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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Um dilema brasileiro: a Saúde da Mulher na encruzilhada



No puxa-encolhe, o vaso da confiabilidade se quebrou
Fátima Oliveira
Médica –
fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_

Como espaço de concertação e definição de rumos, chegou a hora da 2ª Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, um pouco mais de um quarto de século após a primeira (10 a 13.10.1986). Viajei? Há uma frase, esqueci a autoria, que uso muito: "A Terra nos foi dada em usufruto, e é um dever legá-la saudável para as gerações futuras". O mesmo vale para direitos conquistados. É covardia perdê-los sem chiar.

bode   Há quase um ano, vivenciamos descaminhos na saúde da mulher. É fato: há um bode fedido numa sala qualquer do Ministério da Saúde a empestear tudo! Há uma disputa política, não bem conduzida pelo governo, desde o anúncio da Rede Cegonha (28.3.2011), que ferveu com a edição da MP 557/11 (26.12.2011). Eis a encruzilhada!

Imagens engraçadas - Encruzilhada.


Há controvérsias de relevante interesse público, numa conjuntura em que os canais de democracia participativa foram obstruídos, numa arrogante demonstração de complexo de Incrível Hulk, motivo número um de termos chegado a uma encruzilhada profundamente dolorosa. Explico-me.
É de domínio público que, tal qual a minha personagem Dona Lô, "sou uma mulher com Dilma"; em segundo, suei nas discussões online para que o ministro da Saúde fosse Alexandre Padilha, uma aposta diante de outras cartas, velhas conhecidas (Ai, meus sais!). Sem arrependimentos da opção Padilha, apesar do desassossego político que ele nos dá. Por ser dinâmico, com todas as trepeças, apostar nele foi correto - "pero", nunca imaginamos retrocessos -, considerando que, num governo de coalizão nacional, a regra é disputar cotidianamente.




 As forças políticas da atenção integral à saúde da mulher tiveram voz e vez nas gestões Humberto Costa (1.1.2003/8.7.2005), que elaborou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Pnaism); Saraiva Felipe (8.7.2005/31.3.2006) e Agenor Álvares (31.3.2006/16.3.2007). E começaram a perder espaço na gestão José Gomes Temporão (16.3.2007/31.3.2010), que deu um "chega pra lá" na visibilidade política da área técnica da Saúde da Mulher, sem verbalizar recuos; na prática, a Saúde da Mulher hibernou e não encontrou oposição à altura, nem no governo, pois a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) emudeceram no processo que as desemponderou!


Cabe exigir uma
concertação para definir políticas
à luz da diretriz nacional,
laica e republicana,
na qual cabem todas as brasileiras!



A bordo de um erro político monumental, chegamos - ativistas, SPM e Seppir - à gestão Padilha (1.1.2011) estilhaçadas o suficiente para que a Saúde da Mulher ficasse ao bel-prazer de personalismos de matizes fundamentalistas aboletados no MS, que, sob a ótica conservadora, reconstruíram a primazia do ministério na saúde da mulher, um "nicho tripartite", de três ministérios (Saúde, Mulher e Seppir), como sabiamente foi se definindo no governo Lula!

 Reagimos aos retrocessos da Rede Cegonha, a visão de saúde materno-infantil; e à "joia da coroa": a MP 557/2011, que conferia personalidade civil ao nascituro, materializando o desmanche dos alicerces da Pnaism! No puxa-encolhe, o vaso da confiabilidade se quebrou. Confiança não se remenda, gesta-se uma nova.



Há um novo contexto político. Cabe ao "batalhão da mata", as "prendas do Rosário" - às ministras da Mulher, Eleonora Menicucci, e da Igualdade Racial, Luiza Bairros - sangrar nos cacos: exigindo uma concertação, não para monitorar políticas de saúde, mas para defini-las em pé de igualdade com o MS, à luz da diretriz nacional em vigor, a Pnaism, que é laica e republicana, na qual cabem as necessidades de todas as brasileiras!

 (DUKE)
Publicado no Jornal OTEMPO em 28/02/2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Alaerte Martins: A morte materna invisível das mulheres negras

  Alyne e Marina, retratos emblemáticos de uma tragédia brasileira: Morreram não por falta de acesso ao pré-natal, mas devido à falta de acesso a um pré-natal de qualidade, nosso calcanhar-de-aquiles

