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domingo, 30 de janeiro de 2011

Luiza Bairros: Agora, Ministra



Maurício Pestana



Luiza Bairros, de 57 anos, é gaúcha de Porto Alegre e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU). Fez sua graduação em Administração pública e Administração de empresas, no sul, e pós-graduação em Sociologia, na Michigan State university, nos Estados Unidos. Moradora de Salvador há mais de 30 anos, tornou-se pesquisadora associada do Centro de Recursos Humanos/CRH, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fundou, em parceria com a Conferência Nacional de Cientistas Políticos Negros (uma organização norteamericana), o Projeto Raça e Democracia nas Américas, que promove a troca de experiências entre estudantes de pós-graduação afro-brasileiros e pesquisadores afro-norte-americanos. Luiza também foi professora de Sociologia da Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Em 2008, trouxe para dentro do estado da Bahia toda a sua experiência na luta contra o racismo e o seximo, à frente da Secretaria de Promoção da Igualdade, criada em 2006. Agora, como Ministra da Igualdade Racial do Brasil, Luiza assume um novo desafio, sem perder o olhar do movimento social.


A senhora é gaúcha e reside faz muitos anos na Bahia, com vasta experiência em estudar a questão racial no Brasil e no mundo. Em que a Bahia difere, e o que tem em comum no âmbito da questão racial com outros lugares?
A grande diferença na Bahia é o peso da população negra dentro da população total do estado. Algo que não é apenas numérico, mas que também influencia. Toda a cultura baiana bebe fundamentalmente da contribuição das culturas de matriz africana que vieram para o Brasil e para a Bahia. Essa é a grande diferença, pois também faz existir na Bahia uma minoria branca muito mais coesa do seu lugar, dos seus espaços de poder. Portanto, as consequências ou os efeitos do racismo sobre a população negra na Bahia tende a ser um pouco mais pronunciados do que em outros Estados.
Eu não estou querendo dizer que exista um racismo na Bahia que seja pior do que em outros lugares, e sim que determinadas condições históricas e culturais produzem racismos que são diferenciados. Não é à toa que causa muito espanto para muitas pessoas o fato de Salvador só ter tido até hoje um único prefeito negro, a cidade que é o centro da influência negra no estado. É como se, de certa forma, os negros da Bahia tivessem sido colocados no lugar de provedores e mantenedores de uma cultura diferenciada , mas que não necessariamente essa força possa ser traduzida em outros espaços da vida social.
O quadro tem mudado nos últimos anos e a tendência é mudar cada vez mais, a partir do trabalho dos movimentos negros, quando estes oferecem uma consciência crescente de que esse espaço e essa influência que se tem no núcleo que se chama baianidade precisa ser refletida em outros espaços, em outros lugares, inclusive na política, no comando da cidade e do centro.


A senhora milita há muitos anos na questão racial. Qual diferença em atuar como militante na questão racial e ser secretária do Estado, quais os principais embates?
Em primeiro lugar eu sempre digo uma coisa: o Movimento Negro Unificado (MNU) mantinha na sua carta de princípios algo que, para mim, continua valendo: o dever do militante é combater o racismo onde quer que ele se faça presente. Então, tanto faz estar no movimento social quanto na estrutura do Estado, pois o combate permanece como tarefa principal. O que muda, e bastante, é a forma de fazer as coisas, pois o Estado é todo regulado. Existem normas e regras para absolutamente tudo o que se queira fazer, e é preciso que todas as iniciativas que nós temos se submetam a elas. Nesse sentido, torna a nossa atuação menos livre, por assim dizer, pois não tem como propor e fazer coisas que estejam fora daquilo que o projeto político do governo coloca.


Mas não existe conflito entre ser governo e movimento social?
Absolutamente, não existe conflito entre ser militante e gestora à medida que se reconheça as diferenças entre esses dois espaços. Permanece como gestora o compromisso com os direitos do povo negro, permanece como gestora o compromisso no combate ao racismo, mas entre a atuação no movimento social e a atuação do governo o que acontece é uma tradução. Nós traduzimos no governo aquilo que os movimentos sociais propõem. Mas essa tradução, como se sabe, nunca é literal. Existem diferenças do ponto de vista do sentido, existem adaptações que precisam ser feitas para que aquela agenda seja entendida nos termos que o Estado opera. Eu sempre coloco como exemplo que o movimento social negro colocou muito explicitamente a questão do combate ao racismo. No Estado, entretanto, nós trabalhamos com a noção de promoção da igualdade, o que não é necessariamente a mesma coisa, porque em muitos sentidos é possível promover a igualdade entre brancos e negros sem que o racismo seja removido.


Dê um exemplo.
Os Estados Unidos. Não há dúvida que, ao longo dos anos, uma parcela significativa da população afroamericana conseguiu uma inserção digna na sociedade de lá, sem que o racismo tenha acabado. Existe, portanto, essa oportunidade de se reconhecer direitos, sem que a opinião média das pessoas brancas a respeito dos negros mude fundamentalmente. É um jogo bastante complexo, mas é preciso estar muito consciente dele para que não se frustre a nossa participação dentro do Estado com expectativas que, em determinados momentos, não podem ser atendidas.




 Quilombo, religião de matriz africana, juventude, segurança pública... Qual é a área mais delicada que o Estado tem que atuar na questão racial?
Todas as áreas apresentam algum nível de dificuldade. Das que você citou, considero as comunidades quilombolas. Nós tivemos uma facilidade relativamente maior de trabalhar essa questão na estrutura do Estado. No que se refere aos quilombos e se pensarmos no ponto de vista das diretrizes estratégicas da Bahia, as nossas ações relativas se inserem na diretriz da promoção do desenvolvimento com a inclusão social e, como existe uma população rural que clama e sempre clamou por uma inclusão mais efetiva aos programas sociais, de infraestrutura e de incentivo à produção, nós conseguimos, então, inserir as comunidades quilombolas dentro dessa outra agenda mais ampla. E os serviços e benefícios também chegam juntos. Existe sempre a possibilidade de emergirem conflitos de terra. Sempre há um fazendeiro disputando aquele espaço e isso é o que tem provocado uma lentidão maior nas possibilidades.


