalhava para a
família Alves, em Porteira dos Vilelas (Passarelli, 2013).
Trazidas para o
Brasil na condição
de trabalhadoras
escravas, as africanas
e suas descendentes
não eram donas de
seus corpos
Intrigava-me como uma
ex-escrava sai de São João del Rei chega a Baependi e compra uma chácara.
Compartilhei com Osni Paiva a indagação. Para ele, a resposta desvendaria a
alforria de Izabel. Encontrei a história em “Nhá Chica Perfume de Rosa”.
Theotônio e Maria Joaquina foram mandados, pelo pai, para Baependi, lugar
próspero à época. A mãe acompanhou o filho. Enquanto o palacete dos filhos
Pereira do Amaral era na principal rua da cidade, ela e Nhá Chica se acomodaram
numa chácara, hoje rua da Conceição, 165, que dizem ter sido comprada com o
auxílio do Amaral pai e do padrinho de Nhá Chica, Ângelo Alves, seu possível
pai.
Em Baependi, Nhá Chica é uma sempre-viva, a flor imortal, no coração do povo. Falam dela como se estivesse viva! No santuário da Imaculada Conceição, erguido englobando a antiga igrejinha de Nhá Chica, onde ela está sepultada, ao lado ficam a casa de Nhá Chica e o Memorial Nhá Chica. A nova imagem de Nhá Chica, entronizada no santuário da Imaculada Conceição, é uma obra de arte de rara beleza; de fato, Osni Paiva não a fez branca. É parda. Logo, negra, embora não seja preta. População negra é o conjunto de pretos e pardos. Em conversas com romeiros e pessoas do lugar, quase 100% dizem preferir a Nhá Chica preta da imagem tradicional!
Elementar que Nhá
Chica não seja preta. Sua avó e a mãe foram submetidas, pelos seus donos
brancos, ao estupro colonial. Trazidas para o Brasil na condição de
trabalhadoras escravas, vítimas do estupro colonial, as africanas e suas
descendentes não eram donas de seus corpos. A possibilidade de decidir sobre o
próprio corpo e o exercício livre da sexualidade é uma experiência muito nova
para nós, negras; data de apenas 125 anos (1888, Lei Áurea).
Sair da condição de “objeto
privado” não tem sido fácil, posto que os estereótipos sobre as mulheres negras
são inúmeros, embora sejamos, biológica e culturalmente, um país mestiço.