por Conceição Lemes

Começou dia 13 de fevereiro e vai até 2 de março, em Genebra, Suíça, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU).
Para o Brasil, especificamente, sexta-feira passada, 17, foi chave. A ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), apresentou um relatório sobre as medidas adotadas pelo Estado brasileiro para promover a igualdade de gênero. O enfrentamento da mortalidade materna foi um dos temas abordados.
Primeiro, porque anualmente cerca de 1.800 brasileiras morrem antes, durante ou poucos dias após o parto. Em 2009, foram 1.872 óbitos maternos declarados, segundo o DATASUS. O que significa 65 mortes para cada 100 mil bebês nascidos vivos.
Segundo, porque, em 2011, o Estado brasileiro foi condenado pela Cedaw devido à morte de Alyne da Silva Pimentel, ocorrida em 2002.
Os casos de Alyne, em Berlfort Roxo, na Baixada Fluminense, e de Marina Carneiro, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, são emblemáticos dessa tragédia brasileira.
Alyne, então com 28 anos de idade e 27 semanas de gestação, procurou uma casa de saúde particular, pois estava vomitando e com fortes dores abdominais. Saiu de lá com prescrição de remédios para náuseas, vitamina B12 e uma medicação tópica para infecção vaginal.
Após dois dias piorou. Voltou à casa de saúde e uma ultra-sonografia mostrou que o feto estava morto. O parto foi induzido. Mas os médicos só fizeram a cirurgia para retirar a placenta 14 horas depois. Em seguida, Alyne teve hemorragia, vomitou sangue e sua pressão arterial caiu. Decidiram transferi-la para um hospital público da região.
O único que a aceitou foi o Hospital Geral de Nova Iguaçu. Alyne esperou oito horas por ambulância. Como a casa de saúde não encaminhou junto qualquer documento que indicasse o seu estado clínico, ela ficou horas no hall da emergência, pois não havia leito disponível. Aí, entrou em coma e morreu no dia seguinte. Entre o mal-estar inicial e o óbito se passaram cinco dias.
Marina Carneiro tinha 25 anos, residia em Porto Alegre, havia morado nos Estados Unidos, cursava o último ano de Engenharia do Meio Ambiente. Fez pré-natal com o médico do seu convênio. Ele solicitou cinco ultra-sonografias, mas nenhum exame de urina durante o pré-natal, como determina o protocolo básico de atendimento às gestantes.
À 0h30 do dia 7 de março de 2005, na 34ª. semana de gestação, Marina deu à luz a Manuela. Não sobreviveu para conhecê-la. Sete horas depois morreu. Causa: doença hipertensiva específica da gravidez (DHEG).
“Se o médico da Marina tivesse recomendado exame de urina e demais medidas indicadas no protocolo de atendimento de gestantes, descobriria que ela tinha proteína na urina, a DHEG seria diagnosticada e ela salva”, atenta a enfermeira obstétrica e doutora em Saúde Pública Alaerte Leandro Martins. “Alyne morreu por falta de cuidados médicos adequados desde o instante em que procurou a casa de saúde pela primeira vez com fortes dores abdominais. A partir dali, os equívocos foram se acumulando, chegando ao absurdo de ela ser transferida de hospital, já em estado grave, sem um relatório com dados do seu prontuário médico.”
“Alyne e Marina morreram não por falta dos R$ 50, propostos pela MP 557, mas por falta de acesso a um pré-natal de qualidade, o nosso calcanhar-de-aquiles”, avisa Alaerte. “A alta taxa de mortalidade materna no Brasil se deve principalmente à má qualidade do atendimento e à falta de organização das redes de serviços e não à falta de acesso ao pré-natal, como muitos propagandeiam.”
“A mortalidade materna é maior entre as mulheres negras, sendo que metade dos óbitos devido a aborto é por aborto espontâneo”, adverte Alaerte. “Em situação de abortamento, as mulheres são discriminadas. E se são negras são mais discriminadas do que as brancas. Serão as últimas das últimas a serem atendidas, correndo maior risco de morte.”
Já nos anos 1970 o movimento negro alertava sobre fortes indícios de que a mortalidade materna das negras no Brasil era, expressivamente, maior que do que a das brancas. O setor saúde e os governos nunca deram crédito à hipótese. Até que uma enfermeira obstétrica negra, Alaerte Leandro Martins, resolveu estudar o assunto.

 Alaerte Martins: Dificilmente os R$ 50 vão ajudar a reduzir a mortalidade materna no Brasil

Na tese de mestrado “Mulheres negras e mortalidade materna no estado do Paraná, de 1993 a 1998”, analisou 956 óbitos maternos, na faixa etária de 10 a 49 anos, ocorridos nesse período. Concluiu que, quando comparada à das brancas, a mortalidade das negras era 6 vezes maior. A tese de doutorado, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), foi sobre gestantes negras que não foram a óbito, mas que ficaram com graves sequelas: “Near miss e mulheres negras em três municípios da Região Metropolitana do Paraná”.
Alaerte trabalha há 22 anos com saúde da mulher. Integra o Comitê de Prevenção de Mortalidade Materna do Paraná, tendo sido sua presidenta. Integra a Comissão de Prevenção da Morte Materna do Ministério da Saúde. É coordenadora executiva da Rede de Mulheres Negras do Paraná.
Eis a íntegra da entrevista que ela nos concedeu.

Viomundo – Quando se diz que x ou y é um problema grave de saúde pública, muitos imaginam milhares e milhares de mortes. Qual o significado da alta taxa de mortalidade materna?
Alaerte Martins – Para se compreender melhor a magnitude do problema, a gente tem de falar do cálculo da mortalidade materna. É um dos raros indicadores calculados por 100 mil nascidos vivos. Significa que cada mulher que morre é única em 100 mil bebês nascidos vivos. E quando essa mulher morre, não é apenas ela que vai, a família toda “morre”. E o que é mais cruel: são mortes evitáveis.
Para a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), se a mortalidade materna de uma região é muito alta, é porque ela é subdesenvolvida. A morte materna evidencia que se não há assistência digna à mulher no pré-natal e no parto – em 85% a 90% dos casos deveriam ser normal –, não há assistência para mais nada.
É absurdo que em pleno século XXI, quando se faz transplante de todo tipo de órgão, a mulher ainda morra por estar grávida. Quanto menos desenvolvido o país ou a região, maior a mortalidade materna.

Viomundo – Quantos casos ocorrem por ano no Brasil?
Alaerte Martins – Em 2009, foram 1.872 óbitos declarados, segundo o DATASUS. O que dá 65 mortes maternas para 100 mil bebês nascidos vivos.