E as religiões de matrizes africana?
Aí a dificuldade é mais em função da novidade do tema. Especialmente no caso da Bahia, os terreiros de candomblé ou pelo menos alguns deles, sempre foram reconhecidos por quem estava no poder, mas eu acredito que naquele período o tipo de relação que se estabelecia era pouco respeitosa com essas religiões à medida que se davam em cima de uma relação de clientelismo. O que nós temos procurado fazer agora é eliminar esse viés clientelista dessas, em segundo lugar, evidenciar que a necessidade de se proteger direitos dos terreiros de candomblé é algo que se vincula à questão do racismo, ou seja, a intolerância religiosa é uma questão de racismo nesse caso, pois se trata de religiões que foram trazidas ao Brasil pelos negros. Em terceiro lugar, estabelecer um tipo de relação em que não haja interferência do Estado naquilo que exista de sagrado.No que se refere à questão da juventude e da segurança pública, aí sim temos uma dificuldade de natureza diferente das anteriores, porque não é voz corrente ou uma ideia completamente acentuada em nenhum governo, de que esses conflitos entre a comunidade negra e a polícia não tenham uma base de racismo na sua origem. Existe uma dificuldade muito grande de se compreender isso dessa forma, na verdade, existe uma permanente negação de que o racismo possa ser uma das causas principais do porquê os negros são abordados pela polícia de forma mais frequente nas ruas, do porquê os jovens negros são objeto de ações muitas vezes mais violenta da polícia. Esse é um campo que temos ainda um longo caminho para percorrer.
No dia de sua posse como ministra (01.01.2011)
Foto de Roberto Stuckert Filho (PR)







Sua geração chegou ao poder, principalmente com a Dilma. E, mesmo assim, nós negros não chegamos juntos. Nossa representação ainda não é representativa. Como a senhora analisa essa questão?
É muito difícil falar dessas relações entre negros e brancos sem colocar o racismo no meio. Eu nem sempre fico utilizando o racismo como uma espécie de bode expiatório, em absoluto. A verdade é que o movimento negro, ao longo das últimas décadas no Brasil, sempre atuou em um espaço que não foi totalmente absorvido como parte da política em geral que se fez pela democratização da sociedade brasileira.
Nós não fomos contados como parte desse esforço que a sociedade fez e ainda faz para que nós tenhamos um país efetivamente justo, onde as pessoas possam participar com seus talentos, contribuir com suas histórias e experiências. Então, não termos chegado ao poder, ao mesmo tempo em que a geração de militantes brancos chegou, é em parte explicado por isso. Nós fizemos parte de um espaço de atuação política sem que se fossem feitas ou produzidas alianças de maneira que pudéssemos ser vistos como parte da solução no Brasil e não como parte dos problemas. A maior parte do tempo da nossa militância foi gasta e investida no sentido de provar para outras pessoas a legitimidade da nossa luta.


"O movimento social negro colocou muito explicitamente a questão do combate ao racismo. No estado, entretanto, nós trabalhamos com noção de promoção da igualdade.  O que não é necessariamente a mesma coisa porque em muitos sentidos é possível promover a igualdade entre brancos e negros sem que o racismo seja removido".








Luiza Bairros - Ministra da SEPPIR
Foto de Manu Dias/AGECOM


E quando a senhora acha que conseguimos isso?
Em 1988, naquele processo do centenário da abolição, em que eu considero que a questão racial ganhou debate público, efetivamente. Edson Cardoso escreveu um trabalho naquele período analisando a imprensa brasileira e os principais jornais do país. É muito importante observar como nos editoriais e nos artigos que saíram durante aquele ano, nós do movimento negro não éramos nomeados. Éramos referidos como alguns setores, alguns grupos, mas não se dizia que existia um movimento negro.


Então, esse não reconhecimento do movimento negro como interlocutor político válido no Brasil provoca esse déficit que ainda temos?
Acredito que sim, mas penso que a tendência é que essa invisibilidade diminua. Ao mesmo tempo em que coloco isso, reconheço outras coisas. Nós temos nos governos estaduais órgãos como a SEPROMI, na Bahia, o que denota o fato de que, nessas discussões de qual é o papel do governo e quais são as ações prioritárias, as nossas questões de um certo modo têm que entrar e são contempladas. Isso está expresso nos planos plurianuais de vários governos, algo impensável até pouco tempo atrás. Está presente no próprio debate do Governo Federal quando da criação da SEPPIR, não há dúvida com relação a isso. Agora, o que nós precisamos é potencializar todos esses espaços, o da SEPROMI inclusive, para que possamos nos debates das prioridades e nas decisões (às vezes, até quase diárias) que se tomam dentro do governo do Estado, que se leve em consideração algo que para nós é um princípio: o da promoção da igualdade.


Qual foi o seu principal desafio como secretária de Estado?
Esses são os primeiros quatro anos de existência da secretaria sem que nós tivéssemos um modelo a seguir. Porque ela foi, diferentemente de outros lugares e do próprio Governo Federal, criada para atender tanto a promoção da igualdade racial como as políticas para as mulheres. Então, juntar em um mesmo espaço essas duas agendas enormes é um desafio permanente. Especialmente no caso da Bahia, implica em fazer também outro tipo de esforço para quebrar certa tradição, pois quem trabalha com igualdade racial não fala da mulher negra e quem trata de políticas para as mulheres tampouco trata de mulher negra também.
Quando se fala nos negros, em geral, são sempre os homens, e quando se fala nas mulheres, em geral, são sempre as mulheres brancas. Então, esse esforço de falar em políticas e a necessidade de incluir as mulheres negras, de falar e fazer em questão da igualdade racial, inclui, necessariamente, mulheres, homens, negros, crianças... Foi extremamente desafiante. Outro aspecto que é muito pouco observado é que essas agendas novas que trazemos para o governo demandam um tipo de profissional que, geralmente, não existe dentro do governo ou existem em poucos números.


O que de mais importante e palpável para a população o órgão que a senhora dirige pode oferecer?
As pessoas ou os grupos para os quais as políticas públicas se dirigem não estabelecem departamentos na sua vida, suas necessidades em educação, em saúde ou trabalho. As pessoas vivem essas necessidades e essas demandas de uma forma conjugada, até porque a saúde que eu tenho vai determinar as minhas possibilidades como força de trabalho, vai determinar as minhas possibilidades como pessoa que estuda e quer ter acesso ao conhecimento. A minha inserção no mercado tem relação com o tipo de educação que eu tive e por aí vai. Do lado do governo, temos também que pensar nas dimensões da vida das pessoas como coisas interligadas, se quisermos que o resultado seja concreto na vida delas.

FONTE: Páginas Pretas da revista Raça Brasilhttp://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/150/paginas-pretas-agora-ministra-205527-1.asp
Maurício Pestana é presidente do Conselho Editorial da RAÇA BRASIL pestana.raca@escala.com.br
http://racabrasil.uol.com.br/


Ativista dos direitos humanos e dos negros, o cartunista Mauricio Pestana, 45, já tem 30 anos de carreira. Começou no Pasquim, como assistente de Henfil e espalhou seu trabalho por escolas e ONGs publicando livros como Manual de Sobrevivência do Negro no Brasil. Negro ele próprio, vê pouco espaço para as pessoas de pele escura nos meios de comunicação. Ele é presidente do conselho editorial da revista Raça Brasil, já publicou na Europa, entrevistou o presidente Lula e agora lança uma história em quadrinhos sobre a Revolução de 32.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Laurinha anoiteceu e não amanheceu...