Viomundo – Como se distribuem pelo Brasil?
Alaerte Martins – Numa mesma região, há índices totalmente opostos. Eu trabalho numa regional de saúde que engloba 29 municípios, inclusive Curitiba. Nela, além da capital, está Araucária, o município com melhor IDH do Paraná, e Doutor Ulysses.
Araucária tem mortalidade materna comparável aos países de Primeiro Mundo, como Estados Unidos, Japão, Dinamarca, França, Alemanha, Inglaterra, onde ocorrem menos 10 mortes maternas para cada 100 mil nascimentos.
Mas também faz parte da minha regional a cidade de Doutor Ulisses, com índices comparáveis a algumas regiões da África. Doutor Ulisses, no Vale da Ribeira, município com menor IDH do Paraná, tem 500 óbitos maternos para 100 mil bebês nascidos vivos.
Em 2009, segundo o DATASUS, a taxa de mortalidade materna foi de 67/100 mil nascidos vivos na região Norte; 73, na Nordeste; 62, na Sudeste; 55, na Sul; e 62/100 mil nascidos vivos, na região Centro-Oeste.
Detalhe: as regiões Norte e Nordeste são as que apresentam maior percentual de população negra. E as mulheres negras morrem mais por causa da gravidez do que as brancas.

Viomundo – Qual o número de óbitos maternos segundo o quesito cor?
Alaerte Martins – A relação mortalidade materna/nascidos é maior entre as mulheres indígenas, seguidas das mulheres negras. Porém, morrem mais mulheres negras.
Explico. Em 2009, segundo o DATASUS, houve 1.872 óbitos declarados, sendo 25 de mulheres indígenas. Mas, como a população indígena é pequena, a relação morte materna/nascidos vivos, é a mais alta: 157óbitos para cada 100 mil nascidos vivos.
Já entre as mulheres negras (soma de pardas e pretas, segundo o IBGE) a relação é menor: 75 para cada 100 mil. Porém, em números absolutos é, em disparada, maior: 1.076 óbitos. Portanto, 57% do total de um total de 1.872 óbitos em 2009.
Em 2009, segundo o DATASUS, tivemos 2 óbitos em amarelas, 638, em brancas e 131 em que a cor da pele não foi registrada, apesar de ser obrigatório desde 1996.

Viomundo – A mortalidade materna decorre de falta absoluta de estrutura?
Alaerte Martins – Não necessariamente.

Viomundo – Quais as causas então?
Alaerte Martins – Há causas diretas e indiretas. Nos países de Primeiro Mundo, a grande maioria dos óbitos maternos é por causa indireta, ou seja, doença previamente existente. Por exemplo, a gestante já tem hipertensão arterial ou diabetes antes da gravidez. Algumas vezes, apesar de acompanhamento diferenciado, essas doenças podem se exacerbar na gestação e ela morrer. A mulher morre não por causa da gravidez propriamente dita, mas devido a uma doença pré-existente.

Viomundo – E as causas diretas?
Alaerte Martins – É o grande absurdo: a mulher morrer exclusivamente porque está grávida. São quatro as principais: doença hipertensiva específica da gravidez (DHEG), hemorragia, infecção puerperal e aborto.

Viomundo – No Brasil, qual a mais freqüente?
Alaerte Martins – Na maioria das vezes, a DHEG é a primeira causa. Há anos em que a hemorragia a supera. Quando isso acontece, é a segunda.
A DHEG é o distúrbio mais comum, acontece em geral na primeira gestação. Gestantes perfeitamente saudáveis podem tê-la. O organismo passa a tratar a placenta como inimiga. Por volta da 20ª semana, provoca aumento da pressão arterial, edema (inchaço por retenção de líquidos) e proteinúria (aparecimento de proteínas na urina).
A terceira causa é a infecção puerperal. Está mais do que comprovado que ela é decorrente de imprudência e negligência dos profissionais de saúde. São médicos que se acham deuses e não lavam as mãos antes dos procedimentos. E enfermeiras, que é a minha categoria profissional, que não sabem esterilizar direito os materiais. Resultado: a gestante acaba morrendo de infecção. Ela pode contrair infecção numa cesariana descuidada e até num parto normal se for deixado no útero resto placentário.

Viomundo – Como prevenir a doença hipertensiva específica da gravidez?
Alaerte Martins – Fazendo pré-natal bem feito. Numa gravidez normal, dá, em torno, de 12 consultas. Mas existe um protocolo básico que tem de ser seguido, seja a paciente SUS, de convênio ou particular. Isso implica fazer, no mínimo, seis consultas, se a paciente não for de risco. É o mínimo mesmo! Em cada uma, é preciso verificar a pressão arterial e o peso – 1kg a 1,5kg é o máximo que se deve ganhar por mês. E fazer duas baterias de exames de urina. Com isso, previne-se a maior causa de mortalidade materna, que é a DHEG.

Viomundo – Mais leitos em UTI previnem a DHEG?
Alaerte Martins – Não adianta só fazer UTI. O leito da UTI é para a mulher que já está morrendo. Se a DHEG não for prevenida no pré-natal, através do acompanhamento adequado, a doença avançará tanto que a gestante entrará em coma. Aí, claro, vai precisar de UTI.
Muitas vezes a mulher com DHEG não morre por causa da DHEG propriamente dita, mas devido à imprudência do médico. Na ansiedade de fazer logo o parto, ele realiza uma cesariana no sufoco. A paciente descompensa de vez e morre.

Viomundo – Cesariana aumenta o risco da gestante com DHEG?
Alaerte Martins – Se não estiver sulfatada, sim.

Viomundo – O que significa sulfatar?
Alaerte Martins – Equilibrar a pressão arterial da gestante, dando-lhe sulfato de magnésio. Suponhamos que a pressão foi a para 20 por 15. Cesárea feita com esse nível pressório, a gestante “empacota”.
Por isso, primeiro, tem de sulfatá-la, para reduzir a pressão arterial. Estabilizada, escolhe-se a via do parto: cesariana ou normal, se ela tiver condições de fazê-lo.
O tratamento da DHEG em si consiste em retirar a placenta que envolve a criança. É essa membrana que, em algumas mulheres, eleva muito a pressão arterial, causando pré-eclampsia e eclampsia, que é quando já está em coma e pode morrer. Porém, se a placenta for retirada sem a paciente estar sulfatada, ela vai morrer do mesmo jeito.