Anúncio na revista de domingo do 'New York Times' (Foto: Reprodução)
Retrato de Dilma feito por Romero Britto é publicado no ‘New York Times’
Fátima Oliveira

O que mais deixou Dona Lô irritada e possessa foi que o acontecido a colocou na boca do povo para séculos e séculos sem fim amém, sem que ela tivesse nada a ver com a historia.
Era assim que ela compreendia o love story sucedido na Fazenda Matinha de Dona Lô, um causo em que o chamego da avó paterna, há quase meio século, virou a paixão da neta.
Os amigos tentaram dissuadi-la de assim pensar, mas ela parecia inconformada...
No dizer de Mãe Zefinha, dias depois quando chegou à fazenda, “Isso dá um rumanço, gente! Quaje igualmente o de Lampião e Maria Bonita no Paraíso*, né não Lô? É, Maria Bonita bém largou o marido prumode Lampião”.



Lampião e Maria Bonita, por José Lourenço


–...
– Certo que Lampião era moço. Mas isso num quer dizer nada quando se tem amor. Isso de idade, entendam bem! Coração num tem idade. Bate do mermo jeitim quando tá enceguerado. Muié, eu vim ficar uns dias aqui na Matinha mais tu, pra te distrair, que eu sei que tu nem tá com o juízo certo... Ô furdunço!





– Mãe Zefinha, deixe de converseiro besta! Tá falando demais em minha cabeça! Não quero mais nem ouvir falar nessa historia. Pra mim, chega! Passou do tamanho. Tô lá me importando se Zé Vaqueiro virou corno. Ou seja lá o que for. É lição pra ficar esperto. Desde que o mundo é mundo quem não dá asistência, abre espaço para a concorrência.




Lampião

Lampião e seu bando

Dadá, Maria Bonita, Lampião
E se pôs a relembrar. Quando chegaram da boiada Zé Vaqueiro ficou bêbado bosta, mas avisou à Dona Lô que iria beber até cair, comemorando o sucesso da boiada, sem nenhum estouro (rês desgarrada) e sem percalços de tipo algum.
“Pois vamos começar, Zé!”, disse-lhe Dona Lô, acrescentando: “Cesinha, traga uma pinga da terra, das boas, jazim! Quero molhar a palavra com Zé Vaqueiro”. Laurinha, que estava ao lado dele, o olhou com ar de reprovação, ao que ele respondeu dando uma piscada de olho todo lampreiro pra ela e gracejando com uma tirada de moda de viola:
“Aqui tem mulher bonita e cerveja gelada
Eu tô na balada, eu tô na balada...
Solte o grito na garganta, bate o pé rapaziada
Eu tô na balada, eu to na balada...
No meio dessa folia eu atravesso a madrugada
Eu tô na balada, eu tô na balada...
Eu tô na balada, eu tô na balada...” (Tô na balada, Teodoro e Sampaio).


Forró com Lampião e Maria Bonita
A cabroeira ao chegar ainda teve muita lida. Deu água ao gado antes de soltá-lo no pasto. Chegaram à sede da fazenda limpos, burnidos e cheirando mais que filho de barbeiro.
Quando os boiadeiros chegaram, as visitas também já estavam vestidas pro jantar. Era tanta gente conversando animada que parecia que aquele momento era um dos velhos tempos da fazenda, quando o Dotozim Felipe Tropeiro era vivo e chegava de alguma boiada. Por tradição, todo mundo quando chegava de uma tocação comia na sede da fazenda. Era uma espécie de banquete comemorativo.



Inácio Vaqueiro iria embora por volta das quatro da manhã, a tempo de pegar um vôo para Goiânia às sete horas. Ele comeu e bebeu pouco. Chamou a atenção de todo mundo, pois é conhecido como bom de garfo e de copo. Sim, faz barba com espuma de cerveja. Desde novo. Ainda cedo da noite chegou o “carro fretado” que veio buscá-lo. E ele pediu permissão para o chofer se arranchar na selaria até à madrugada, na hora da partida. “Há mais uma rede lá”, foi o que disse.
Lá pelas nove da noite, os boiadeiros se retiraram; as visitas também foram pra seus aposentos. A dona da casa também. E reinou o silêncio mais absoluto, onde só se ouvia os barulhos do mato ao redor da casa e aqui e acolá o cantar de grilos. Dona Lô foi despertada por uma zuada de carro, que a ela pareceu que saia da fazenda... E indagou: quem será saindo daqui agora? No mesmo momento o cuco da sala bateu três horas da manhã. “Será Inácio já saindo assim tão cedo?”

– Você ouviu Gracinha? Parece zuada de carro saindo... Quem será a uma hora dessas? Será Inácio que já está se mandando? Cedo assim?
– “Divera” de ser ele mermo, pucardiquê os povo daqui num saiu nenhum. As chaves dos carros estão tudim pendurada ali...
– E o que faz acordada a uma hora dessas da madrugada?
– Vim beber água que nem Vosmicê.
– Oxente, mas eu não vim beber água! Acordei com a zuada da partida do carro...
– Pois agora vá dormir, senhora, o dia amanhã será muito comprido...
– Como assim? Pucardiquê?
– Nada!
– Tá escondendo alguma coisa Gracinha? Viiiixe, até Cesinha acordado? Aí tem!
– Vá dormir senhora, descanse. Ainda são três horas da manhã. Deixe os povo dormir. Se aquiete. Se ficar zanzando por aí vai é acordar as visitas tudim...
– Tô indo, mas ainda acho que você está escondendo alguma coisa. Não quer dizer, então não diga, mas meu sentido é que está com alguma treta.
E coçando a cabeça voltou para o seu quarto, mas antes falou: “Ô Gracinha, sei que você está morta de cansada, mas meu povo vai embora na quarta-feira. Tem mais só dois dias de furdunço por aqui, depois calmaria...”
Quando Zé Vaqueiro acordou a manhã já ia alta e, espantado com aquela gentaiada toda sentada na porta de sua casa, foi logo dizendo: “Ô Laurinha, cadê minhas botas muié, c’os diachos! Drumi demais; preciso ver as coisas; e como que tá o gado novo. Trás mi’as botas muié! Ô Laurinha, mi’as botas ligeirim, muié!”
– ...