Viomundo – Quais são as causas de hemorragia?
Alaerte Martins – Por exemplo, placenta fora do lugar. Essa mulher pode ter hemorragia durante a gravidez e já passar a ser gestante de risco, o que exigirá mais consultas.
A hemorragia pode ser pós-parto simplesmente porque o útero não se contraiu. Por isso, quando ocorre essa hemorragia, a mãe tem de ser levada logo para o hospital. É fundamental que tenha profissional habilitado a fazer massagem uterina, para o útero contrair. E se não resolver, tem de se recorrer até à histerectomia (cirurgia para retirar o útero), para garantir a vida dessa mulher. Às vezes a simples administração de sangue numa mulher que está com hemorragia pode provocar um choque. Aí, ela morre não pela falta, mas pelo sangue mal administrado.

Viomundo – O aborto seria a quarta causa principal?
Alaerte Martins – Sim, em alguns lugares, a terceira. Às vezes até a primeira causa, como aconteceu em Salvador há 3 ou 4 anos. Detalhe: ¼ dos abortos são espontâneos. Entre as mulheres negras, metade dos óbitos devido a aborto é por aborto espontâneo.
A propósito, quando uma mulher chega a um hospital em processo de abortamento, ela é vista e tratada pela equipe de saúde como criminosa. Então, tanto o aborto quanto o tratamento são, em geral, cruéis e desumanos.

Viomundo – Por que acham que o aborto foi provocado?
Alaerte Martins – Com certeza. A discriminação é tão grande que só o fato de ela chegar com sangramento, eles já ficam em cima pressionando.
Por um acaso eu sou doutora, mas a minha irmã é balconista de loja, mal fez o primeiro grau. No ano passado, ela teve de fazer uma cirurgia de emergência por conta de um mioma. Ela passou o dia inteiro para ser atendida, todo mundo chegava de cara feia perguntando o que ela havia feito.
Eu já conhecia isso do relato de outras mulheres. Mas quando a minha irmã de sangue me contou o quanto foi maltratada, pude sentir que a discriminação é muito maior. As mulheres com suspeita de aborto são as últimas a serem atendidas, são tratadas como criminosas, inclusive aquelas que sequer o provocaram. Esse atendimento certamente contribui para que algumas morram.

Viomundo – Por que a mortalidade materna é maior entre as mulheres negras?
Alaerte Martins – Sem dúvida alguma devido à condição genética. Existem quatro doenças que são mais comuns na população afro-brasileira: hipertensão arterial, diabetes, anemia falciforme (ou doença falciforme) e deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (anemia mais rara e mais fácil de tratar). Pois essas doenças que são mais prevalentes na população negra são causas indiretas de óbito materno. Assim como as mulheres descendentes de italianos têm mais talassemia (outro tipo de anemia), que também é causa indireta de morte materna.

Viomundo – O racismo pesa na morte materna?
Alaerte Martins – Eu fiz uma pesquisa sobre morte materna no Brasil. Em cima dela, te digo: se um dia eu for parir, vou parir em Salvador. Aqui, no Paraná, a gestante negra tem 7,3 vezes mais risco de ir a óbito. Em Salvador, 3,7.
Explica-se. Aqui, no Paraná a nossa população negra é só 24%. Você chega num hospital, numa escola, a maioria das pessoas é branca. A nossa mente é seletiva. Vai atender o pacote, que é a maioria. E vai deixar para depois a minoria. Em Salvador, onde a maioria é negra, acontece o contrário. Primeiro, é atendida a maioria que é negra.
Isso não significa que o risco para as brancas seja maior em Salvador. O risco para as negras é que é menor.
O racismo e o preconceito estão tão incrustados em nós que as pessoas aprenderam a tratar as outras no pacote. E isso se reflete na mortalidade materna, na assistência à saúde, enfim. Primeiro, são atendidos os que são iguais, depois os diferentes.
Imagine na hora do aborto. As mulheres negras já são discriminadas. Em situação de abortamento, elas são mais discriminadas do que as brancas. Serão as últimas das últimas a serem atendidas, correndo maior risco de morte.

Viomundo – Influencia mais racismo ou a pobreza?
Alaerte Martins – Os dois caminham quase sempre juntos. Você pode ter condição genética para hipertensão arterial e não chegar a desenvolvê-la ou mantê-la bem controlada, se tiver diagnóstico e tratamento precoces aliados a acesso a serviços de saúde, alimentação adequada, etc. Por outro lado, se tiver baixa renda (menor acesso aos serviços, menos alimentação adequada), ela se somará à baixa escolaridade (menor nível de compreensão sobre si e sua saúde), contribuindo para o rápido desenvolvimento da doença, até a morte.