Porteira, Hélia do Lírio
Dona Lô, que estava sentada num banco em volta do pé de manga, levantou-se rapidamente e subiu o batente da porta falando: “Tem mulher sua aqui mais não Zé Vaqueiro! Ela se foi no rastro da boiada! Laurinha se perdeu, como diria mamãe; caiu nas abas do mundo com Inácio Vaqueiro, com menino e tudo. Tá sendeiro Zé Vaqueiro e corno também!”
E ele, meio atordoado, esfregando os olhos, foi saindo porta afora e, espantado com aquele tanto de gente no terreiro de casa, como se não tiversse compreendido o que sua patroa disse. Só deu conta de perguntar: “Morreu gente aqui, mi’a gente? Quem foi? Cadê mi’a muié, meus fii, mi’a sogra e meu sogro? Quem foi pra a cidade dos pés-juntos?”
– ...
– Digam, mi’a gente! Pucardiquê esse horror de gente aqui? Arguma disgraça se assucedeu, na certa! Só pode! Esse tanto de barão em casa de pobre...
–...
– O que assucedeu, mi’a gente?
– Não faça de conta que não ouviu o que eu lhe disse Zé! É aquilo mesmo que você ouviu. O rastro da boiada, sobrou pra você, Zé! Você não está mais bêbado, só ressacado. Olhe bem pra mim, aqui em meus olhos: Laurinha foi embora com Inácio Vaqueiro! E levou seus três filhos! Eu sei que é doído e parece visagem. Mas aconteceu. Comprendeu bem?
Depois daquela fala, caiu um silêncio em que se ouvia as moscas zunindo. Ele, Zé Vaqueiro, sentiu que lhe faltou chão. Sabia que naquele momento todos os olhos estavam cravados nele. Mas ficou calado, como que a absorver aquelas palavras... Será que tô sonhando, mi’a gente? Estou tendo é pesadelo. Foi o que pensou...
– Fale alguma coisa homem de Deus!
–...
– Fale, Zé Vaqueiro!

Casa de roça, Hélia do Lírio
– Falar o quê Dona Lô se eu num acredito no que a patroa diz? Deixe de brincadeira de mau gosto, senhora! Ô Dona Marta! Dona Maaaaaaaaarta, cadê Laurinha?
E foi entrando na casa com ar de louco, com as mãos na cabeça. Mas Gracinha atravessou no meio, segurando-lhe os braços, sugigando-lhe o corpo como a ampará-lo, querendo trazê-lo de volta à dura realidade... E falava alto: “Calma Zé! Isso não é nenhuma surpresa. Mais cedo ou mais tarde tu sabias que ia acontecer, meu irmão!”
De repente vários homens agarram-no, tentando levá-lo rumo ao quarto, mas ele começou a espernear e só disse: “Ô muié ruim, sô! Fiz de um tudo pra ela e o que arrecebo é galho! Vou atrás dela nem que seja nos quintos dos infernos! Eu mato aquela peste! Num vou é ficar desmoralizado! Como pode u’a muié trocar um home viçoso que nem eu por um mulambo de homem como Inácio Vaqueiro, que tem idade de ser bisavô dela?”
“Dinheiro Zé! Laurinha é doida por dinheiro! Ou tu vais é dizer que num sabe?” Falou Gracinha quase gritando, para espanto de todos. “Queta Zé Vaqueiro! Inté parece que é o primeiro corno do mundo. Né não, bichim! Ser corno ficou mermo foi pra home, sô!”
E Cesinha, não perdeu a deixa: “Mata ninguém, não Zé! Quer ser preso, cara? Olha a Lei Maria da Penha, não! Foi-se o tempo em que homem matava mulher igual se mata passarinho, e ficava por isso mesmo, sô! Zé Catraca matou Dona Doca e tá lá nas Pedrinhas. Achou que ia ficar palitando os dentes e arrotando brabeza por aqui. Oh, tá é engaiolado lá nas Pedrinhas! Onde tu andas com a cebça pra achar que depois que Dona Lô voltou pra cá cabra olha ao menos atravessado pra mulher? Pode andar errada, dando nas quebradas que nem Laurinha, que ela protege!”




Dona Lô ao ouvir o que disse Cesinha, falou com dedo em riste: “Calado, Cesinha! Depois vamos conversar no reservado, viu seu atrevido machista?”
Enfim, o que sucedeu é que as suspeitas de Gracinha de que aquela alma queria reza se confirmaram. Tanto ela quanto Dona Lô, durante a boiada, perceberam que Laurinha e Inácio Vaqueiro estavam de treta. Desconfiaram, mas não tinham certeza, principalmente porque ele tinha 78 anos e ela apenas 25. Quer dizer que ele então tinha 53 anos a mais que ela. “Mas está montado na bufunfa, gente! Dizem que Inácio Vaqueiro é homem possuidor de mais de cinco mil cabeça de gado!” Foi o que murmurou Mariá, até então de boca fechada, mas disparou a falar: “E ainda sequestrou os filhos do coitado do moço!”
– E ele tem família? Indagou dr. Jairo.
– Muitas. Dizem que casado, casado mesmo já foi umas três vezes, no mínimo! Tem neto mais velho que Laurinha! Mamãe, Donana, é madrinha do primeiro neto dele, Inacinho, que é até médico lá na Imperatriz. A primeira mulher de Inácio Vaqueiro, morreu faz é tempo; a segunda não aguentou as bebedeiras dele e o largou. A terceira também morreu. Ao todo, ele tem quatro filhos, todos muito bem de vida. É gente que enricou. Mas o velho não pode ver um rabo de saia novo que engatilha a postola velha; se ainda atira, não sei. E Laurinha, que não é besta, agora vai se aproveitar da vida boa que ele pode lhe dar...
– Ora se vai! Eu fiz foi ler ontem à noite a escritura de uma casa – casa casa mermo gente – num canto chamado Setor Coimbra, em Goiânia, que o véio comprou e botou no nome dela, viu Dona Lô! E um documento de cartório onde ele passou pra ela cem cabeça de gado nelore, só novilhas, que estão sob guarda da Fazenda Campo Verde, que é a dele, lá no Goiás... Ou é no Tocantins? Sei direito, não! Mas é para aquelas bandas.
Todo mundo atento, de olhos vidrados em Cesinha...
– Deixe de...
– Né converseiro besta não, viu Dona Lô! Ele trouxe os documentos para convencer Laurinha de cair nas abas do mundo com ele. Vivia rodeando-a faz é tempo. Atentou a coitada tanto que ela caiu na conversa do véio... Ali sabe e tem com quê conquistar uma mulher!
– Mas Cesinha... Pucardiquê guardou segredo, hein?
– Segredo é pra guardar, né não? A senhora não fala sempre isso? Aprendi. Com a senhora! Ora, quem tinha de botar sentido nela, quer dizer, em Laurinha, era Zé Vaqueiro, que não botou. Pucardiquê eu tinha de me importar? E depois, a bichinha era doidinha pelo véio. Dizia que aquilo sim é que era homem! Sabia botar ela pra gemer... Zé Vaqueiro saia pra vaquejar e o véio aproveitava pra botar ela pra gemer. Por isso ele só se hospedava no quartinho da selaria. Tão de chamego faz é tempo! Ainda tem mais coisa pra acontecer, escute o que lhe digo Dona Lô! Vá assuntando...
– Jesus, me abana! E me segure! Calado, caludo Cesinha! Vá com essa conversa imoral pra lá!
– Se queria saber, tô dizendo! O véio ainda dá no couro...
– Cesinha, nem um pio a mais! Está bem? Gracinha, fique com Cesinha tomando conta de Zé Vaqueiro até os outros vaqueiros voltarem. Devem estar chegando. Viiiiiiiiiiiixe! Santíssima, vai ser um fuzuê quando souberem... Vou pra casa com o pessoal dando andamento no almoço, pois já devem estar com fome. Resolvo lá com Maria Helena... Fique aí prestando atenção em Zé Vaqueiro. Dou conta de me virar, não se preocupe...
– Precisa se virar não Dona Lô, tem comida pronta na geladeira, é só escolher o que vão comer... Ah, precisa fazer uma saladinha. Maria Helena está lá e sabe o que fazer. Ela é esperta e deixei as ordens com ela. Será que num seria bom mandar um portador na casa dos pais de Zé Vaqueiro para dar ciência do sucedido? Esse home num pode ficar sozinho, não! Capaz de fazer uma besteira...
– Está bem! Vou ver quem vai lá com Cesinha rapidinho enquanto providencio o almoço...
Cesinha, com ar irritado, disse: “Buscar pucardiquê? Deixa acontecer logo tudo que tem de acontecer pros velhos fazerem só uma viagem”...
Dona Lô saiu dali de mutuca na orelha... Achou alguma coisa de estranho, embora não soubesse do que se tratava, na atitude de Gracinha com Zé Vaqueiro. Uma intimidade exagerada da parte dela para com ele... E de repente decidiu: vou investigar Cesinha. Ele sabe de muita coisa. É tentar arrancar alguma coisa que ele sabe. Se houver alguma coisa, o danado, que é mais esperto do que parece, acabará soltando... Já disse, assim como quem não quer nada que “ainda tem mais coisa pra acontecer”. Que diacho será?
Os pais de Zé Vaqueiro vieram. O almoço não foi nenhum cinco estrelas, mas de uma frugalidade deliciosa: além do arroz com feijão, havia bife, banana frita e uma saladinha de tomate com alface, mas todo mundo comeu bem. De sobremesa, ambrosia com sorvete de creme. E e a conversa foi animada. O assunto? A cornice do vaqueiro. Mas Dilma Rousseff, a presidenta também, é óbvio!