Viomundo – Como deve ser o pré-natal?
Alaerte Martins – É preciso que todas as mulheres grávidas brasileiras tenham acesso ao pré-natal. Isso se chama universalidade. É o primeiro pilar do SUS (Sistema Único de Saúde). O segundo é a integralidade, para não acontecer o que ocorreu em Curitiba há 3 anos. Tivemos cinco óbitos por infecção urinária, um atrás do outro.
Levamos um susto. Será que a mãe não estava fazendo exame de urina? Estava. Será que não havia antibiótico para tratar a infecção? Havia.
Nós fomos estudar. As cinco mulheres que morreram eram pobres e ninguém as encaminhou para fazer uma higiene dentária. E elas tinham infecções na gengiva. De que adianta dar antibiótico para o útero e esquecer que pode haver infecção na boca? Isso é integralidade da atenção à saúde. Quem trouxe esse conceito para o SUS foi o movimento de mulheres.
As mulheres são únicas e um todo, não apenas útero. E os governantes insistem em não entender isso. Daí uma das razões pelas quais sou contra a Rede Cegonha. Todo mundo esperava que a presidenta Dilma fosse melhorar – e muito – a saúde da mulher como um todo. Em vez disso, veio um pacote com a Rede Cegonha, inclusive com esse nome horrível.
Para salvar todas as negras e as descendentes de italianos é indispensável que façam no pré-natal a eletroforese da hemoglobina, que é o exame para saber se têm anemia falciforme ou talassemia.
Não adianta fazer um pré-natal completo para elas só pensando na universalidade. Tem de se pensar na especificidade que essas duas mulheres têm. Ou seja, a possibilidade de terem essas doenças genéticas.
Equidade é tratar os desiguais de modo diferente. É saber que todas as mulheres não são iguais para serem colocadas num pacote. Tem de ter o pré-natal para todas. Mas tem de ter integralidade, mas principalmente especificidade, de acordo inclusive com o tipo de atividade profissional de cada mulher.

Viomundo – O que acha dos R$ 50 previstos na Medida Provisória 557 como auxílio-transporte às gestantes?
Alaerte Martins – Quando soube que a MP 557 previa R$ 50, fiquei saltitante. Tinha certeza de que era o retorno do pagamento do SisPreNatal (Sistema de Acompanhamento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento) às Secretarias Municipais de Saúde, que são as responsáveis pela atenção à saúde das gestantes, inclusive pelo transporte quando necessário. Seria uma forma de retomar o financiamento e monitoramento do pré-natal como um todo, principalmente das gestantes de alto risco.
Caí do cavalinho, quando vi o absurdo que é dar esses R$ 50 para a mulher, responsabilizando-a por algo que já é direito dela. Desde a Constituição Federal de 1988 e a consequente implantação do SUS, a responsabilidade de transportar a gestante no pré-natal é do gestor municipal.

Viomundo – Por favor, explique melhor essa história do SisPreNatal e dos R$ 50 que eram pagos às secretarias municipais de saúde.
Alaerte Martins – O SisPreNatal é um sistema informatizado de monitoramento da qualidade do pré-natal. Possibilita acompanhar cada gestante cadastrada até a consulta do puerpério, preservando o sigilo dos dados.
Até 2009, o governo pagava às secretarias municipais de Saúde gestante R$50 por gestante, sendo R$ 10 para cadastrá-la no primeiro trimestre de gravidez. E os R$ 40 restantes, para realizar seis consultas de pré-natal (no mínimo), uma consulta até 42 dias de pós-parto, vacina antitetânica e solicitar todos os exames básicos preconizados: tipagem sanguínea, hemoglobina e duas baterias de VDRL (teste para sífilis), urina e glicemia.
Em 2009, houve mudança na forma desse pagamento, que foi transferido para o Piso da Atenção Básica (PAB). O valor do PAB foi aumentado na época. Mas perdeu-se ao não possibilitar a visualização dos R$ 50 do SisPreNatal. Muitas secretarias municipais de saúde deixaram então de alimentar o SisPreNatal. E principalmente desvalorizou o SisPreNatal.
Eu pensei que estávamos tendo esse recurso de volta para tratar melhor todas as gestantes e identificar as de alto de risco. Mas não foi o que aconteceu. Infelizmente, o auxílio-transporte é uma grande decepção. Perdemos em 2009. E na portaria 1459, de junho de 2011, que institui a Rede Cegonha, só temos garantido o retorno do pagamento de R$ 10 do cadastro, e ainda fundo a fundo, o que dificulta o monitoramento e consequentemente o interesse do gestor. Cadastrar e não acompanhar — monitorar, fazer busca ativa ou o nome que quiser neste país continental –, não reduzirá a morte materna, pois a gestante é que terá de se cuidar.

Viomundo – Por que considera os R$ 50 reais um absurdo?
Alaerte Martins – Se a mulher mora em município qualquer Região Metropolitana de São Paulo, Curitiba ou Belo Horizonte, por exemplo, ela é atendida na Unidade Básica de Saúde (UBS), perto de onde mora. E quando precisa de transporte para chegar até um centro de referência é a UBS que vai trazê-la.
Já em Doutor Ulisses a situação é bem diferente. Lá não tem transporte coletivo. Portanto, os R$ 50 reais não vão ajudar a pagar o transporte para consultas normais. Lá, o parto é feito por parteira em domicílio. Se a mulher precisa ir a um centro de referência, a cidade mais próxima é Cerro Azul, onde vai ser atendida por uma parteira hospitalar, que é uma auxiliar de enfermagem. Óbvio que lá não tem obstetra 24 horas por dia. Depois, ela tem de andar mais 100 quilômetros para chegar em Campina Grande do Sul, que é onde tem maternidade. E não se consegue táxi com menos R$ 200 para ir de Doutor Ulisses a Campina Grande do Sul.
O que a mulher de Doutor Ulisses vai fazer com esses 50 reais? Nada! Se é difícil para a mulher de Doutor Ulisses arrumar um táxi, como vai ser para arrumar uma canoa aquela que mora lá no meio da Amazônia?
Ou seja, para algumas mulheres esse dinheiro não serve, para outras é totalmente insuficiente. E o governo ainda transfere para essa mulher a responsabilidade pelo transporte, que é do município.
Para que servem então os R$ 50? Não consigo pensar em outra finalidade, que não fins eleitoreiros. Não é possível que um técnico que entenda minimamente de saúde pública tenha falado para presidenta Dilma dar esse dinheiro a essa mulher, pois não há o que fazer com ele. É um retrocesso.

Viomundo – Os R$ 50 empoderariam essa mulher?
Alaerte Martins – Em hipótese alguma. Isso é para comprar votos das mulheres mais pobres que acabarão pegando esse dinheiro. Acho isso indigno, até humilhante. A mulher não precisa dos R$ 50, ela precisa que o serviço público realmente funcione. E o serviço é que tem de ir atrás dela. Até porque tudo o que foi proposto até hoje pelo próprio Ministério da Saúde, é exatamente o contrário do que faz a MP 557.

Viomundo – Esses R$ 50 vão ajudar a reduzir a mortalidade materna no Brasil?
Alaerte Martins – Dificilmente. Pelo contrário. É inadmissível uma gestante minha lá de Doutor Ulisses ter de ficar responsável para chegar em Campina Grande do Sul ou Curitiba. É preciso alguém lembrar ao ministro Padilha e à presidenta Dilma que as que morrem são as pobres, as negras, as que não têm acesso. E com R$ 50 nenhuma grávida de Doutor Ulisses vai conseguir táxi para chegar a uma dessas cidades de referência, que têm a responsabilidade de cuidar dessa mulher e quando ela precisar, transportá-la; ignorar isso é querer que muitas mais morram de morte materna.
Depois da conquista desse direito humano à saúde e dentro dele, o pré-natal, a gente conseguiu a duras penas que as secretarias municipais se responsabilizassem pelo transporte, agora, com a MP 557, estamos retrocedendo.

Viomundo – Com os R$ 50 a MP 557 joga nas costas da gestante a responsabilidade pelo transporte até a maternidade. Não é arriscado?
Alaerte Martins – Esse é o meu temor. Meu medo inclusive é que possa acontecer alguma morte e, aí, sim, além do caso Alyne, tenhamos mais processos internacionais. Alyne não morreu por causa dos R$ 50. Não foi por falta de chegar. Pelo contrário. Ela peregrinou por vários lugares. O atendimento é que foi ruim. Se não melhorarmos, portanto, a qualidade do atendimento no pré-natal e principalmente a organização dos serviços, a mortalidade materna continuará sendo uma tragédia brasileira.

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FONTE: VI O MUNDO
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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Carnaval de Sabará é mágico, caseiro e descontraído


Não há o que pague o bem que me faz aquele fuzuê!
Fátima Oliveira
Médica – fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Sou fascinada por Carnaval e são João (leia-se quadrilha e bumba-meu-boi). E não sei dançar, para desgosto da vovó Maria, que dizia: "Moça que não dança não gozou a vida". Pode ser. Mas não aprendi, fora os treinos da valsa de formatura em medicina. Ah, sim, dancei, mas fiquei uma semana doente dos pés. O sapato era de "salto alto", o tal Luís XV! Tragédia total. Não sei andar de "salto alto"!

 Em suma, adoro pular Carnaval e brincar quadrilha, como se diz no meu sertão: Carnaval pula-se e quadrilha brinca-se. Não é o mesmo que dançar. A minha porção foliona desabrochou no ano seguinte à mudança para Beagá, idos de 1989, quando descobri o Carnaval de Sabará para levar as crianças, que eram "fominhas" pela folia. Às vezes até fico hospedada lá. Só em dois anos não fui.
Até conhecer o Carnaval de Sabará eu nem tinha ideia do que era pular Carnaval na rua!



 Graça Aranharua da cidade, Por genno Onde eu nasci - pra quem não sabe ou esqueceu, Graça Aranha, antiga Palestina, médio sertão do Maranhão -, criança inventava "Carnaval de lata", o único possível!
Havia apenas duas tradições carnavalescas, só para adultos: o "baile da sociedade", dos remediados do lugar, num salão qualquer, pois nem clube havia naquele cafundó; e o desfile, pelas principais ruas da cidade, das putas do cabaré do Derivaldo, vestidas a rigor: na seda! Saia curtinha pregueada, barriga de fora, sutiã de seda, cara com muito rouge e batom vermelhão cheguei. Um encanto brega! Desfilavam na tarde da terça-feira gorda. Sucesso total! Era comum, durante o dia, duplas de fofões fazendo graça pelas ruas. E mais nada!


Beto Novaes/EM/D.A Press- 15/02/2010sabará  A primeira vez que vi um Carnaval diferente, como aparecia na revista "O Cruzeiro", estava com 14 anos, quando fui estudar em São Luís (1965), pois as aulas começariam na semana seguinte ao tríduo momesco - era assim que se dizia naquele tempo -, então mamãe decidiu que passaríamos o Carnaval lá.

E a criançada
fantasiada, 
acompanhando os blocos, ao som das
marchinhas de bandinhas que
encantam serpentes...


Depois, já médica, morando em Imperatriz, "lugar morto para Carnaval’, anos 1980, não havia Carnaval de rua. Puro medo. Matadores de aluguel zanzavam por todo canto. Nos dois clubes da cidade, Tocantins e Juçara, havia matinês, vesperais e bailes - que eu quase nunca ia, pois gostava de assistir aos desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro, programa que não me apetece mais. Todavia, já fui daquelas que "varava a noite" e só dormia após a última escola passar, aquilo de que Luís da Câmara Cascudo disse tão bem: "O Carnaval de hoje é de desfile, Carnaval assistido, paga-se para ver. O Carnaval, digamos, de 1922, era compartilhado, dançado, pulado, gritado, catucado. Agora não é mais assim, é para ser visto".
 Aprendi a pular Carnaval com minhas crianças nas matinês carnavalescas do Juçara Clube. Era empolgante, desde fazer as fantasias da família, uma para cada dia, e a pulação em si. Mas foi em Sabará que me descobri foliona de rua. Qual é o encanto que tanto mexe comigo no Carnaval de Sabará?