Divulgada a foto oficial da presidenta Dilma


– Lô, sua presidente é melhor que a encomenda. O estilo dela é vapt-vupt...
– Ah, é desembargador? Pucardiquê?
– De tudo! Dou o maior valor pra gente de ação, que não guarda pra amanhã o que pode fazer hoje...
– Ah, é? Destrinche, pelo amor de Deus!
– Não há muito a destrinchar, é prestar atenção nas atitudes dela. Estamos diante de um governo de ação, no rumo do falar pouco e fazer muito. É, acho que é isso mesmo!
A recente normatização do uso do de software público na Administração, que está no Diário Oficial da União, agora dia 19 de janeiro, fala por si. É certo que é um caminho que vinha sendo trilhado pelo Governo Lula, desde o começo, agora toma uma forma, digamos, definitiva.**

Fazenda Matinha de Lô, Chapada do Arapari, 26 de janeiro de 2011


A última parada: Grota do Angico, local onde Lampião e Maria Bonita foram mortos

“Lampião, depois de muito atormentar e matar pessoas, é morto. Passa então a vagar por diversos lugares, inclusive o inferno, pelos quais é constantemente recusado. Decide ir ao céu e, a pedido de São Pedro, é encaminhado a um novo Paraíso por Jesus Cristo. Lá, roga ao Padre Cícero pela presença de Maria Bonita, que lhe aparece como companhia. Tudo se acaba quando o casal infringe a proibição de tocarem no cajueiro e comem de seu fruto, oferecido pelo Satanás disfarçado em serpente. Ambos são expulsos do Éden e têm seus destinos ignorados.”www.fundaj.gov.br/geral/pesquisa%20escolar/CordelAcervoFundaj2008.pdf

Casa de Maria Bonita em Malhada da Caiçara, em Paulo Afonso (BA). Foto: Glauco Araújo/G1


* "Lampião e Maria Bonita no Paraizo do Édem, tentados por Satanás", de João Antonio de Barros (Jotabarros) – nasceu em 1935 no município de Glória do Goitá em Pernambuco. Em 1973 transferiu-se para São Paulo onde residiu até a sua morte, no início do presente ano (2009). Vivendo exclusivamente da arte popular, Jotabarros, que se tornou famoso graças à xilogravura, atuou também como repentista e poeta. Muitos de seus folhetos servem como registro do olhar do migrante nordestino sobre a cidade de São Paulo, retratada, com freqüência, em sua obra: “A metamorfose é só em São Paulo” e “Bebê diabo apareceu em São Paulo”

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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O choro inútil da aposta de Dilma como "o bode na sala"


O artista plástico Marcus Baby divulgou em seu blog, o mais recente trabalho: A boneca da Presidente Dilma Rousseff.
 DUKE
Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br

"Dilma e o bode" é o título de uma matéria da "The Economist" de abril de 2008, baseada na chamada "parábola do bode na sala", citada "pelo consultor político Bolívar Lamounier para dizer que Lula poderia estar estimulando a candidatura de Dilma agora para depois oferecer outro nome: ? Conhece a história do homem que coloca um bode na sua sala de estar e depois se oferece para negociar com você para tirá-lo de lá?".
Num exercício furado de futurologia, a mesma matéria disse: "Ela ainda não é uma candidata viável para 2010"; todavia arrematou: "É impressionante de perto, misturando charme pessoal, firmeza e um evidente controle de detalhes técnicos". A imprensa nacional adotou taxá-la de "o bode na sala" e apostava que, quando a campanha entrasse na reta do pra valer, a candidatura da "poste" seria retirada! Em 3 de novembro de 2010, Dilma Rousseff foi eleita a primeira presidente do Brasil.

Dilma é o "bode na sala"

Erraram a revista e o consultor. Subestimaram criatura e criador. Os adversários perderam a eleição e continuam com o discurso falacioso e não republicano de que a presidente é "bode na sala". Ora, me compre um bode!
Há várias versões sobre a origem da expressão "bode na sala". Todas têm em comum o fato de que um homem, exausto com as queixas familiares sobre as dificuldades decorrentes da escassez de dinheiro, foi aconselhado a levar para a sala o bode que criava em seu quintal. A vida difícil ficou caótica. Além do balido impertinente, os dejetos e a fedentina empestando tudo! Foi um alívio quando ele devolveu o bode ao quintal.
Bode não é só estorvo. Também simboliza segredo. Explico-me. Em Graça Aranha (MA), meu torrão natal, não havia Correios, banco, luz elétrica e nada que cheirasse a progresso até meados de 1970; entretanto, havia uma loja maçônica. E os maçons eram chamados de bodes. Papai aspirava a ser maçom. Todavia, a família não permitia (leia-se: minha avó e meu avô maternos e mamãe, em ordem decrescente de poder sobre ele).
Curiosa, indaguei por que ser maçom era igual a ser bode. Papai explicou-me de um jeito simples e inesquecível: "Compreendes o que tua avó diz ao falar: "Justo que só boca de bode?" Murmurei: "Hem-hem (linguajar maranhense que, dependendo do contexto, pode significar sim). Bode tem a boca fechadinha". Papai riu e continuou: "E não fala! O bode na maçonaria quer dizer segredo. Daí o apelido de bode para o maçom".
Encontrei um trecho da lavra do maçom José Castellani relatando que, em torno do terceiro ano depois de Cristo, os apóstolos que pregavam o Evangelho na Palestina "ficaram surpresos com o costume do povo judaico em falar ao ouvido de um bode (...)". Um rabino contou ao apóstolo Paulo que era "um cerimonial judaico, cujo povo tem o bode como confidente, para expiação de pecados e erros". Durante a "Santa Inquisição", a maçonaria foi duramente perseguida pela Igreja Católica. Um dos inquisidores mais cruéis, Chasmadoiro Roncalli, declarou ao seu superior: "Senhor, esse pessoal maçom parece bode. Por mais grave que eu torne o processo de flagelação a que lhes submeto, não consigo arrancar de nenhum deles quaisquer palavras".
Em cena, o bode que fede e emporcalha a sala; o que guarda segredo; e o que quero vender... Tentaram colar o primeiro na candidatura Dilma como a sua alma. Não colou. Agora, aventam que ela é o bode na sala do seu governo! Talvez para funcionar como meteorologista, já que "bode, quando espirra, anuncia chuva".

25.01.2011
FONTE: www.otempo.com.br/otempo/colunas/?IdColunaEdicao=14091


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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A boiada é um evento cultural e político: “Presidenta Dilma, o gado pé-duro é coisa nossa, não permita que desapareça”...




Dina Vaqueira com Luiz Gonzaga (1976)
Vaqueira conta como desafiou Luiz ...


João Guimarães Rosa, acompanhando a Boiada
(Maio de 1952)
Foto: Sielo.Brasil
Ao descer na Fazenda Sabiá, por volta das seis horinhas, a Comitiva Matinha de Dona Lô foi recebida por uma saudação de aboios, som de viola e pipocar de foguetes. No ar, um cheirinho bom de queima do alho... Tudo cronometradinho, ao estilo Dona Lô.
Mal viu a patroa, Toco, o cozinheiro, foi logo dizendo: “Dona Lô, mudemos de ‘prano’... A janta vai ser carne fresca assada na brasa: churrasco de carneiro e de cabrito – e diz que ‘inda’ tem buchada de bode e de carneiro, cum fussura e tudo – oferenda de Seu Vicente, que não deixou que eu fizesse a janta conforme o combinado com Vosmicê!”
–...
– Ô véim invocado, sô! Foi logo dizendo: “De jeito maneira, quem arrecebe com muito prazer Dona Lô e sua comitiva é a Fazenda Sabiá, pois não? Guarde os teréns de cozinha da boiada pra usar na estrada! Marrapá, aqui é Vicente Campos quem arrecebe vocês, cum janta de fidalgo e café fornido bem de meanzinha, antes da partida”.
– Ora Toco, cê sabe, “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”. E juízo você tem de sobra, não é meu preto? Tá certo! Vamos usufruir da hospitalidade dele. Guarde o cardápio de hoje pra gente jantar na chegada na Matinha, né não? E o cardápio da Fazenda Sabiá é comida farta, dá pra um batalhão. Vamos a ela, pois não?
Eis que aparece Seu Vicente com sua esposa: “Ô Dona Lô, essa aqui é minha dona, a Almerinda, filha duns cearenses que moraram lá nas terras de Vosmicê por muitos anos e “Merinda” foi uns tempos sua ama... É, tomei ela de Vosmicê...
– Merinda! Mamãe falava muito em você, mas eu não lembrava...
– Claro Dona Lô! Vosmicê era neném de engatinhar quando fui ser sua ama. Donana é minha madrinha de batismo. Adepois me engracei de Vicente, que era vaqueiro lá na Matinha, onde fez o pé de meia que nos garantiu a vida até hoje. E sai de lá quando Dona Lô tinha uns dois anos, não mais... Aí, com as estradas tudo ruinzinhas, quase nunca saio daqui. E tombém num podia: era uma barrigada enfiada na outra.
Cangalha com caçuá
–...
– Tive quinze filhos, Lô! Vingou tudo. Tá tudo vivo. Tudo encaminhado na vida. Tudo doutor na cidade grande. Tem de doutor de gente, doutor de bicho, doutor dentista, doutor “adevogado”, de tudo quanto há no mundo! Coisa de Donana que levou primeiro os dois mais velhos pra estudar lá na Imperatriz, mía fía. Daí com esse adjutório dela e de Doutozim Felipe Tropeiro, que deu o pontapé, os dois primeiros tomando conta dos mais “piquenos” e nosso suor aqui da roça, formemos a fiarada toda, lá no São Luís!



– ...
– Agora graças a Deus que tu comprou esse gadim que prendia a gente aqui. Vicente é teimoso que só ele; quer ficar socado aqui, mas eu, não! Tanto fiz que ele aceitou vender o resto de gadim que tem aqui, graças a Santa Luzia. Fiz promessa. Ano que vem vou vestida de Santa Luzia pra festa dela lá na Matinha, que nunca mais fui adespois que casei. Quero ir pro São Luís, mía fía, dengar meus netinhos. Tenho muitos, Lô! Uns trinta e tantos. Perdi a conta. Já vou ter bisneto. Quero mais ficar nesse mato, não! Vou folgar na beira da praia, né mia fía?