 
 

É o ar de festa do povo do lugar e os homens vestidos de mulher! No centro histórico, nas três praças da muvuca, quase toda casa vira uma venda de água, refrigerante, cerveja e de alguns "comes"; mulheres idosas nas janelas pulando Carnaval dentro de suas casas, na maior animação; e a criançada fantasiada, subindo e descendo as ruas, acompanhando os blocos, ao som das marchinhas de bandinhas que encantam serpentes... E eu lá no meio da folia sinto que todo mundo está ali pelo lúdico da vibração. Em 20 anos, nunca presenciei uma briga.
Não há o que pague o bem que me faz aquele fuzuê!


 

 (DUKE)
Publicado no Jornal OTEMPO em 21.02.2012

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Não espero de Dilma nada além dos direitos possíveis nos limites da República burguesa


Fátima Oliveira

– E aí Dindinha, conte um pouco do sumiço da santa... Do que andou astuciando...
– Quem anda astuciando é Dilma, pois não?
– De certo modo, sim...
– Gente, vamos deixar conversa séria de lado porque hoje é carnaval e estamos aqui para esperar a Beija-flor passar homenageando o Maranhão e também Joãosinho Trinta, né não? E promete porque o título é por demais bonito: “São Luís - O Poema Encantado do Maranhão”.

Joãosinho Trinta como gari, na ala dos mendigos do desfile "Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia", de 1989 Joãosinho Trinta como gari, na ala dos mendigos do desfile "Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia", de 1989    
GOSPEL Foto/Imagem Jesus Cristo Mendigo será homenagem a Joãosinho Trinta neste Carnaval Noticia Brasil                                 
 [Cristo censurado de Joãosinho Trinta será reinventado na Marquês de Sapucaí 23 anos depois (Foto: Montagem Reprodução Internet/Agência Estado)]

– É isso mesmo Dindinha, mas não vou sossegar enquanto não souber por que saiu lá da Matinha de Dona Lô no dia 9 de dezembro e somente telefonou do aeroporto quando já estava pegando o avião. E ainda dizendo que estava bem, mas que iria virar lenda por uns dois meses. E o pior, virou! Pense numa agonia, pois foi a que vivi até o dia em que nos convidou para inaugurar a morada nova no Carnaval!
Pedro entrou na deixa: “E só telefonava para nós quando não estávamos em casa para dizer que estava tudo bem. Ora Dona Lô! Aí tem!”
– Tem o quê Pedro? Deixe de salamalaque, mestre! Sou batizada, vacinada, de maior e mando na minha semana! Queria fazer uma surpresinha pra vocês, só isso! Gostaram da casa? Pois isso não cai do céu. Passei dois meses inteirinhos cuidando dos detalhes finais do meu loft praiano... Gostaram da vista?
– Só não entendi pucardiquê resolveu querer um loft e não uma casa de praia... Bem, até compreendi. Uma casa na praia para quem não ficar o tempo todo nela, não é uma boa ideia, além dos gastos com vigilância... Optar por morar num prédio tem muitas vantagens... Ainda mais quando você pode transformar uma cobertura num loft duplex, como foi o caso aqui.
– Menino inteligente esse Pedro, viu Estela! Mas enfim, minha gente... Cadê as crianças Estela?
– Cadê? Já se entonaram na praia e ainda dizendo: “Dindinha agora acertou! Isso aqui é bem melhor do que a Matinha...” Já ganhou a netaiada, viu? Daqui pra frente, haja dinheiro para andar de avião de lá pra cá e daqui pra lá! Sei não se vou “guentar” isso não! Tá pensando em viver como agora, se dividindo entre quatro casas?
– Como quatro, Estela?
– Ora Pedro, vejamos. A da Matinha de Dona Lô; a da Chapada do Arapari; a da cidade e agora aqui na praia. São ou não quatro? Dindinha gosta mesmo é de folia, isso sim e ainda inventa de morar tão longe de mim...
 

foto

– Ela deve ter seus motivos Estela. Ainda mais que parece que não está morando sozinha aqui. Ou me enganei Dona Lô? Há uma espécie de escritório na área de serviço, que é um misto de uma pequena suíte com local de trabalho. Há roupas de homem no guarda-roupa...
– Pedro, se acalme! Há hora pra tudo, mas você é um xereteiro de marca maior... Já andou vistoriando tudo, increduincruz, êh, êh, viiiixe Maria! Nem esperou a hora do resto das novidades. Estava esperando Bernardo chegar para fazer as apresentações devidas. Mas já que deu na batida, vamos lá! Bernardo é médico e está trabalhando hoje.
“Mas que mané Bernardo é esse Dindinha?!”, emendou Estela já ouriçada e levantando da cadeira, com ar espantado.
“Sente-se Estela!”, esbravejou Dona Lô, tentando aparentar a maior calma do mundo. Estela obedeceu na hora.
– Bernardo é um médico que conheci quando estive aqui no último São João. É mais novo do que eu vinte anos. Como podem ver, não é um rapazinho, só que é mais novo do que eu. Engatamos um namoro e resolvi investir na relação... Aproveitar um dia de cada vez, enquanto der... Daí porque decidi ter um pouso por cá. Então fiz o loft na beira da praia. É o meu canto aqui, pra quando estiver aqui. Ele tem a casa dele e eu a minha, mas quando eu estiver aqui ele me fará companhia.
–...
– Está trabalhando hoje e deve chegar depois das 19:00. Está num pé e noutro pra conhecê-los. Espero que o recebam bem. É meu namorado. Quase um namorido... O homem que eu quero e amo no momento. Entendido?
– Um namorido da idade do Pedro?! Quêquisso Dindinha? Cadê o senso de loção?  Valei-me meu São José de Ribamar!
Caiu um silêncio sepulcral e quando Pedro falou, já foi introduzindo outro assunto...
– Em meio ao tisunami da paixão arrasadora tem tido espaço pra acompanhar a política?
– Óbvio, né Pedro! Tá querendo saber o quê? Mas antes, cadê as notícias lá de casa?
– Notícias de lá da Matinha e da Chapada, veja com Estela, que já se apoderou de tudo por lá ehehehhehehe... Foi pro aniversário de Dilma, que suas mulheres comemoraram no dia 14 de dezembro... Viiiiiiiixe, fizeram um baita Caussoulet da Dilma,  coisa fina que só vendo; também fomos pros festejos de Natal, com direito à Novena de Natal de Dona Celestina que, segundo Estela, que assistiu um dia, foi das mais bonitas... Passamos por lá o Ano-Novo, o Dia de Reis, com Ladainha do Menino Jesus, queima de palhinhas... Estela também recebeu o reisado em sua casa, tal qual fazia Donana e a senhora faz... Cesinha de burrinha do meu amo foi um sucesso total! Essa aí é a Dona Lô Segunda agora, iscritim...  Criou ela pra isso, não foi? Pois saiba que deu certo!
–...

– Muito bem, minha gente! Quanto a Dilma, eu estava muito preocupada com as coisas meia-bocas saídas do Ministério da Saúde, essa tal de MP 557, mas com as voltas que o mundo dá e as lutas das feministas de nosso país, acho que Dilma deu um aceno de bandeira branca ao indicar Eleonora Menicucci pra ministra da mulher.

No que Estela aproveitou pra dar um pitaco, embora parecesse estar no mundo da lua, por ter ficado azuada com a história da paixão de sua madrinha, que ela acreditava já ter dobrado o Cabo da Boa Esperança em matéria de sexualidade...


– É aguardar um pouco, né não Dindinha? Eleonora não é mulher de deixar nada passar em brancas nuvens. E tem apoio das feministas! E Dilma sabe, pois a conhece de longa data.  Acho que Dilma a escolheu a dedo! Estou mais tranquila agora, embora muito preocupada ainda. Mas enfim, Dilma precisa se desvencilhar das amarras conservadoras fundamentalistas que estão na base aliada do seu governo. Como eu não, mas não pode só ficar matando a pau o setor mais avançado. Porque só tem dado pau em nós desde a RedeCegonha. Um desassossego!




Ao que Dona Lô, meio sorridente, retrucou: “É saber dosar as coisas. Certo que não espero de Dilma nada além dos direitos possíveis para as mulheres nos limites da Repúlica burguesa. Acontece que ela não está conseguindo nem chegar nos tais limites! E o nosso papel enquanto sociedade civil é fazer a disputa, pois do ponto de vista ideológico o governo Dilma ainda é um governo em disputa!

–...
– Bem, minha gente, vamos agora ao que interessa ao Pedro: comida! Eu e Bernardo contratamos um bufet que vai nos servir um jantar de degustação de frutos do mar à moda de São Luís, desde casquinha de caranguejo, de siri, camarão de vários tipos, sim, fritada de camarão também; pescada, meu peixe serra frito não pode faltar... Por aí! Começando às nove da noite e encerrando quando o desfile da Beija-flor terminar...


 (Peixe serra frito)

Pedro, não se aguentando mais emendou: “Isso quer dizer que... teremos de tudo um pouco, não é? De lamber os beiços, viu Dona Lô?! Marrapá já estou amigo desse Bernardo, êpa!”  
 
São Luís, 19 de fevereiro de 2012

 
"São Luís - O Poema Encantado do Maranhão"
Autores: J. Velloso, Adilson China, Carlinhos do Detran, Samir, Serginho Aguiar, Jr. Beija-Flor, Silvio Romai, Hugo Leal, Gilberto Oliveira, Ricardo Lucena, Thiago Alves e Romulo Presidente
Intérprete: Neguinho da Beija-flor

Tem magia em cada palmeira que brota em seu chão
O homem nativo da terra
Resiste em bravura
A dor da invasão
Do mar vem três coroas
Irmão seu olhar mareja
No balanço da maré
A maldade não tem fé sangrando os mares
Mensageiro da dor
Liberdade roubou dos meus lugares
Rompendo grilhões em busca da paz
Na força dos meus ancestrais
Na casa nagô a luz de Xangô, axé
Mina Jêje um ritual de fé
Chegou de Daomé, chegou de Abeokutá
Toda magia do vodun e do orixá
Ê rainha o bumbá-meu-boi vem de lá
Eu quero ver o cazumbá, sem a serpente acordar
Hoje a minha lágrima transborda todo mar
Fonte que a saudade não secou
Ó Ana assombração na carruagem
Os casarões são a imagem
Da história que o tempo guardou
No rádio o reggae do bom
Marrom é o tom da canção
Na terra da encantaria a arte do gênio João
Meu São Luís do Maranhão
Poema encantado de amor
Onde canta o sabiá
Hoje canta a Beija-Flor 
Foto: Montagem

Receita do Cassoulet da Dilma (de fava e carne-de-sol sertaneja), in Recadim de Guimarães Rosa pra Dilma: “Sapo não pula por boniteza, mas porque precisa”
Pucardiquê chama esse cozidão de caçulê, hein Dona Lô?