Todo mundo percebeu a emoção que tomou conta de Dona Lô... As lágrimas escorriam copiosas...
– Abaixo de Deus, aqui pra nós é madrinha Donana. Tenho até um retrato dela ali, que mandei pintar, pendurado na parede. Ela é que nem u’a santa em minha vida.
– Pois Vicente, deixe de “embuança”, abra uma cerveja pra nós, sô! Pra vê se paga um tiquim do que me deve, por ter roubado a minha ama! E eu nem sabia! Se soubesse teria pago menos pela boiada, descontado o que me deve... Se encheu dos cobres. Tá montado na bufunfa, c’os diachos! Vai pegar uma fresca na praia pro resto da vida! Tá esperando o quê?
Foi risada geral...
– Pois é Seu Vicente, quero lhe dizer que vou botar o nome de Solta Vicente Campos, lá na parte da Matinha de Dona Lô onde vai ficar a boiada de gado pé-duro que lhe comprei. Sua insistência a vida toda em só criar pé-duro é admirável. Praticamente hoje em dia ninguém faz isso!
– “Quêquisso” Madame! Pucardiquê? Eu birrei no pé-duro porque é um gado menos “trabaioso”, “mansim” e quase que se cria sozinho, sem muito lero. Basta dar as vacinas, um salzinho todo dia um tiquim, e pronto! É deitar na rede, balançar e dormir... A gente dorme e o gado engorda, a gente dorme e o gado engorda... Fica tudo famoso que dá gosto, sem doutor veterinário. Num precisa de jeito maneira! Doutor de pé-duro é eu, que crio; e que labutei a vida toda com pé-duro! Criar pé-duro é assim, na maciota. Eita vida boa, siá!
– Pucardiquê? Explica aí pra ele Mariá...


Gado pé-duro no curral

Gado Pé-duro vira patrimônio cultural do Piauí

E a prosa foi demorada e cheia de risos, ao som da viola de Chichico, até Toco dizer: “O dicumê tá pronto peaozada!”
As mulheres da boiada (Dona Lô, Gracinha, Laura, Mariá, Helena, Sabrina, namorada do dr. Jonas, o veterinário) dormiram na casa de Merinda, que não teve acordo pra que elas dormissem “ao relento”, como ela disse.
– “Lô, aqui é um casão fía. Vem, espia!”.
E era! Mas o que mais chamou a atenção foi o tamanho dos dormitórios da filharada. O das meninas, que eram nove; e o dos meninos, que eram seis, cada um com as fileirinhas de camas de solteiros, tantas quase a perder de vista!
As boiadeiras ocuparam o dormitório das meninas e Merinda também dormiu com elas: “Ô Lô, tá sobrando cama, vou dormir aqui pertim de tu, tá bem fia? Lembrar do tempo em que cuidei de tu”. Dona Lô não resistiu e abraçou Merinda e começou a chorar no ombro dela...
Por volta das quatro da matina, acordou com Merinda saindo do quarto. Todas perceberam que era hora de levantar para ajudá-la no preparo do café da comitiva, juntamente com Toco, que já estava na cozinha quando elas chegaram lá. No terreiro da casa, os homens já estavam praticamente com tudo pronto para a partida.
Cada boiadeira se ocupou de alguma coisa e rapidinho saiu do moinho a massa de arroz e a de milho para os cuscuzes. Foi um farto e reforçado café mil estrelas, pois além do cuscuz de arroz e do de milho, havia ovos caipira cozidos e estrelados, batata doce cozida, leite e café à vontade.
Dina Vaqueira
Tesouro Vivo do Estado do Ceará
Café à mesa, enquanto os homens comiam as mulheres foram tomar banho num riacho que corria nos fundos da casa e se vestiram de boiadeiras, menos Gracinha e Laura, que estavam à paisana. Enquanto elas tomavam café, os homens encerravam os últimos preparativos para a partida. Foi quando então o galo cantou, os cachorros ladraram e o sol começava a dar sinais de que iria raiar...


Era cinco da matina quando o berrante explodiu no ar, agitando num primeiro momento, mas depois acalmando o gado preso. Um dos vaqueiros bradou: “Aêêêê, aêêêê queta vaca malandra! Vamos soltar, minha gente! Foi só ensaio, daqui papouco, depois da cantoria, é de verdade! Êêêêêêêêêêê... gado! Êêêêêêêêêêê... gado maaaaaaanso”.
O violeiro tirou as três músicas previamente combinadas: primeiro, “O menino da porteira”; depois “Promessa do Batistinha”; e, por último, “Disparada”.
Enquanto ele tocava e todo mundo tentava cantar, Dona Lô distribuiu para cada participante da boiada um cordão de ouro com duas medalinhas, também de ouro: as imagens de Nossa Senhora Aparecida e de Santa Luzia, dizendo: “Gente, boiadeiro e peão de boiadeiro da Matinha de Dona Lô só cruza o estradão com as duas santas no pescoço. Foram benzidas em Aparecida, ainda no tempo do meu bisavô. Chegando à fazenda, o cordão é devolvido, tudo bem?”
Ouça "Ali passava boi, passava boiada
www.oshomenspassaros.com/ali_passava_boi_passava_boiada.htm

E o show de viola foi encerrado com “Disparada”, cantada por Dona Lô, montada em sua égua Estrela Guia. E o show de viola foi encerrado com “Disparada”, cantada por Dona Lô, montada em sua égua Estrela Guia.
Zé Vaqueiro anunciou: “Vamo ensair o berrante, prestem atenção pra compreender bem os toques: vou fazer duas vezes cada um...
1. Toque de saída ou de solta....
2. Toque de estradão
3. Toque de rebatedouro (anunciando perigo)”.
“Agora, valendo a abertura da porteira...” E ao som do toque de solta do berrante, a boiada foi saindo do curral e caindo no estradão...

2a-boiada

À frente, puxando a boiada, o comissário da comitiva: Zé Vaqueiro, auxiliado por Cesinha, parecendo gente grande; na culatra: Dona Lô e sua trupe, puxada por um jumento com duas ancoretas de água pendentes da cangalha e um burro encangalhado, levando dois baús de couro, as bruacas, onde iam as louças da comitiva: pratos esmaltados, bule e canecas, também de esmalte para o café, garfos, facas e colheres – no dizer de Dona Lô, ali estavam as joias da comitiva.

Cangalha
Bruacas
Os comestíveis, na modernidade da presente boiada, estavam na caminhoneta de apoio, que em geral seguia na frente quando se aproximava a hora das refeições. Novos tempos para as boiadas, é bem verdade. Ah, o estandarte cutucando a presidenta Dilma adornava a charrete, onde Gracinha e Laura de Zé Vaqueiro estavam todas pintosas, no dizer do Velho Ananias, o mestre charreteiro.
– Só Dona Lô merminnha pra botar essas duas bruacas véias no lugar que carregou Donana! Decaí demais meu povo! Ô disgrota! Noutra Vosmicê não me pega mais, viu Dona Lô?



E caiu na risada: “Vumbora cavalo! Pegar a estrada! Pra casa! Pra Matinha de Dona Lô!”
Chegaram ao primeiro povoado: Ingazeira; depois Centro do Véi João; Fazenda Capim Santo; Onça Preta; Fazenda Capixaba; Canfístula...
Às onze horas da manhã, a primeira parada pro almoço. A boiada estava na estrada há seis horas. Toco, que foi na frente, na Svezinha com Pedro, marido da Estela, estava com o almoço pronto: carne-de-sol frita na manteiga; feijão sempre-verde com quiabo; e banana-sapa cozida. De sobremesa, goiabada, Made in Matinha de Dona Lô.
Foi estendida uma grande lona no chão e ali muita gente cochilou, enquanto outras descascaram laranjas pra todo mundo e jogaram muita conversa fora.
– Dona Lô, uma das coisas que ainda lembro da primeira vez que toquei boiada, eu estava com uns dez anos, era que Donana montava numa sela de... Esqueci o nome, mas era uma sela feminina...
Silhão - sela feminina
– Era uma sela de banda, Francisco! Exclusiva para mulheres... Sua mãe também tinha uma, lembra dr. Elpídio?
– Oh, se lembro! Se perdeu lá pela Matinha, há muitos anos. Acho que sim. Certa vez João queria por que queria montar no silhão da mãe dele. Tanto fez que deixamos, mas a caboclada começou a chamá-lo de baitola e ele se irritou tanto que chegou na casa fazenda no maior chororô...
– Ih, pai, nem fale nisso que carreguei esse trauma por muitos anos. Na verdade, hoje confesso, eu tive tanta raiva daquela sela que acabei cortando várias partes dela... Foi assim que ela se acabou. Mamãe descobriu, mas nunca contou pro senhor.
Silhão - sela feminina
Às 14:00, ao toque de um berrante de partida, a boiada voltou para a estrada. E seguiu no passo lento dos bois e na moleza da conversa de memórias. O tempo passava e a boiada seguia... De vez em quando um participante se aproximava da charrete, que andava atrás dos peões, e bebia água.



E passou Fazenda Novo Oriente; depois os povoados Baixa da Ema, Limoeiro, Centro do Gonçalão, Centro dos Carneiros, Cacimbão e Embaubal. Às 18 horas, o primeiro pouso: pro jantar e a dormida, nas imediações da Fazenda de Zé Alonso, que cedeu um pasto pra colocar e dar de beber o gado. A boiada andou 24 Km, bem puxados. Dali a 20 Km chegaria ao seu destino.
O jantar teve como cardápio arroz misturado com fava; lagarto e pernil de porco de lata; a sobremesa constou de doce de leite, Made in Matinha de Dona Lô, banana e laranja. Antes do jantar, foram consumidos dois litros de pinga da terra. E a cerveja durante a refeição foi à vontade, até acabar as duas grades, num total de 48 garrafas.



O converseiro rolou animado, com a peaozada contando causos de assombração de boiadeiros e boiadas, acontecidos e inventados. Inácio Vaqueiro era o que mais falava.
O violeiro Chichico e o sanfoneiro Zé Cafofo se revezaram na música até quase dez da noite, quando soou a sineta que era hora de todo mundo dormir... Era bonito de ver aquela redaiada armada nos galhos das árvores que nos davam pouso. É de admirar a habilidade dos peões para armar redes em árvores!
No dia seguinte, às seis da matina, depois do café com pão de alho caseiro e queijos variados esquentados no espeto, a boiada prosseguiu... No começo, silenciosa após os toques de partida do berranteiro. Depois a conversa fluiu bem, mas lenta, quase gutural...
Os homens pareciam entusiasmados com o gado pé-duro: “A raça pé-duro possui também outras qualidades: é dócil, sua carne é saborosa, o couro macio e resistente e o leite excelente. Segundo alguns criadores e técnicos é também muito menos susceptível a plantas tóxicas como o barbatimão e a erva-de-rato”.


Dr. Graciliano, o veterinário dos bichos de Dona Lô, tem o costume de tanger boi de mãos dadas com a namorada, cada um em seu cavalo. O quê deixa Gracinha irritadíssima! Sempre deixou. Olhando aquilo Gracinha pensou com seus botões: “Sujeitinho mais ‘infarento’, a cada boiada é uma nova namorada! Eita cabra femento, só anda cum muié debaixo do sovaco”.
E a boiada prosseguia no passo modorrento dos bois. Não parece, mas o ritmo da boiada pede silêncio para se ouvir a música da marcha bovina, que é bonita e calmante. Talvez seja por isso que a conversa é pouca. Todo mundo concentrado.
Mas Dona Lô parecia preocupada...



Depois da saída da Fazenda de Zé Alonso, passou Centro do Meio, Santa Rita, Lagartixa, Croatá, Fazenda Água Boa, Jenipapo, onde foi a parada para o segundo almoço da comitiva, às onze horas.
Degustaram carne de sol na brasa; feijão tropeiro, quibebe e goiabada de sobremesa. Parecia que todo mundo estava sonolento, de modo que quando Zé Vaqueiro propôs uma parada mais curta, porque estavam perto de casa e seria bom chegar ainda com dia claro, todos toparam. Mal comeram, se arrumaram pra partir.
Antes, Dona Lô, chegando perto de Gracinha falou ao ouvido dela: “Cê tá vendo o que eu estou?” E ela retrucou dando de ombros: “Deixe pra lá Dona Lô, eu sabia que aquela alma queria reza. E queria! Inácio Vaqueiro é velho femento e gado véi, que só gosta de capim novo. Acho que já traça ela faz é tempo...”
A boiada pegou a estrada à uma e trinta da tarde, pontualmente. E foi ficando na poeira do estradão a Fazenda Zé Mineiro, os povoados Preá, Centro dos Goianos, Zé Gaúcho, Boi num Lambe, Frege da Cotinha, Sumaúma e... Tan-tan-tan-tan... Chapada do Arapari ao longe. Antes de chegar lá, a boiada pegou o atalho para o seu destino final...
Se a boiada não dava demonstrações de cansaço, a peãozada estava nas últimas quando deu pra avistar a Matinha de Dona Lô, onde foram recebidos por Pedro e pelo cuca Toco que, após o almoço, colocou seus apetrechos na caminhoneta, deu tchau todo lampreiro dizendo: “Cansei de comer poeira e sentir cheiro de bosta de boi!” Chegando à fazenda, seguindo orientações de Estela e com a ajuda dela, preparou o jantar com parte dos ingredientes que deveriam ter sido usados no jantar da Fazenda Sabiá. Era... Caussolet da Dilma!

Fazenda Matinha de Lô, Chapada do Arapari, 20 de janeiro de 2011

DISPARADA
Letra de Geraldo Vandré/Música de Theo de Barros

Prepare o seu coração

Prás coisas
Que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar...


Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte e o destino, tudo
Estava fora do lugar
Eu vivo prá consertar...


Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu...


Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
E boiadeiro era um rei...


Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos
Que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei...


Então não pude seguir
Valente em lugar tenente
E dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente...


Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto prá enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar


Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém
Que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse
Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu...


Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei
Agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte
Num reino que não tem rei

Jair Rodrigues - Disparada - Festival de 1966
Enviado por jeffband. - Veja mais vídeos de música, em HD!

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Observando a Boiada, de De Marchi

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